Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Vargas não é um boi, por Urariano Mota

Vargas não é um boi

por Urariano Mota

Em tempos de ameaça de golpe militar, é fundamental retomar a história com a narração do horror da ditadura:

“Ele sabe com a consciência mais desperta que vive as suas ultimas horas. Diferente do jovem em Olinda, ele pode fugir antes dos tiros, evadir-se, para assim impedir que o seu corpo inche, se alargue a tal ponto que não entre em um caixão. E por que não o faz? “Eu conversei com ele, disse que ele fugisse”, anotou Gardênia no diário. Mas Vargas lhe respondeu na sala do apartamento do Edifício Ouro: “Fugir não podia, ele me disse. Pela segurança da esposa e da filha”. E voltou a advogada: “Eu pedi que ele deixasse a criança sob meus cuidados. Ele me falou que não ia levar Nelinha para uma aventura, porque ela era uma pessoa frágil e seria também assassinada. Aí seria pior, porque a menina ficava órfã”. A primeira observação é a  consciência de que será morto, porque ele resiste a que Nelinha seja “também assassinada”. E assim o dano seria maior: a frágil Nelinha mais a orfandade da filha. E resolve ficar e se fincar.  A segunda observação é a que dá o tamanho do terror nos olhos de Vargas: ele é um homem sozinho, está sem partido. Vargas segue na contramão: desvinculado, está só, sabe que vai cair, não tem apoio, isolado se encontra. Isso mostra a medida da infâmia, ele está sem organização clandestina, mas ainda assim será divulgado como um terrorista, que desejava o fim da democracia no Brasil. Daí vêm os seus olhos de índio crescidos, a pele morena sem cor, o rosto de varíola pálido. 

Antes do limite da morte, há um limite da dignidade onde raros conseguem ir. Se nos batem, se nos espancam e não podemos responder, a esperteza manda que fiquemos dóceis, menores que o agressor, pois ele possui as ferramentas para nos machucar. A maioria de nós, ou quase todos gritamos, porque o grito afinal é expressão da dor, e imaginamos, lá na ilusão da esperteza, que nossos gritos doloridos comoverão o braço do carrasco. Esses gritos, verdadeiros de dor, acabam por ser o pior do que somos. São gritos que clamam por misericórdia, que se denunciam “eu sou fraco”, eu sou ninguém, pelo amor de deus, pare. É humano, mas não é gratificante lembrar como uma honra dos nossos dias. “Se não gritasse, eu seria morto”. Então, para evitar o pior, baixamos até o piso do nosso próprio ser. É humano, queremos dizer, é compreensível em toda e qualquer pessoa. Nem podemos ser exigentes para o que apenas enxergamos de camarote, fora da dor. Mas aqueles gritos que pedem por clemência também doem na gente. Se pudéssemos, falaríamos ao espancado: “pare com isso, sofra com dignidade”. E com um resto de inteligência a vítima poderia nos responder: “Quer vir para o meu lugar?”.

Vargas, com os pequenos olhos bem abertos, não grita. Amarga amargando a amargura. Da janela do apartamento da advogada Gardênia ele vê a noite do Recife. Lá embaixo a Sete de Setembro está deserta, ou com alguns policiais na campana. Mas ele não vê o céu escuro. Tudo nele é desvio do terror. Como era bom que fosse manhã e o sol trouxesse a democracia, para do terraço discursar aos recifenses libertos. “Presta atenção, Vargas. Presta atenção!”, ele bate com a mão na testa.

– O que foi? – Doutora Gardênia pergunta.

– Nada…. – Então ele pegaria a sua frágil Nelinha, a filha de cristal, pequenininha, e desceriam juntos para o dia de sol na Conde da Boa Vista. De mãos dadas, prontos para o levantamento da pátria socialista…. ..

– Doutora, eles vão em cima de Nelinha.

– Então fuja com ela. Deixe o bebê comigo.

– Doutora, doutora… – e Vargas quebra a voz. – Doutora, eu amo Nelinha. Eu não vou metê-la nesta aventura”.

 

Do romance “A mais longa duração da juventude”, https://literarua.commercesuite.com.br/livro/juventude

Diário de Pernambuco http://www.impresso.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/cadernos/emfoco/2017/09/21/interna_emfoco,175914/vargas-nao-e-um-boi.shtml

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

3 Comentários

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  1. O canal Curta é dos que mais

    O canal Curta é dos que mais assisto, para rever a História, contada por jornalistas que viveram aquela repressão. Em um documentário, sobre Wladimir Hertzog, vemos como é difícil para esse comunicadores relatarem o que viveram nos porões da ditatuda. 

    Eles contam, em detalhaes, como eram arrebatado de suas residência e das suas famílias, de forma educada, mutas das vezes, mas logo que entravam no carro, já lhes punham um cpuz na cabeça pra que não reconhecessem os caminhos, nem o destino daquela que poderia ser uma ida sem volta, como foi a de Wladimir. 

    Todos eles dizem, inclusive algumas mulheres, que o horror começava quando sentiam estar entrando num corredor, ouvindo gritos de quem sentia dores lancinantes. Conduzidos por alguns, cada jornalista sentaria numa mesa comprida, que eles, mesmo de olhos vendados, podiam deduzir, como deduziam que na mesma mesa outros estavam como eles. Um desses jornalistas, então, diz ter tido a certeza de que Wladimir acabara de sentar-se. Con seguiu ohar por debaixo do capuz, com muito cuidado, os sapatos do colega morto em seguida. Chegou a dizer ao que se encontrava mais próximo. 

    Caa um ficava num espaço seu, mas sem um segundo de sossego, porque os gritos eram constantes, torturantes para quem os emitiam, e muito também pra quem escutava. 

    Markum, entre todos, confessam nesse documentário como se davam as torturas, e no caso dele, foi mil vezes pior porque sua mulher também estava numa cela ao lado. 

    Colocavam o prisioneiro numa cadeira de metal, ligavam fios nas orelhas, no pinto – como um deles declara -, no ânus, e eles mesmo tinham que apertar um botão, com os braços amarrados no trono, mas com os dedos ainda em movimento. 

    E o que tanto sabemos sobre a ida voluntária de Wladimir ao interrogatório, que terminou com ele morto na cela, e que por todos os colegas, foi o fato dele não ter suportado a tortura, na verdade ninguém pode duvidar que o resto sobreviveu de teimoso, se tinham tudo para expirarem como o colega. 

    Esse post é apenas mais um alerta para o que o Brasil deveria se ater no sentido de nunca mais permitir tais insanidades, selvagerias. Porque não está o cara preso, submetido a torturas tão degradáveis, preocupado apenas com sua integridade física. Cabe a um pai, a uma mãe, ou a qualquer um, pensar também, e até em primeiro plano nos seus parentes mais próximos. 

    Essas histórias são tão indignas que mesmo passadas décadas, os torturados, em maioria, ainda não conseguem falar sem lágrimas nos olhos.

    Por fim, não poderia deixar de voltar à triste entrevista de Zezé de Camargo a Leda Nagli. Que desserviço? Nem sei quem se saiu pior nessa parada. 

  2. Jeca o bastante pra mim!

    A proxima vez que eu precisar da palavra “terapeutica” eu vou usar “hermeneutica” so pra ser chique!

    So que a sentenca em questao continua mentira:  existem ESTUDOS E DADOS fartamente na internet a respeito de “cura gay” como “terapia”, digo…  hermenia?

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