A falta que faz ao Brasil o João Sem Medo, por Carlos Motta

​A falta que faz ao Brasil o João Sem Medo

por Carlos Motta

O brasileiro João Alves Jobim Saldanha, nascido há exatos 100 anos em Alegrete, no Rio Grande do Sul, está sendo homenageado país afora pela sua importância para o futebol e o jornalismo – os mais velhos certamente não se esqueceram da seleção que montou, base daquela que, sob a direção de Zagallo, sagrou-se tricampeã mundial, em 1970, no México, e de suas crônicas e comentários em jornais, emissoras de rádio e de televisão.

O pessoal dessa geração provavelmente conhece muitas histórias que cercam a trajetória de vida desse brasileiro, que recebeu de um de seus mais famosos amigos, o também jornalista, igualmente fanático por futebol, Nelson Rodrigues, o epíteto de “sem medo”.

Há vários casos que se tornaram lendas: a perseguição, revólver em punho, a Manga, então goleiro do Botafogo; a invasão da concentração do Flamengo, também de revólver em punho, para tirar satisfações de seu técnico, Yustrich, que o havia criticado; a briga com o cartola e bicheiro Castor de Andrade, em plena transmissão do programa de TV Revista Facit; e a resposta que deu a um jornalista que o informou que o presidente da época, o tenebroso general Médici, queria que ele convocasse para a seleção o centroavante Dario, o Dadá Maravilha (“O presidente manda no seu ministério, na seleção mando eu”).

Mas é uma das histórias menos conhecidas que dá a dimensão do caráter do João Sem Medo, que foi um ativo integrante do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro, e um inimigo feroz da ditadura militar – a recíproca era verdadeira, os militares e apoiadores do regime também o odiavam.

Ela se passou em 1987 e envolveu a empregada doméstica que trabalhava para a sua família, Josefa Eduardo do Amaral, a dona Zefa, que foi comprar pilhas para um brinquedo que João trouxera do Paraguai para sua neta. As pilhas estavam com defeito, e ao voltar à drogaria onde as comprara para trocá-las, dona Zefa foi maltratada pelo gerente, um português de nome Ibajones Lemos Leão. 

Ao saber do que se passara, João não teve dúvida: foi à farmácia resolver o caso.

Como o gerente se recusou a trocar as pilhas defeituosas ou a devolver o dinheiro, João chamou-o de ladrão e ao ver que o homem, com a ajuda de outros dois, partia para cima dele, sacou o seu revólver, um Colt 32 que chamava de “Ferrinho”, e deu um tiro no chão para assustá-los. 

No fim da história, todo mundo foi para a delegacia, e lá, João resumiu aos jornalistas o que se passara:

– A vítima aqui sou eu e dona Zefa. Se ela fosse loura, talvez ele [o gerente da farmácia] até trocasse a pilha. Mas como é velha e crioula, é esse desrespeito.

O resultado da confusão foi um processo, do qual ele acabou absolvido.

João Saldanha, ou o João Sem Medo, morreu no dia 12 de julho de 1990, em Roma, onde estava a trabalho para a Rede Manchete, cobrindo a Copa do Mundo.

Dá para imaginar quantas histórias ele ainda viveria se tivesse nascido mais tarde e estivesse vendo o seu Brasil ser destruído por essa quadrilha que tomou de assalto o Palácio do Planalto.

Um dos maiores problemas do país é justamente esse: a falta de quem, a exemplo desse João centenário, não tenha medo.

Redação

13 Comentários

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  1. Lendário.
    Esse era do tempo

    Lendário.

    Esse era do tempo que os jornalistas não tinham medo de fazer inimigos. Eles eram mais do que homens. Muito diferende do hoje que só dizem o que o patrão manda.

  2. O tri do México, devemos a ele,

    O tri do México, devemos a ele, João Saldanha, que teve a ousadia de montar um time com 4 meia esquerdas, Pelé, Tostão, Gerson e Jairzinho. Zagalo pegou o bolo com a massa pronta e enformado, só fez ligar o forno.

  3. Saudades do João

    Botafoguense doente, idolatrado e respeitado pela torcida.

    Um homem honrado, de muita fibra, ética e coragem

    Quatro qualidades tão em falta nos homens e mulheres de hoje no nosso triste País dos canalhas.

