Até quando vamos permitir que turismo seja significado de exploração?

Reportagem da Vanessa Cancian para a ONG Preservar é Resistir - em defesa dos territórios tradicionais - como parte do compromisso em disseminar o que acontece aqui nesse litoral todo, especialmente os alertas.

Ilha das Couves

Sugestão de Mariana Nassif

Copio e colo a importante reportagem da Vanessa Cancian para a ONG Preservar é Resistir – em defesa dos territórios tradicionais – como parte do compromisso em disseminar o que acontece aqui nesse litoral todo, especialmente os alertas. Turismo não pode ser sinônimo de exploração, de forma alguma.

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Caiçaras da Picinguaba lutam por turismo de base comunitária para salvar Ilha das Couves

October 29, 2019

Construída pelas três associações da Pincinguaba, proposta de Turismo de Base Comunitária (TBC) é apoiada pela Rede Nhandereko e pelo Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) para conter avanço insustentável do turismo na Ilha das Couves, em Ubatuba (SP).

Durante os últimos 3 a 4 anos, a palavra mais acessada na internet relacionada ao turismo em Ubatuba é “Ilha das Couves”. O crescimento do acesso a esse paraíso tradicional caiçara localizado na região norte, na comunidade da Picinguaba, fez com que a ilha sofresse com a superlotação que prejudica o meio ambiente e a própria vida da comunidade. No verão, o local chega a receber até 5 mil pessoas num único final de semana, embora o Ministério Público Federal identifique em 177 pessoas simultaneamente, a capacidade máxima para o ambiente de praia na ilha.

“Sou moradora da Picinguaba, nascida e criada aqui. A nossa esperança de futuro da Ilha das Couves é que a comunidade da Picinguaba seja a protagonista desse turismo, que é a nossa luta. Já que estamos junto disso há muito tempo, que nós ordenemos o turismo, mas com apoio dos órgãos públicos”, reivindica Patrícia Silva, secretária da Associação de Moradores do Bairro da Picinguaba (AMBP)

Com a orientação do Ministério Público Federal (MPF) de Caraguatatuba, a comunidade caiçara da Picinguaba já busca amenizar os impactos do turismo predatório que se alastrou sobre a Ilha das Couves. Desde 2018, reuniões, chamamentos, encontros para discutir o acesso e a capacidade do número de visitantes foram realizados. Nesse contexto, o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT), com o apoio da equipe técnica do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), iniciou um processo de apoio às associações comunitárias para construírem coletivamente uma proposta de gestão comunitária e sustentável para o turismo na ilha.

Célia Regina da Silva, pescadora caiçara, mora há quase 40 anos na Ilha das Couves. Ela é descendente de sete gerações nascidas na Picinguaba e também reivindica o protagonismo comunitário na gestão do turismo no local. “Eu não quero perder meu direito, sou uma caiçara, uma nativa, a ilha é um reduto da nossa cultura”, afirma. “Eu sou uma das últimas que ficou, mas teve muita gente aqui antes de mim” .

Responsável pela proposta entregue ao Ministério Público, o Grupo de Trabalho de Turismo de Base Comunitária da Picinguaba é apoiado pela Rede Nhandereko de Turismo de Base Comunitária e é composto por representações das três associações locais (Associação de Moradores do Bairro da Picinguaba – AMBP, Associação de Barqueiros e Pescadores da Comunidade Tradicional da Picinguaba – ABPP e a Associação de Barqueiros e Pescadores Tradicionais da Picinguaba – ABPTP), além de moradores da Vila de Picinguaba, da Ilha das Couves e do Sertão da Picinguaba.

A proposta também tem o amparo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mais importante instituição de ciência e tecnologia em saúde da América Latina. “Apoiar o processo de fortalecimento do TBC na Ilha das Couves tem tudo a ver com a nossa forma de atuar no território da Bocaina. Do ponto de vista da Fiocruz, em que o conceito ampliado é o do determinante social da saúde, é essencial que as comunidades tradicionais mantenham seus modos de vida e seus territórios tradicionais para que tenham saúde”, destaca Leonardo Freitas, coordenador de Governança e Gestão do OTSS, uma parceria de dez anos entre a Fiocruz e o FCT.

