Um Rio resgatado

‘Contos cariocas’, de Artur Azevedo, resgata Rio da virada do século

Artur Azevedo por Loredano 

“O Globo” – 09/11/2013

 

A frase do crítico Agripino Grieco, que não costumava refrescar, é perfeita: “Quanto a Artur Azevedo, teria espírito até colaborando no Diário Oficial”. Nele não escreveu, mas leu e consultou muito o “Diário Oficial”, quando, exercendo as funções de funcionário público, encerrava um processo e indicava, à margem, a data em que fora publicado o despacho. Ao contrário de seus colegas, e mesmo de outros escritores funcionários-fantasmas, que só tinham olhos para o paletó na cadeira e os vencimentos no fim do mês, foi um amanuense exemplar. E gordo, como devem ser os amanuenses exemplares.

Autor de talento e popularíssimo, Artur Azevedo (1855-1908), como que para compensar a rotina enfadonha no trabalho, esbanjou criatividade no teatro, na crônica, na poesia e no conto. “Um remador de Ben-Hur”, diria Nelson Rodrigues. Só não fez romance. Chegou a idealizar um, no qual justamente retrataria a vida oprimida do funcionário público. Seria uma obra nos moldes das de Balzac, a que chegou a dar um título engraçado e autorreferente: “O pé de boi: costumes da vida burocrática”. Mas ficou nisso. Talvez não se sentisse à altura da tarefa, impressionado com a força imaginativa do irmão Aluísio de Azevedo, o naturista de “O mulato” e “O cortiço”, ou com as manhas e galhofas literárias de um certo colega no Ministério da Viação, Indústria e Obras Públicas, Joaquim Maria Machado de Assis, o Machadinho, como o chamavam na repartição.

Se não quis arriscar-se nas águas mais profundas do romance, no teatro ele excedeu. Possuía os instrumentos do ofício: carpintaria segura, capacidade de armar cenas, diálogo natural. Seu forte era o pastiche, a paródia, a fixação de costumes. Os dramas, que requeriam mais fabulação, foram menos numerosos em sua produção de mais de uma centena de peças. Destacam-se “O mambembe”, “O escravocrata”, “O dote” e, sobretudo, “A capital federal”. Além disso, incansável colaborador de quantos jornais e revistas havia em seu tempo, utilizando-se de 17 pseudônimos, deixou mais de quatro mil artigos sobre coisas e gentes do teatro, publicados nas seções que manteve em “O País”, “Diário de Notícias”, “A Notícia” e nos periódicos especializados “A Estação” e “Revista do Teatro”.

Como autor de histórias curtas, não foi menos profícuo: espalhou pela imprensa mais de duas centenas de contos, a maioria editada com destaque, na primeira página dos jornais. Mesmo publicando desde 1871, só em 1889 enfeixou 24 deles nos “Contos possíveis”, a que se seguiram as coletâneas “Contos fora de moda” (1894) e “Contos efêmeros” (1897). Os demais livros foram póstumos, entre os quais os “Contos cariocas”, cujas 23 narrativas saíram pela editora Leite Ribeiro uma única vez, em 1928, e só agora reaparecem, por iniciativa da Edusp, como volume inaugural da coleção Reserva Literária, cuja proposta é “resgatar obras esquecidas ou fora de circulação, mas de interesse artístico e cultural permanente”.

É curioso, para não dizer injusto, que Artur Azevedo esteja esquecido e fora de circulação. No prefácio aos “Contos cariocas”, escrito por Humberto de Campos, atesta-se que ele foi “o contista mais popular de sua época”. Suas histórias, classificadas de “meras narrativas de cunho popularesco” — eram até mais lidas que as de Machado de Assis, no fim do século XIX e no início do XX, por homens e mulheres indistintamente. Mas, fazer o quê? Se o próprio Humberto de Campos já foi leitura obrigatória e, hoje, é apenas mais uma rua do Leblon conhecida por seus bares e restaurantes…

O que a bem cuidada edição da Edusp comprova é que, se alguma coisa nos contos envelheceu, a graça original permanece intacta. E podem ser lidos como viagem ao fim do Império e início da República, ao Rio de Janeiro dos esplendores da Rua do Ouvidor, com suas vitrines de madeira de lei envidraçadas; as novidades dos joalheiros e modistas; o célebre Hotel Rayot; a livraria Garnier; a confeitaria Pascoal; a redação do jornal “A Reforma”, onde aquele jovem recém-chegado do Maranhão arranjou o primeiro emprego como revisor de provas e tradutor de folhetins. Não à toa, a rua mais citada nos “Contos cariocas” é a elegante Ouvidor.

A característica de “causos” não desqualifica os contos. E muito menos Artur Azevedo era um escritor fútil, superficial e até vulgar, como alguns críticos, menos espertos que Grieco, tacharam-no. As histórias seguem um modelo inventado pelo próprio autor, e que ninguém realizou melhor do que ele, o “conto-comédia”, unindo teatro e prosa narrativa. Daí a presença das anedotas, recolhidas na observação dos hábitos e vícios da cidade, e a utilização do coloquialismo nos diálogos, que praticamente conduzem a ação. Jamais soou pretensioso ou pedante.

No mais, são os deliciosos tipos mundanos a roubar cenas: a falsa baronesa; o caixeiro de armarinho; a atriz interesseira e, por isso, sedutora no roçar de joelhos e pés embaixo das mesas; o amante atrapalhado com a novidade tecnológica (o telefone!); as janeleiras que, de um mirante na Rua dos Inválidos, conseguem namorar, com a mesma dedicação, mancebos apaixonados e postados na Rua dos Inválidos e na Rua do Resende.

Sem falar na mais que agradável surpresa de descobrir que, em 1875, “a moça mais bonita do Rio de Janeiro” morava no Engenho Novo. E se chamava Mafalda, mas que todo mundo conhecia como Fadinha, “lábios grossos, mas graciosamente contornados, abrindo-se, de vez em quando, para mostrar os mais belos dentes, cabelos negros como os olhos, abundantes, ligeiramente ondeados, apanhados sempre com um desalinho estético, deixando ver duas orelhas de um desenho tão impecável, que fora crime cobri-las”.

A nova edição dos “Contos cariocas” contém notas explicativas de vocábulos raros ou caídos em desuso e expressões de época. É um prazer à parte encontrar palavras que ficaram escondidas no porão, mas que, limpas e arejadas, bem podem voltar às prateleiras: folgazão, borracheira, arrabalde, bicho-careta, toleirão, tutear (tratar por tu), passear à burra, levar às lampas.

Alvaro Costa e Silva é jornalista

Redação

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