  4. Um dos melhores momentos de Saldanha.

    Foi quando lhe perguntaram em Londes sobre a violência no Rio de Janeiro. Ele retornou a pergunta se a Scotland Yard era de verdade considerada a melhor polícia do mundo. Quando os jornalistas ingleses lhe disseram que procedia a informação, ele aguiu:

    A Scotland Yard conquistou essa fama prendendo facínoras ou ajudando velhinhas a atravessarem as ruas?

    1. Faíscas Verbais

      …Em maio, estava sendo entrevistado ao vivo pela televisão de Hamburgo, na Alemanha. Como ele se saía muito bem, um entrevistador com ar de superioridade, resolve reagir e botar João contra a parede. Como se estivesse falando com um bárbaro da periferia do mundo, a certa altura, dispara um pergunta que nada tem a ver com o futebol:

      -O que o senhor me diz sobra a matança de índios no Brasil?

      -Eu digo que, em 469 anos de nossa história, matamos menos gente do que vocês em dez minutos de uma guerra…”

      Do livro: Faísca verbais: A genialidade na ponta da língua – por Márcio Bueno, citando relatos do jornalista João Máximo em seu livro biográfico: João Saldanha: sobre nuvens da fantasia.

       

  5. O maior gênio do jornalismo esportivo (futebol…) do planeta
    Como poderíamos conceituar um jornalista, como um “extra-classe”, um gênio em sua função? Aparentemente é algo quase impossível de se fazer, pois jornalistas deveriam tratar de fatos, reportá-los, ou analisá-los dentro da realidade tempo/espaço em que ocorreram. N]ao parece ter muita margem para o brilhantismo, o lúdico, o inesperado, como imaginamos num romancista, num poeta, num cineasta.
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    E nada é mais falso que essa premissa! Palavra é palavra, e onde ela for usada, quem tiver estilo próprio, capacidade intelectual de “trazer o óbvio à luz” (tarefa dificílima, por causa dos falsos óbvios, o gênio traz “o óbvio que ninguém viu…”) e uma visão peculiar, rica, intrigante daquele fato, bem, só poderá fazê-lo quem tiver o dom especial para tanto!
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    Mesmo no jornalismo político, tão pesado, temos o exemplo de um Saul Leblon, para citar apenas este, que nos comove com artigos que mais parecem CRÔNICAS da realidade social, política e até existencial de nossa nação e do mundo, tamanha a riqueza de seu estilo e a forma original de trazer a nós suas reflexões.
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    João Saldanha foi um desses homens raros, na vida e no futebol. Mas foi aí, na sua paixão que ele encantou o mundo. Escrevendo ou comentando o jogo ao vivo nas rádios, ou nas mesas de debate esportivo nas TVs, a diferença entre João Saldanha e os outros era tão imensa quanto natural. Não assistíamos ao programa, assistíamos Saldanha, não ouvíamos o jogo pelo rádio só pela voz de um Jorge Cúri, a hora mais esperada era “enxergar como foi o jogo”, depois de ouvir a explicação de João Saldanha.
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    Corajoso, leal, destemido, autêntico, acima de tudo, gosto de lembrar dele como meu primeiro ídolo no jornalismo, o primeiro profissional que, no exercício de sua profissão me fazia parar e admitir: “Esse cara é genial, ele não é uma pessoa comum….” – De quantos jornalistas podemos falar isso com toda a convicção? De Saldanha, podemos, sem medo de errar!

  6.   Não sei se é verídico

      Não sei se é verídico felizmente ou não não vivi a época, mas soube que ele não chamava Médici de presidente porque “ele não foi eleito”. É de aplaudir de pé um cabra desses, e comunista em pleno regime militar. 

      Hoje temos Chicos Alencares, que beijam as mãos de Aécios e dizem que é “por ironia”. 

  7. Jooão Saldanha

    Lembro me como se fosse hoje de seu comentário: Médici não me consulta para mointar seu ministério, por que deveria consultá-lo para montar a seleção?

    O Brasil ainda celebrava patrioticamente a classificação da seleção, sob o comando de Saldanha, quando a seleção perdeu por 2 a 0 num amistoso, com o Mineirão lotado, para  o Atlético Mineiro, de Dario. Desde então Saldanha nunca escondeu sua antipatia pelo Atlético. Ele não sabia perder.

  8. Saldanha

    Meus amigos!!! (ao final, uma reverência tocando a testa com os dedos, reminiscência do elmo medieval, dando uma trégua de gentileza ao espírito guerreiro) 

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