Ofensa sistemática ao meio ambiente como forma de degradação constitucional: a importância da ADPF nº 760, por Marcelo Neves

Em uma Floresta que já acumulou um desmatamento de 19%, 10.129km2 foram desmatados em 2019, 34% a mais do que em 2018, e estima-se que a marca de 13.000km2 será superada em 2020, ultrapassando três vezes a meta de desmatamento para este ano, de 3.925/km2.

Agência Brasil

Ofensa sistemática ao meio ambiente como forma de degradação constitucional: a importância da ADPF nº 760

por Marcelo Neves

Tem ficado cada vez mais evidente que a relação entre sistema e ambiente se caracteriza pela alteridade. Essa assertiva vale também para a relação do ser humano ou da sociedade com a natureza. O ambiente natural é condição infraestrutural, a base mesmo, da vida humana e social. Imaginem se desaparecerem as condições atmosféricas que viabilizaram o surgimento da humanidade e da respectiva sociedade. Obviamente, o ser humano e a sociedade extinguir-se-ão.

Sabe-se que os sistemas jogam necessariamente detritos em seu ambiente. Todo sistema sobrecarrega o seu ambiente. Isso porque há uma relação instrumental entre sistema e ambiente. Mas, há um momento em que o abuso na destruição do ambiente pode deteriorar os sistemas e mesmo levá-los à extinção. Daí por que há uma dimensão de alteridade do sistema com qualquer ambiente, inclusive com a natureza. O ser humano e a sociedade devem cuidar do seu ambiente natural como um “outro” que é fundamental para sua existência e desenvolvimento. Identidade e alteridade são inseparáveis na relação entre sistema e ambiente, entre, portanto, ser humano ou sociedade e natureza.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 760, proposta por diversos partidos políticos e contando com várias organizações sociais como amicus curiae (“amigos da corte”), alerta para o assustador aumento do desmatamento da Amazônia brasileira em 2019 e 2020, nesses dois anos em que o país está sendo (des)governado por um presidente de extrema direita e totalmente irresponsável. Os dados chocantes apresentados na petição inicial da mencionada ADPF são muito variados, todos apontando para o descumprimento do PPCDAm (O Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal) e de leis e regulamentações que haviam levado à redução marcante do desmatamento ilegal a partir de 2004, destacando-se uma diminuição de 84% entre 2004 e 2012 (de 27.772km2 para 4.571km2 por ano). A título de exemplo, cabe enfatizar alguns números. Em uma Floresta que já acumulou um desmatamento de 19%, o que equivale a duas vezes o território da Alemanha, 10.129km2 foram desmatados em 2019, 34% a mais do que em 2018, segundo órgãos oficiais, que também estimam que a marca de 13.000km2 será superada em 2020, ultrapassando três vezes a meta de desmatamento para este ano, de 3.925/km2. Dessa maneira, será a primeira vez que, em dois anos consecutivos, a taxa cresce acima de 30% em relação ao ano anterior. Por sua vez, o número de focos de queimada em 2019 chegou a 129.089, o que significa um aumento de 39% em comparação com 2018 e de 84% em cotejo com a média de 2011 a 2018.

Esses números estão inseparavelmente associados à paralisação do Fundo Amazônico pelo governo federal a partir de 2019, à diminuição alarmante de dotações orçamentárias para as políticas públicas, os programas e as ações de proteção da Floresta Amazônica e, em conexão, à redução drástica das autuações e sanções aplicadas em caso de infrações ambientais, muitas constituindo atos criminosos típicos. Por exemplo, a quantidade de uma das sanções mais aplicadas ao desmatamento ilegal, os termos de embargo, diminuiu 21% em 2019 e 84% em 2020, comparando com os anos anteriores. Além dos cortes orçamentários, há algo de impressionante na queda da execução de despesas autorizadas. Nesse particular, é desapontador o fato de que até o dia 31 de agosto só havia sido liquidado 0,4% do valor autorizado para as chamadas “ações finalísticas”, a saber, medidas destinadas à execução de políticas públicas de proteção e conservação da floresta amazônica.

