Uma visita de Monteiro Lobato ao Sítio do Picapau Amarelo, por Sebastião Nunes

Nestes tempos bicudos, em que grosseria e ignorância predominam e a linguagem perde muito de seu valor na construção do conhecimento, apelo para o mestre Monteiro Lobato, que sofreu e sofre horrores nas mãos da inquisição tupiniquim.

Uma visita de Monteiro Lobato ao Sítio do Picapau Amarelo

por Sebastião Nunes

– Delicioso este ora-pro-nóbis com costelinha! – exclamou Zé Bento diante das iguarias e sob o olhar sorridente de Dona Benta. – Quem imaginaria, no assento etéreo onde subi, que eu ainda provaria essas gostosuras?

– O ora-pro-nóbis foi ideia do Pedrinho, que está com os dedos feridos de tanto que espetou nos espinhos da planta – respondeu a matrona, satisfeita. – Já a costelinha foi a serelepe da Emília que exigiu aos gritos, pois adora a mistura. A cozinheira só podia ser Tia Nastácia.

O visitante meteu outra garfada na boca e suspirou de satisfação. Era a primeira vez que voltava ao Sítio, desde que desencarnara em 4 de julho de 1948. A viagem foi longa e ele chegou esfomeado.

– Dia virá, Dona Benta, em que será difícil encontrar ora-pro-nóbis, e costelinha de porco só haverá sintética. Ainda bem que não estarei vivo pra contar essa história.

– Que bobagem, Zé! – exclamou a boa senhora. – Qual é a graça de costelinha de porco sintética? Terá gosto de quê? Borracha cozida?

– Aí é que a senhora se engana, Dona Benta. Espere pra ver o que o futuro nos reserva de bom, de ruim e de péssimo. Quem viver, verá.

Ia nessa toada o papo entre o escritor-recém-defunto e a fazendeira-personagem, quando entrou o Visconde de Sabugosa conduzindo visitas. Do lado direito, um saci “comme il faut”, isto é, de touca vermelha, cachimbo na boca e pulando numa perna só. Do lado esquerdo, um veado-galheiro, os chifres esbarrando no teto e nas paredes.

– Engraçado – disse Zé Bento, provando o suco de gravatá – Pensei que fosse proibido caçar veado e que saci não existisse de verdade.

– Que nada! – sacudiu-se numa risada Dona Benta. – O veado-galheiro que você está vendo, também chamado de veado-campeiro, não é caça, mas visita do Visconde, que adora trazer seus amigos aqui. O saci também é visita, mas não gosto dessas intimidades do Visconde. Se deixasse, tinha saci até na minha cama, de tanto que tem por aqui. De noite ninguém aguenta os assobios e as risadas dos desinfelizes!

– Vou servir um prato bem cheio pro saci e trazer uma moita de capim pro veado – apressou-se Tia Nastácia, entrando naquele momento. – Já que são visitas, merecem ser bem tratadas.

BOTANDO OS PINGOS NOS VISITANTES

– Tá bom, Nastácia, faz o que achar melhor – conformou-se a fazendeira. – Só falta a Cuca pra animar a festa.

Dito e feito. Foi só falar pra Cuca aparecer, do nada e assustando todo mundo, como ela gostava.

– Bom dia, pessoal – saudou alegre. – Será que tem espaço na mesa pra mais uma criatura esfomeada?

– Senta aí, Cuca – disse Dona Benta. – Não sabia que você também gostava de costelinha com ora-pro-nóbis.

– Adoro. Principalmente agora que Seo Zé Bento morreu e a gente pode fazer o que quiser, do jeito que quiser. Sem escritor, todo personagem é livre pra curtir a vida, sem limite, sem lei e sem eira nem beira.

– Meu Deus! – exclamou Dona Benta. – Nunca imaginei que fosse ver a Cuca tão liberada.

– Falou e disse – animou-se a Cuca, usando uma gíria antiga. – Parece até que adivinhou. Pois vou fundar um partido e me candidatar.

Da porta, Pedrinho e Narizinho, que tinham chegado naquele momento, abriram a boca de espanto:

– Parece que liberou geral – sussurrou Pedrinho no ouvido de Narizinho. – Foi só Zé Bento bater as botas pro mundo virar de pernas pro ar.

– Nem tanto, Pedrinho, fica frio – disse Narizinho. – Vai ver que é só enquanto Zé Bento tá aqui. Quando ele for embora tudo deve entrar nos eixos.

SEGUE O ALMOÇO MALUCO

– Meninos, venham almoçar! – gritou a Cuca vendo os dois na porta. – Na mesa da dona Benta sempre cabe mais um, quero dizer, dois.

Abestalhados, o escritor-recém-defunto e a fazendeira-personagem olharam um para o outro, sem saber o que fazer.

– Será que outros personagens vão sair dos livros, criar vida própria e cair no mundo? – perguntou Dona Benta virando-se para Zé Bento.

– Sei lá! – respondeu atarantado o ex-escritor. – Tudo é possível. A única certeza que tenho é que nunca mais volto ao Sítio. Chega de confusão.

– Não é pra tanto, Zé Bento – ponderou a dona da casa. – Mas, lá de cima, é bom você ficar de olho na Cuca. Agora que ela se liberou dos livros, de repente pode sair por aí dizendo palavrão e até – Deus me livre! – criar um partido de extrema-direita pra disputar as eleições presidenciais. Se já existe um doido no governo, não custa nada aparecer mais um, quero dizer, mais uma.

– Eu, tomar conta de alguém? Pobre de mim – e o ex-escritor-editor bebeu outro gole de suco de gravatá. – No futuro, daqui a uns oitenta anos, e por causa da linguagem minha e de vocês, maravilhosos personagens, sofrerei tanta perseguição que dá até vontade de botar fogo em tudo que escrevi até hoje.

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“Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira – mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.” (Monteiro Lobato)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Sebastiao Nunes

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  1. Monteiro Lobato. 1.a República. República Paulista. Elite Paulista Gigantesca desde PRP, passando por Carlos Gomes, Monteiro Lobato até chegar a Semana de Arte Moderna. Cabeça que foi violentamente metamorfoseada em rabo a partir de Ditadura Esquerdopata-Fascista de 1930. Monteiro Lobato das ‘Reinações de Narizinho e Sitio do Pica Pau Amarelo’, antes da Indústria do Analfabetismo de MEC, Paulo Freire, Genero Neutro e Sexualização de Crianças dentro de sala de aula. Monteiro Lobato da rara Democracia Brasileira Republicana num planeta de Fascismo, Nazismo, Totalitarismo. Monteiro Lobato do Brasil Vanguarda e Porto Seguro do Mundo. Monteiro Lobato do “Petróleo é Nosso” contra o Imbecil Pária Ditador de Lesa-Pátria e Imbecilidades, Crimes e Assassinatos entre Eugênio Gudin e Filitnto Muller. Monteiro Lobato a Nação Potência Continental, Farol da Humanidade que permitimos que nos roubassem. Pobre país rico. 92 anos se explicam na ausência de Monteiro Lobato e a direção que esta Nação abortou, capitaneada por GV,Tancredo Neves, Leonel Brizola, Jango, JK,… Mas de muito fácil explicação.

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