MPF em diálogo com as reivindicações caiçaras

Em 2018, foi realizado um estudo preliminar de Capacidade de Carga Turística da Ilha das Couves, liderado pelo MPF sem a participação de representantes da comunidade. Na ocasião, em reunião pública realizada no Centro de Visitantes do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM), o MPF manifestou que a capacidade de carga na Ilha das Couves seria de até 177 pessoas, simultaneamente, considerando o ambiente de praia.

“Nesse movimento, o MPF entrou na discussão e sugeriu três opções de resolução. A primeira é que a ilha se torne uma área protagonizada pelo turismo de base comunitária, em que a comunidade faça o controle dos acessos e usos tendo o FCT como referência e apoio. No segundo apontamento, apareceu a gestão municipal e a terceira era virar uma parceria público privada (PPP). Nós, enquanto FCT, abrimos um diálogo intenso sobre a manutenção do território tradicional”, destaca Vagner do Nascimento, coordenador geral do OTSS e do FCT.

“O nosso foco foi dialogar de maneira intensa com a comunidade da Picinguaba, junto às três associações, em busca de alinhar os interesses e fortalecer a luta pela gestão de uma área que é, historicamente, pertencente a esse povo. Tudo isso para contribuir com que o movimento da Ilha das Couves seja um processo de TBC usado pela comunidade da Picinguaba em acordo com as outras comunidades”, completa.

Acesso a território tradicional em leilão para “trade turístico” de Ubatuba?

Na última semana, sem o consentimento ou a participação das associações comunitárias da Picinguaba, a Prefeitura Municipal de Ubatuba e a Fundação Florestal do Governo do Estado de São Paulo convocaram, para o dia 4 de novembro, uma reunião junto ao “Trade Turístico” para decidir o “futuro da ilha das Couves”. Segundo moradores da comunidade, esse chamado assustou e demonstra falta de respeito com o processo comunitário que está em curso com o consentimento do Ministério Público.

“Isso foi feito sem nenhuma consulta prévia com a comunidade. Em nenhum momento colocaram, junto, a comunidade da Picinguaba. A ilha das Couves é um território que faz parte da Picinguaba. É um patrimônio histórico e cultural tombado pelo Condephaat, é também uma área de amortecimento do parque estadual”, comenta Patrícia Silva. Além dessa liderança, a Comunicação do FCT escutou outros moradores que manifestaram a mesma indignação perante a reunião.

“Sobre essa reunião, o objetivo é ouvir a comunidade, para as pessoas que vivem em Ubatuba. Estamos falando especialmente da Picinguaba, mas achamos que isso vai influenciar a vida de toda a cidade, então estamos chamando para ouvir a todos”, disse o secretário municipal de turismo de Ubatuba, Potiguara do Lago. Segundo ele, é preciso abrir o horizonte do “TBC” para opiniões e alternativas. “A nossa ideia é sempre trabalhar em conjunto e que a cidade toda seja beneficiada com alguma ação”, comenta.

A Comunicação do FCT entrou em contato com o MPF e foi informada de que o órgão não foi avisado oficialmente da reunião.

Privatização do turismo coloca em risco o modo de vida tradicional 

“O risco de privatização assusta porque nós somos a parte mais fraca. Sabemos que a Ilha das Couves, se a gente perder, temos cerca de 60 famílias que vivem e dependem diretamente, que sobrevivem da pesca e do turismo. Então, a maior fonte de renda é o turismo da ilha. Se a gente perde isso, se privatiza, seremos ameaçados e perderemos espaço para a liberdade que temos hoje de trabalhar”, pontua Patrícia.

