O projeto do safári africano no Tocantins

Noticia absurda, confirmada pelo “Estadão”, um projeto para soltar grandes animais da savana áfrica no cerrado de Tocantins, sem mais nem menos:

Do Estadão

Empreendimento planeja criar um safári africano no meio do Tocantins

Reserva de 100 mil hectares próxima ao Jalapão, com mais de 400 indivíduos de espécies como leões, leopardos, elefantes e búfalos, vivendo como nas savanas da África, custaria R$ 350 milhões

Giovana Girardi

“Brasil e África se juntam depois de milhares de anos que uma fissura nas placas tectônicas transformou o que hoje são dois continentes com características tão semelhantes. Agora já podemos sentir o coração de África no Tocantins.” A frase – transcrita literalmente de um vídeo promocional que está circulando na internet – apresenta o projeto de um novo safári tipicamente africano. Só que no meio do Tocantins.

Os empreendedores partem do princípio de que, como no passado Brasil e África foram unidos em um continente só e hoje ambos têm vegetações semelhantes (savana e cerrado), seria possível recriar por aqui o ambiente africano com um investimento de R$ 350 milhões.

O plano foi apelidado de Out of Africa Brasil. Encabeçado pelo ex-secretário de Saúde do Tocantins, Nicolau Esteves, prevê a criação de uma reserva de 100 mil hectares para a acomodação de mais de 400 animais de 17 espécies, como elefantes, leões, leopardos, búfalos, rinocerontes (brancos e pretos), zebras, hienas, kudus e impalas.

Predadores e presas vivendo em uma área cercada, sem interferência humana – nem mesmo alimentação. “Vai ser a cadeia natural mesmo”, diz o médico mineiro. A ideia é que três hotéis se instalem nas proximidades e ofereçam passeios para ver os animais de perto. Mas, segundo o Estado apurou, as quantidades sugeridas de cada espécie a ser importada não parecem seguir nenhum estudo que aponte a proporção adequada entre predador e presa.

Até o momento foi feita uma consulta ao Ibama de Tocantins, mas não foi enviado um projeto técnico. Agora a sede do órgão em Brasília também analisa a solicitação. É preciso avaliar, entre outras coisas, se não há risco para a fauna nativa, de extinção das espécies a serem importadas, se há garantia da origem legal desses animais.

“É um pedido atípico e de proporções muito grandes. É delicado do ponto de vista da manutenção desses animais, da estrutura, do risco de fuga, dos acidentes que podem acontecer. Estamos vendo com muita parcimônia e sendo bastante reticentes”, diz a analista Taciana Sherlock, da coordenação de fauna do Ibama.

Sobre a ideia de que os animais tenham de caçar seu próprio alimento, Taciana foi um pouco mais descrente. “Como podemos liberar a importação de animais para trazê-los para cá para serem abatidos?”

Por ser um modelo inédito no Brasil – e talvez no mundo -, o órgão avalia como ele deve ser analisado. Ele não se encaixa em nenhuma categoria prevista de manutenção de fauna em cativeiro.

Em geral, empreendimentos que trabalham com exóticos são enquadrados na lei de zoológicos, mas a situação não é bem essa. Pelo porte do projeto, é de se questionar se não é um caso de introdução de animais exóticos, o que é proibido.

A situação fica mais complicada se houver mistura desses animais com a fauna local, como sugerem Esteves e o vídeo na internet. “Uma centena de espécies de animais nativos e africanos silvestres”, diz o material em um momento. Em outro, menciona que o projeto tem “característica de preservação ambiental da fauna brasileira e exótica”. Nesse cenário, Taciana endurece: “Se tiver isso, vai ser imediatamente vetado.”

Interesse

Mas o empreendimento tem despertado interesse. Segundo um arquivo apresentado na consulta que lista todas as espécies a serem importadas, o projeto conta com patrocínio de empresas como Toyota, Shell, Mobil, Engen e Total.

Ambientalistas que acompanham o processo mencionaram um suposto aval do governo do Tocantins pelo potencial financeiro do empreendimento.

O presidente do órgão ambiental do Estado, o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), Alexandre Tadeu, diz que por enquanto não tem como se dizer a favor ou contra. “Até agora, a única demanda que recebemos foi para criar um termo de referência para orientar os futuros estudos ambientais”, diz. Segundo ele, isso deve ser entregue nos próximos dez dias. “É complexo, mas não podemos dizer nada sem ter embasamento.”

