Uma noite de Natal na Avenida Paulista em 2099, por Sebastião Nunes

Duas velas iluminavam escassamente a sala de terra batida. Sentados a uma mesa rústica, coberta com uma toalha de plástico suja e rasgada, um garoto e uma garota esperavam pacientes. Ele devia ter uns 10 anos, ela por volta de 12.

        Do outro lado da mesa um homem muito magro também esperava que sua mulher trouxesse o bolo natalino.

        – Está demorando, pai – disse o garoto. – Estou morrendo de fome.

        Ele era tão magro que dava para contar cada costela e os ossos do rosto deixavam ver a caveira por baixo da pele.

        – Também estou com fome, pai – disse a garota. Ela tinha os braços tão finos que pareciam gravetos. Os cabelos quebradiços lembravam palha de milho seco.

        A mão finalmente entrou na sala.

        – Demorei porque o fubá estava mofado e tive de catar os carunchos. Mas aqui está ele: um belo bolo de Natal, de fubá e amendoim.

        – Amendoim, mãe? – reclamou o garoto. – Não tem noz, passas, avelã, pistache, ameixa, castanha?

        – Não consegui – disse o pai. – O pouco que havia foi disputado a tapa. Dei sorte de conseguir fubá e amendoim.

        Todos aproximaram seus pratos de louça rachada do bolo. A mãe entregou a faca ao pai para dividir o bolo em pedaços iguais. Depois foi buscar o suco de capim-cidreira colhido no quintal.

 

SÃO PAULO NA MODERNIDADE

        Muitos anos atrás, aquela mistura de asfalto quebrado, capinzal enfezado, blocos de concreto amontoados e ruínas de todo tipo tivera nome: Avenida Paulista. Em torno dela, se erguia a orgulhosa e palpitante metrópole, cheia de vida, movimento, luzes e cores. E de riqueza.

        Aos poucos, à medida que desapareciam as cidades grandes do mundo, também São Paulo minguou. Murchou como um balão furado.

        As cidades litorâneas sumiram debaixo de tsunamis gigantescos. 50 anos atrás fora a vez de desaparecerem Rio de Janeiro, Nova Iorque, Londres, São Francisco, Lisboa e centenas de outras, grandes, médias e pequenas. Com o descongelamento das calotas polares o mar subiu mais de 20 metros, submergindo todas. Os habitantes fugiram para o interior, deixando a costa desabitada.

 

CAMINHANDO PARA TRÁS

        As catastróficas mudanças climáticas transtornaram rapidamente a cadeia produtiva de alimentos. A pecuária praticamente deixou de existir desde 2050. O gado sobrevivente foi caçado com paus e pedras por grupos de desabrigados famintos. Mas isso no interior. Nos centros populosos o pior foi a crise de abastecimento, que esvaziou os polos atacadistas e liquidou o grande comércio varejista de massa, obrigando os habitantes a fugirem dali e criarem comunidades pequenas onde fosse possível.

        Assim, onde antes existiam cidades grandes e médias, pequenas povoações de no máximo 10 mil habitantes se formaram, sobrevivendo graças à agricultura comunitária, possível pelo cultivo de pequenas hortas irrigadas manualmente com água de cisternas cavadas com enxadas e picaretas.

        São Paulo ainda conservava, em 2099, cerca de 20 mil habitantes, em precárias condições de alimentação e moradia. Não havia luz elétrica, água encanada ou esgoto. Nada de televisor, automóvel, celular, geladeira, exceto sucatas obsoletas e quase imprestáveis, mantidas teimosamente em funcionamento por baterias e combustível improvisado de mamona, algodão e outras sementes, sempre raras.

 

VOLTA ÀS ORIGENS

        Por conta do desastre ecológico, o perímetro das cidades ficou limitado ao alcance de bicicletas, único veículo de transporte sobrevivente. O uso de carroças puxadas por homens e mulheres foi recuperado para o transporte de raríssimos produtos excedentes.

        Roupas e sapatos voltaram a ser produzidos artesanalmente, e renasceu a antiga tendência de remendar vestimentas e botar meia-sola em calçados.

        Os governos – federais, estaduais e municipais – deixaram de existir, sendo cada cidade formada por centenas ou milhares de núcleos familiares, que organizavam conselhos de administração também precários que, por sua vez, tentavam estabelecer regras razoáveis de convivência, nem sempre com sucesso.

        Não havia juízes, advogados e polícia. Para quê? Todos eram miseráveis e não fazia sentido se furtarem uns aos outros. O mundo, finalmente, fora conquistado pelos pobres. O mundo, finalmente, era dos miseráveis. O Anarquismo, que durante séculos fora sonho e utopia, tornara-se realidade mundial.

 

A NOITE DE NATAL CHEGA AO FIM

        Devorado o bolo e engolido o suco, os pais entregaram aos filhos os presentes: o garoto ganhou uma bola de futebol quase nova e foi dormir abraçado com ela. A garota ganhou uma boneca que, durante alguns dias, falou “Mamãe!”, mas logo a pilha acabou e ela se tornou uma boneca muda.

 

Notas:

        01) Até eu sei que uma distopia romântica deste tipo não tem o menor sentido. O mundo não acabará com um suspiro, mas com uma explosão.

        02) O fim das grandes cidades não é uma hipótese improvável. Quase com certeza ele não demora – e será uma espécie de Juízo Final.

        03) A previsão mais razoável é que a catástrofe que se aproxima a galope reduzirá a população mundial para algo como cinco milhões de pessoas, no máximo.

Sebastiao Nunes

1 Comentário

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  1. Esse texto tem uma avaliação

    Esse texto tem uma avaliação utópica até pra utopia.

    Brexit,Tramp, xenofobia a granel, terroristas em todos cantos,tédio,fome, aquecimento global, desemprego, guerras sem sentido ou no sentido religioso( pior ainda) , fanatismo, programas de ”austeridade” em todo mundo, insatisfação descontrolada de todos,bombas atômicas pedindo pra serem usadas e uma montanha de etc, é pouco provável que cheguemos em 2030/40.

       Que dirá 2099….

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