A caiçara integra também o GT de Turismo de Base Comunitária da Picinguaba que entregou recentemente, a pedido do MPF, o plano de ordenamento e gestão, totalmente construído pelo povo da comunidade. “Se privatizar, não tem para ninguém. O rico vai pegar e vai deixar o caiçara trabalhar? Claro que não! É ele que vai mandar. Enquanto eu estou lá, todo mundo entra, sai, leva o povo, brigamos por conta do lixo, tudo isso, mas brigamos porque queremos uma coisa melhor para a nossa comunidade”, comenta Célia Regina, moradora da ilha.

“Vemos que há o afunilamento de interesses e visões diferentes enquanto se aproxima a temporada de verão. Enquanto a comunidade segue querendo manter a ilha sob gestão dela, que é um direito ancestral, embora enfrente dificuldades internas e externas, há uma corrente interessada em ceder a ilha a iniciativa privada, que avança sobre o cenário pressionando e que  beneficiará apenas alguns”, alerta Santiago Bernardes, caiçara articulador do FCT no município de Ubatuba. Ele salienta também que os setores públicos que acabam não cumprindo seu papel e demostram não aprofundar o entendimento de que a comunidade tradicional da Picinguaba deve ser protagonista desse processo, por direito e justiça.

Turismo de Base Comunitária para manter a cultura caiçara 

O Fórum de Comunidades Tradicionais tem no Turismo de Base Comunitária (TBC) uma das suas bandeiras de luta para transformar a realidade do turismo de massa que assola a região de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba. No contexto da Ilha das Couves, a prática do TBC foi apontada pela comunidade como uma possibilidade real de resolução perante o fluxo exagerado de pessoas e os conflitos internos da comunidade.

“Nós estamos tocando o trabalho juntos. Estamos trabalhando com o turismo de base comunitária e estou otimista e confiante que vai dar certo. A Ilha das Couves é fundada como patrimônio histórico e tradicional da Picinguaba e seria uma perda lastimável pra comunidade perder a gestão desse território”, pontua Josimar, caiçara, pescador e presidente da Associação de Barqueiros e Pescadores Tradicionais da Pinciguaba (ABPTP).

Apoio de instituições parceiras

“O turismo de base comunitária tem como importância o despertar da consciência coletiva da comunidade de que sua territorialidade não se reduz ao uso de cada família, mas de toda uma comunidade que depende dele para seu usofruto, tanto como mercantil como uso cultural. Se trata, também, de uma estratégia de promoção da consciência coletiva de que somente a organização comunitária pode manter a integridade de sua territorialidade comunitária”, apoia Davis Sansolo, geógrafo e coordenador do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimentoo Territorial na América Latina e Caribe da Unesp.

O pesquisador da Unesp trabalha na região desde 1996 e afirma que a Ilha das Couves é parte da territorialidade, do sitio simbólico de pertencimento dessa comunidade. ”Se por um lado, a pesca a agricultura são parte do patrimônio cultural das famílias da Picinguaba, o turismo também se incorporou como uma atividade integrada a essa herança. Tanto que a Vila é tombada por sua paisagem e essa é a que mais atrai turistas para a localidade”, finaliza.

“Para nós, do Instituto Linha D’Água, apoiar iniciativas de TBC que valorizem tanto o patrimônio natural quanto o sociocultural dos territórios, contribui para o cumprimento da função social desses espaços”, pontua Henrique Callori Kefalas, coordenador executivo do instituto. Ele é parceiro do FCT e pontua a importância de um plano de gestão comunitária, elaborado por meio de um diálogo entre saberes, de maneira participativa para que haja um público de qualidade da Ilha das Couves. Desse forma, as pessoas que visitam desfrutam um ambiente natural exuberante e também do conhecimento sobre a cultura tradicional caiçara”, completa.

Reportagem: Vanessa Cancian/ Comunicação Popular FCT

Fotos: Acervo digital/ Comunidade caiçara da Picinguaba

Edição: Vinícius Carvalho/ Comunic

Mariana A. Nassif

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