Pesquisadores também questionam o porquê de um projeto com essas características se o intuito seria conservar a natureza. “Não tem necessidade de trazer animais de fora quando a fauna daqui é tão interessante”, diz o biólogo Peter Crawshaw Junior, um dos maiores especialistas em onça-pintada do País.

“No mínimo a ideia é de um profundo mau gosto”, comenta o ecólogo Paulo De Marco Júnior, da Universidade Federal de Goiás. “E quem diz que dá para recriar as savanas africanas aqui com todas as diferenças que ocorreram entre os sistemas dos dois continentes?”

4 Perguntas para…

Nicolau Esteves, presidente do projeto OOAB

1. Como surgiu a ideia?

Os safáris na África movimentam bilhões de dólares por ano, mas têm problemas com a segurança dos turistas. Um sul-africano ligado a redes de hotéis veio buscar um projeto semelhante na América do Sul, pela questão de clima, vegetação e chegou ao Tocantins. Por meio de um amigo comum do governo acabou chegando a mim com um projeto meio maluco. Eu topei.

2. E a ideia é que os bichos vivam como na natureza mesmo?

Não é bem um parque, como existe nos Estados Unidos, onde os animais são alimentados. Ali não. Vai ser a cadeia natural mesmo. O leão come a zebra, a hiena come a carcaça. A cadeia natural está sendo muito estudada.

3.Nessa área hoje deve existir fauna local. O que vocês pretendem fazer? Estão pensando em tirá-los de lá?

É o que vai mostrar o estudo de impacto ambiental, tem de ser resolvido. Mas achamos que é viável.

4. O senhor acha então que animais locais e exóticos poderiam conviver?

Eles são um pouco mais inteligentes que a gente, né? Eles não se autoexterminam igual à gente. Eles são muito educados, caçam só para se alimentar e não passa disso.

Do O Eco

Simba Cerrado ou Samba Safári no Tocantins

Reuber Brand

Cada um onde a natureza quis. Veado-campeiro, onça-pintada e lobo-guará são belíssimas espécies da fauna do Cerrado. Fotos, da esquerda para a direita, Fabio Olmos, Palê Zuppani e Adriano Gambarini

O complexo de vira-latas do brasileiro se estende também à fauna tupiniquim. A despeito do ufanismo que exalamos quando o assunto é nossa biodiversidade, não vamos nos enganar. O povão gosta mesmo é de leão, elefante, rinoceronte, hipopótamo e girafa.

Tamanduá-bandeira? Lobo-guará? Onça-pintada? Tatu-canastra? Anta? Veado-campeiro? Nada disso! Pergunte aos visitantes de qualquer zoológico, de qualquer cidade brasileira, quais animais eles buscam na visita e a resposta é a mesma: leão, elefante, rinoceronte, hipopótamo e girafa. E, é claro, dar pipoca aos macacos…

Palmas, capital do belíssimo estado do Tocantins, ainda não tem Zoológico. Ao contrário da amplitude eólica das paisagens naturais do Estado, Palmas parece tresfolegar no calor abrasivo do vale do Tocantins. O genial planejamento urbano de Palmas contribuiu muito para esta situação. A cidade foi inexplicavelmente alocada no fundo de uma depressão pouco arejada, onde foi formado um reservatório de hidrelétrica com 63 mil hectares de espelho de água e 2 metros de profundidade média, para margear a cidade. Esse reservatório não é um lago, é uma sopa, permanentemente aquecida pelo sol do Tocantins e agarrando esse calor. 

Na face oposta da cidade, a Serra do Lajeado contribui para evitar a dissipação do calorzinho. Realmente um espetáculo. Mas além do calor de Palmas, outra coisa marcante naquelas paragens é o pendor do governo estadual em trair a riquíssima biodiversidade do Tocantins por quaisquer 20 moedas de prata.

Por causa disso, não me causa espanto que uma proposta tão desvairada quanto o chamado “Out of Africa Brasil” (OOAB) tenha sido levada a sério. Tão a sério que mereceu uma reportagem tragicômica no Estadão de 30 de Setembro. A única coisa séria é o tamanho do investimento: 350 milhões de reais. 

