Um dia na vida do cirurgião-barbeiro Luís Gomes Ferreira, em 1728

Coçando-se furiosamente, o irritado senhor de 42 anos arrancou o camisolão e gritou pela escrava Miguelina, velha de 38 anos:

            – Lina, venha aqui depressa!

            Acostumada a ver homens pelados, a velha escrava logo apareceu na porta, sem curiosidade ou interesse.

            – Leva para lavar toda a roupa que encontrar aqui. Não deixe nem uma ceroula. Esfregue bem com semente de espora-de-cavaleiro cozida em vinagre forte. Já não aguento tanta picada de pulga, piolho e muquirana. A canjica está pronta?

            – Está, sim, senhor. Botei na mesa.

            – E você, cai fora dessa cama e volta para sua casa! – disse ele virando-se para a negrinha Filó, de 12 anos, que ainda cochilava, a cabeça enfiada no travesseiro. Toda noite, como fazia há anos, Gomes Ferreira trazia alguma crioulinha dengosa ou uma mulatinha jeitosa, de 10 a 15 anos, para dormir com ele.

            O cirurgião-barbeiro se vestiu depressa e foi para a cozinha. O desjejum era canjica de milho com broa de milho, farinha de milho e milho assado na brasa.

O QUADRO NA PAREDE

            Enquanto comia, ficou admirando o quadro que trouxera de Portugal e mandara pendurar na parede em frente. Representava horrível disputa entre um trenó puxado por cavalos e feroz matilha de lobos, numa floresta coberta de neve. Quase se podia ver o movimento do pai quando, desesperado, jogava um bebê completamente vestido para os lobos. A seu lado, a mãe mordia os dedos, de olhos arregalados.

            “Ainda se fosse um negrinho”, pensou Luís com seus botões, “mas um garotinho branco é sacanagem. Por que o pai não pulou para ser estraçalhado? Assim poderia salvar a mulher, o bebê e os cavalos. Só não sei se eu teria pulado no lugar dele”.

            “Negro tem pouca serventia”, continuou pensando. “A não ser no trabalho e na cama. O diabo é que dura pouco. Pelo que sei e foi estudado, depois de comprado um escravo não dura mais de sete anos. Já tratei de muitos, salvei alguns e perdi outros. Quando morrem é um desastre, o dono perde um dinheirão”.

            Levantou-se e saiu. Era hora de atender doentes.

 

O HERÓI DESTA HISTÓRIA

            Nascido na vila de São Pedro do Rates, no concelho de Póvoa do Varzim, o português Luís Gomes Ferreira completou sua formação de cirurgião-barbeiro no Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, por volta de 1705. Depois de muito viajar por África e Ásia, deu com os costados nas Minas Gerais, decidido a enriquecer. Quando chegou, o ouro já rareava, o trabalho era duro e os ganhos, escassos. Quem lucrava eram os grandes mineradores, possuidores de dezenas de escravos, e os negociantes, com suas vendas fornecidas de tudo, da terra ou do reino.

            Que fazer? Passou a disputar a clientela com outros barbeiros, um que outro médico, além de curandeiros, parteiras e boticários. Todos tinham seu quinhão, apesar das querelas constantes e das intrigas levadas a juízo.

            Perambulando por Villa Rica, Villa do Príncipe e Sabará, nosso doutor salvou muitas vidas, aplicando conhecimentos adquiridos, na prática diária, naquelas terras “úmidas e frias”. A seguir, pequena amostra desse conhecimento, extraída do livro “Erário mineral”, organizado pela professora Júnia Ferreira Furtado e coeditado, em 2002, pela Fundação João Pinheiro e Editora Fiocruz, com apoio da FAPEMIG. O texto é cópia literal do que está no livro, inclusive na pontuação. A primeira edição, impressa em Lisboa, é de 1735.

 

PARA LANÇAR A CRIANÇA QUE ESTIVER MORTA

            “Atem na perna esquerda da mulher que estiver para parir a pedra-de-moçamba, que é certo e experimentado, e, tanto que parir, se tire logo, logo; ou tome a mulher, de uma oitava até duas, de açafrão, bem desfeito em pouca água, ou atem na coxa direita da mulher, instantaneamente, um fígado de galinha, assim logo que se tirar, estando viva a galinha, pois é experiência certa.”

 

PARA CURAR ASMA

            “Diz o doutor Curvo o seguinte. ‘Consta-me, por repetidas experiências, que os pós de gatinhos acabados de nascer de poucos dias, metidos vivos em uma panela nova barrada com o seu testo e metida no forno para se secarem, de sorte que se possam fazer em pó, dando uma oitava deles em água cozinha com cabecinhas de hissopo, orégano e açafrão, faz grandíssimo proveito.’ Com este remédio curou a um menino, morador junto à igreja dos Mártires, que havia dois anos padecia terríveis acidentes de asma, procedidos de dormir com um gato na cama, o que é danosíssimo, porque o bafo daquele animal tem uma tal antipatia com o nosso bofe que, infalivelmente, causa asma a todas as pessoas que dormem com eles na cama, o que lhes consta (diz ele) por mil experiências, e que, quando era chamado para doentes asmáticos, lhes perguntava logo se tinham dormido com gatos e todos lhe diziam que sim; sendo, pois, o bafo a causa da asma, o seu pó é remédio dela.”