Essa situação desastrosa de lesa-floresta tem impacto negativo direto nas comunidades indígenas, mas também é capaz de provocar danos ao povo brasileiro em geral, podendo até mesmo pôr em risco a própria humanidade. O significado da preservação da Amazônia para a qualidade e, no limite, para manutenção da vida humana e social na Terra é hoje algo indubitável. Foi nesse espírito que a Constituição Federal de 1988 trouxe normas claras de proteção e defesa do meio ambiente. Entre os diversos dispositivos que impõem ao Estado, às organizações privadas e aos cidadãos brasileiros e estrangeiros o dever de preservação da natureza, destaca-se o art. 171, inciso VI, que estabelece “a defesa do meio ambiente” como princípio da ordem econômica. Sendo da competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas” (um poder-dever nos termos do art. 23, inciso I), a Constituição dedica um Capítulo exclusivamente ao meio ambiente, cujo artigo 225 determina: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Nesse dispositivo (§ 4º), “A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”. Evidentemente, para cumprir esse dispositivo e outros preceitos referentes ao meio ambiente, a União tem não apenas de legislar adequadamente sobre “proteção do meio ambiente e controle da poluição” (em competência concorrente, mas prevalente sobre a dos Estados e do Distrito Federal: art. 24, inciso VI), mas também e sobretudo executar corretamente a respectiva legislação. Se o poder público por ação ou omissão atua concretamente contra a preservação do meio ambiente e, portanto, viola preceitos fundamentais nessa matéria, cabe a propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental pelas entidades e órgãos legitimados para tanto (art. 101, § 1º, da CF; Lei nº 9.882/1999). No presente caso, há claros indícios de que se trata de uma atitude consciente e intencional do próprio governo no caminho da destruição da Floresta Amazônica e do meio ambiente em geral, como se tornou público em gravação de reunião do alto escalão do governo liberada pelo Supremo Tribunal Federal, na qual o próprio ministro do meio ambiente defendeu expressamente que fosse utilizado o período da pandemia para que fossem tomadas, às pressas, medidas contrárias à preservação do meio ambiente. Observa-se, assim, que há uma atuação sistemática do governo federal para destruir o meio ambiente e, portanto, descumprir a Constituição. Isso significa que o desastre ambiental provocado pelo governo é uma das dimensões da degradação constitucional por que passa o país no presente.

Um dos pontos que me chamou sobremaneira a atenção na ADPF nº 760 diz respeito a estudos científicos que apontam para a iminência de “ponto de não retorno” (tipping point), no qual, ao atingir “20% a 25% de desmatamento, a Amazônia passará por mudanças irreversíveis, com irremediáveis perdas dos serviços ecossistêmicos por ela prestados”, o que poderá levar até mesmo ao desaparecimento da floresta tropical na Amazônia. Isso coloca também a questão da responsabilidade do Brasil perante o direito internacional. O impacto desse quadro sombrio para a humanidade nos governos de diversos países já tem levado a sugestões de sanções ao Brasil por parte de países mais poderosos na constelação de poder internacional, como embargos econômicos, caso o governo brasileiro não recue na sua política contrária ao equilíbrio ambiental na Amazônia. E já se insinua até mesmo que, para evitar um apocalipse ecológico, poder-se-ia recorrer a uma intervenção das Organização da Nações Unidas na Amazônia, interpretando-se a prática governamental de destruição da Floresta, no limite, como uma ação que ameaça a segurança internacional, nos termos do art. 24 da Carta das Nações Unidas. Seja correta ou não essa intepretação extensiva ou mesmo essa integração analógica, a verdade é que a prática antiecológica do governo brasileiro atual pode expor o Brasil a graves sanções internacionais que poderão ter impacto desastrosos para o povo brasileiro e mesmo levar, em caso extremo, à limitação de sua soberania em determinada área do território nacional.

Por todo exposto, é fundamental que o Supremo Tribunal acolha, com urgência, a ADPF nº 760, determinando que o Governo cumpra os ditames constitucionais de proteção e defesa do meio ambiente. Assim, o STF estará interrompendo a degradação constitucional em matéria ambiental e evitando que o Brasil seja responsabilizado internacionalmente pela atitude antiecológica disparatada do governo federal.

Redação

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