Do Projeto Biosfera 2 ao Gênero “Reality Show”

 

O que há em comum entre o fracasso científico do Projeto Biosfera 2 em 1991 e o atual sucesso do gênero reality show? A chamada “ecologia maléfica” humana. Das baratas e ervas daninhas que destruíram o Biosfera 2  à crueldade, preconceito e violência dos reality shows, ambos mantêm um vínculo secreto: a endocolonização (a colonização interna da mente humana). O gênero reality show transformou-se em laboratório etnográfico para prospectar dados e análise dos comportamentos e motivações. Mais ainda, as dinâmicas, jogos e pegadinhas desses programas acabaram formando um estoque de táticas aplicáveis por técnicos de recursos humanos em seleção e treinamento em empresas.

Em 26 de setembro de 1991 quatro homens e quatro mulheres entraram numa gigantesca estrutura geodésica de vidro e metal com 12.000 metros quadrados, em Tucson, Arizona, em pleno deserto, para ali ficarem trancafiados por dois anos. Era o projeto Biosfera 2, abrigando 3.800 espécies animais e vegetais e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra , com o propósito de entender como a biosfera planetária funciona e como o ser humano interage com os ecossistemas. Foram monitorados por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil pagantes em todo o mundo.

Alguns meses depois, em 15 de fevereiro de 1992 sete jovens entre 18 e 25 anos entraram no prédio 565 da Broadway Street, em Nova York, para ali permanecerem por três meses com diversas câmeras acompanhando suas vidas e seus relacionamentos. Era o início daquele que é considerado o primeiro Reality Show da TV mundial, o “The Real World” (Na Real) da MTV norte-americana.

Em 16 de setembro de 1999, nove pessoas entraram em uma mansão em Almere, na Holanda, para ficarem também trancafiadas, desta vez por 106 dias, sem nenhum contato com o mundo exterior, acompanhados por uma parafernália de câmeras e microfones. Era a primeira edição do reality Show Big Brother idealizado pela empresa de entretenimentos Endemol. Embora o nome faça alusão a distopia literária de Gorge Orwel, “1984”, na verdade o programa foi explicitamente inspirado na experiência Biosfera 2 de, então, oito anos atrás.

O que há em comum entre esses três eventos? Além do fato do produtor de TV holandês John De Mol ter admitido explicitamente que a ideia do formato do Big Brother fora inspirada no projeto Biosfera 2 (segundo ele, a inspiração veio após um considerável número de drinques), custa acreditar que a ideia dos produtores do seminal “The Real World” alguns meses depois do início do Biosfera 2 seja mera coincidência. Há uma profunda ligação entre o projeto técnico científico no deserto do Arizona no início dos anos 90 e a proliferação do gênero reality show na TV mundial.


Fracasso científico, sucesso midiático


Como experimento científico, o Projeto Biosfera 2 foi um resumo de todas as ideologias ecológicas, climáticas, microcósmicas e biogenéticas. Mas foi muito mais do que isso. Foi uma atração experimental. Bancado por um bilionário texano pela bagatela de 200 milhões de dólares, desde o início havia um implícito senso midiático e de espetáculo. É o momento em que a tecnociência se converte em show. Se não, como explicar a inviabilidade da pesquisa científica em um ambiente onde oito pesquisadores enclausurados e isolados do mundo passavam 95% do tempo lutando pela sobrevivência (fazendo a comida crescer, lutando contra pragas e tentando resolver problemas básicos como higiene e saúde). Não sobrava muito tempo para o trabalho científico.

O Projeto foi um fracasso científico, mas um sucesso midiático. Dos objetivos iniciais publicamente divulgados como estudos dos biomas terrestres, dinâmica dos ecossistemas e sustentabilidade do ser humano em ambientes extraterrestres havia outro objetivo secreto: a endocolonização (a colonização interna da mente humana). Os milhares de sensores eletrônicos e câmeras espalhados no interior da gigantesca estrutura geodésica e o monitoramento ao vivo por meio de telas de TVs buscavam outros tipos de dados: o esquadrinhamento do comportamento humano, dessa vez não mais em laboratórios de psicologia, mas, agora, em cenografias controladas onde indivíduos lutam pela sobrevivência.

A tecnociência atual perdeu há muito seu interesse por desbravar outros planetas, buscar uma Teoria Unificada do cosmos ou buscar um modelo unificado da biosfera. Hoje ela se volta para o interior da mente humana, indo além do estudo do seu comportamento: quer psicocartografar a consciência e a alma.

Por trás dos altruístas e politicamente corretos objetivos (ecologia e sustentabilidade), estavam as origens do projeto tecnognóstico de uma psicocartografia do homem para a elaboração de modelos de simulação para uma não muito distante virtualização da mente e consciência. Em outras palavras mais diretas: contole, monitoramento e engenharia social.

Não é à toa que o appeal midiático do projeto Biosfera 2 tenha contaminado o universo televisivo. Mas com uma diferença. Se no projeto tecnocientífico a ecologia e sustentabilidade foram álibis para a iniciativa de endocolonização, na TV, sob o álibi da interatividade, o gênero reality show transformou-se em laboratório etnográfico para prospectar dados e análise dos comportamentos e motivações. Não é à toa que muito dos vencedores desses programas acabam sendo convidados para darem palestras motivacionais em meios corporativos.

Mais ainda, as dinâmicas, jogos e pegadinhas desses programas acabaram formando um estoque de táticas aplicáveis por técnicos de recursos humanos em seleção e treinamento em empresas. Numa surreal contaminação, hoje os ambientes corporativos com suas opressivas divisórias e baias não se diferenciam muitos dos realities televisivos. Funcionários (desculpe, “colaboradores”) são avaliados não tanto pelo conhecimento, mas, cada vez mais, por critérios comunicacionais e de relações semelhantes a programas como “No Limite” ou “Big Brother”.

 
Luis Nassif

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