 

PARA CAÍREM OS CABELOS E NÃO TORNAREM A NASCER

            “Tomem uma pouca de carne de vaca, ponham-na aonde apodreça e se encha de bichos, estes bichos se sequem ao fogo até que possam fazer em pó, mas não se queimem; destes pós fareis umas papas com sumo de agraço pisado, que é o sumo que sai das uvas verdes, e deixai estar este remédio na parte, até que se seque, e então puxareis pelos cabelos e se tirarão sem dor; e, no caso que tenham algum, torne-se a pôr o remédio, que, secando-se na parte, se tirarão sem dor e sem falta para nunca mais tornarem a nascer.”

 

PARA FAZER NASCER CABELO NA CABEÇA OU EM OUTRAS PARTES

            “É experiência certíssima que, rapada a cabeça à navalha, quatro ou cinco vezes, e untá-la com sebo de homem esquartejado, ou com o seu óleo por tempo de um mês, faz nascer o cabelo, e, se untarem a cabeça dois meses com o dito sebo, lhes nascerá tanto que não terão vontade de mais; tira também certamente as manchas e sinais de bexigas e desfaz as suas covas, untando-se todos os dias duas vezes com o tal sebo ou com o seu óleo; e também desfaz as cicatrizes das feridas que ficam na cara ou mãos, o qual se acha em algumas boticas vendidas pelos carrascos. (…) Uma moça formosa e rica deixava de casar por ser calva e, untando a cabeça por dois meses com o dito sebo, lhe nasceu tanto que casou e viveu com muito gosto.”

 

COM QUE REMÉDIO SE DEVE ACUDIR AOS AFOGADOS

            “Ainda que alguma pessoa se tire debaixo da água reputada por morta, se lhe deve acudir com os remédios seguintes: assim que sair, logo se pendure com a cabeça para baixo até que lance toda a água que tiver bebido e, tanto que não lançar mais, logo o deitem em cama bastantemente quente, e logo se lhe aplique sobre o coração pombos, ou galinhas, ou frangos escaldados em vivos e borrifados com vinho ou com aguardente, o que se fará com toda a presteza. (…) Consta de grandes autores que alguns afogados que estiveram duas horas debaixo da água, fazendo-lhes os ditos remédios, entraram em si e viveram muitos anos; o doutor Curvo diz que foi testemunha de vista de um pintor que, andando pintando a popa de uma nau, caiu no mar e, passadas duas horas que esteve debaixo da água, saiu na praia de Belém, que era distante de uma légua, e, fazendo-lhe os remédios ditos, entrou em si e viveu depois muitos anos.”

 

PARA DESSECAR AS ALMORREIMAS (HEMORROIDAS)

            “Nestas Minas há uns macacos a que chamam barbados, outros lhes chamam bugios, e são uns que têm papo e são pretos pelo corpo, e pelo fio do lombo têm o seu cabelo a modo de ruivo e são conhecidos pelo nome de barbados, e pelo papo, de muita gente: destes, estando ainda vivos, se lhes tira aquela noz redonda a modo de bolhazinha, que encaixa no quadril na cova onde joga a perna e há de ser o da perna esquerda; esta bolhazinha, chamada de algumas pessoas ‘conta de macaco’, se aperfeiçoa e fura para trazer atada no braço esquerdo, de modo que toque na carne; é bastante para se acabarem as queixas de quem for perseguido de almorreimas.”

 

PARA QUEM COMER BARRO O ABORRECER PARA SEMPRE

            “Deitai um punhado de terra de qualquer cova de defunto em uma quartinha de barro de boca estreita e, enchendo-a de água, desta água dareis a beber à pessoa que come barro e não comerá mais. Uma donzela houve que comia tanto barro que nem conselhos de confessores, nem de seus pais, nem o temor da morte foram nunca bastantes para largar tal vício; e bebendo água com terra de sepultura, como acima fica referido, ficou com tal asco que nunca mais comeu barro nem bebeu água por púcaro de barro; e, se por descuido, o fazia, logo vomitava tudo quanto tinha comido. (…) Os pós de casco de caveira de um defunto, sutilíssimos e dados a beber por quatro dias contínuos em água de flor, em quantidade de meia oitava, fazem aborrecer o barro; urinar em um púcaro de barro, deixando secar a urina e depois, feito em pó, dá-lo a beber a quem comer barro o fará aborrecer, de modo que nunca mais torne a comê-lo.”

 

PARA AMANCEBADOS SE APARTAREM SEM QUE A JUSTIÇA OS OBRIGUE

            “Tomem o esterco do amancebado, e metam-no nas solas dos sapatos da manceba ou nas palmilhas deles, e o esterco da manceba o metam nas solas ou nas palmilhas dos sapatos do mancebo, que logo se aborrecerão, de modo que não poderão ver um ao outro e se apartarão sem que ninguém os obrigue. É remédio de virtude oculta, como são muitos.”

 

PARA A DOR EM NERVO CIÁTICO

            “Bosta de vaca ou de boi quente e posta em cima de uma folha de couve se ponha na parte ou se frija a dita bosta em urina, e, feita em papas, se apliquem na parte enferma, ou se fomentem com óleo de arruda quente, ou feito de arruda e alecrim, que, se a dor proceder de causa fria, qualquer destes remédios a lançará fora, advertindo que a dor da ciática é aquela que dá no quadril, que algumas vezes se estende pela perna abaixo.”

Sebastiao Nunes

3 Comentários

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  1. Depois dizem que Macunaima é

    Depois dizem que Macunaima é invenção Brasileira!

    Existir num circulo destes, onde a “fidalguia” podia TUDO, Macunaíma é consequência da “fidalguia”…

  2.   E ainda tem quem pense em

      E ainda tem quem pense em termos de viagem no tempo para VOLTAR nele… se eu pudesse, avançaria umas boas décadas ou séculos, isso sim. Quem sabe a coisa melhora.

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