“Nossa fauna é espetacular, rica e atraente (…) Apenas uma fatia anacrônica da sociedade brasileira é incapaz de perceber isso.”

Trocando em miúdos, a proposta é trazer 400 animais, de diferentes espécies, entre presas e predadores, e simplesmente soltar a bicharada em uma área de 100 mil hectares. E é só isso. Segundo o ex-Secretário de Saúde do Estado e médico, Nicolau Esteves, o negócio é simples assim, pois os animais “são um pouco mais inteligentes que a gente. Eles não se auto exterminam igual à gente. Eles são muito educados, caçam só para se alimentar e não passa disso”. Com esse raciocínio brilhante, conclui que a fauna africana não irá impactar a fauna nativa. 

Mas e daí se afetar a fauna nativa? Esse bando de bichos mirrados e sem graça? Bonito mesmo é o exótico, o estrangeiro, certo? Bons são os bichos africanos, que podem virar uma atração de verdade. Quem pagaria para ver um bicho esquálido como um lobo-guará, ou uma coisa tão esquisita como um tamanduá-bandeira? Esse tipo de argumentação apenas revela um profundo desconhecimento do valor da fauna sul americana, que é insubstituível; dos processos ecológicos e evolutivos que tornaram tanto a fauna do Cerrado quanto a fauna da África importantes e essenciais, cada uma em seus próprios ecossistemas.

O que precisamos é valorizar a nossa fauna, manejar as áreas naturais para que a fauna do Cerrado atinja os tamanhos populacionais que existiam antes de tanto fogo, tanta soja, tanta caça e tanta fragmentação.

Nossa fauna é espetacular, rica e atraente. Os elementos faunísticos do Cerrado são importantes, imponentes e muito populares em todo o mundo. Apenas uma fatia anacrônica da sociedade brasileira é incapaz de perceber isso. Vamos mostrar o nosso país para o mundo nos próximos anos. Queremos ser nós mesmos ou apenas mais um arremedo de nação, sem caráter, sem identidade, sem valores próprios e consistentes? Vamos criar parques para a nossa fauna. Devemos investir nos nossos valores naturais. Atrair turistas para ver o Brasil e os seus valores.

“Por outro lado, é reconfortante ver que a qualidade técnica e responsabilidade dos quadros do IBAMA. Para mim, essa qualidade é resultado da realização de concursos públicos e da menor ingerência negativa dos interesses políticos”

Um dos principais argumentos do chamado “Out of Africa Brasil” é a grande similaridade entre o Cerrado e a Savana Africana. Afinal de contas, são apenas 60 milhões de anos de separação entre a América do Sul e a África. Caramba! Como ninguém percebeu isso antes? Consumir pequi é um hábito típico dos Masai e é comum encontrarmos antas e macacos-pregos embriagados pelo consumo de frutos fermentados da marula, muito comum em todo o Cerrado. É claro que leões irão viver em harmonia com lobos-guarás e os antílopes pastarão as gramíneas ricas em silicatos abrasivos do nosso Cerrado. 

Esse empreendimento escabroso parece piada. No entanto, tem gente que trata o assunto como se fosse sério. É espantoso ler na matéria o comentário do Secretário Estadual do Meio Ambiente, afirmando não dispor de elementos para se posicionar a favor ou contra a proposta. Duas possibilidades, não mutuamente exclusivas, são prontamente sinalizadas. Ou o Secretário não consegue perceber o absurdo da proposta, ou o governo estadual está ofuscado pelo brilho de outro punhado de moedas de prata. 

Por outro lado, é reconfortante ver que a qualidade técnica e responsabilidade dos quadros do IBAMA. Para mim, essa qualidade é resultado da realização de concursos públicos e da menor ingerência negativa dos interesses políticos, fatores que contribuem inegavelmente para a melhoria das instituições públicas.

O apoio do governo estadual à proposta é evidente na reportagem de Leilane Marinho publicada ontem em ((o))eco. Mas bastaria um leão fugitivo devorar um nelore da família Abreu para ocorrer uma reviravolta na posição do governo estadual. 

Aparentemente essa proposta maluca serviu para atingir um dos objetivos do grupo que compõe o OOAB, que era chamar a atenção. Fica aí um conselho: se você não se preocupa em parecer ridículo e quer chamar a atenção a todo custo, em vez de pendurar uma melancia no pescoço, pendure um elefante.

Luis Nassif

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