Aníbal Quijano experimenta outra liberdade, por Danilo Assis Clímaco

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Aníbal Quijano experimenta outra liberdade

por Danilo Assis Clímaco

Aníbal Quijano é um Miles Davis no pensamento de esquerda latino-americano: espírito irrequieto e plural, capaz de participar com fôlego de maratonista por mais de cinquenta anos nos principais debates latino-americanos e mundiais, contribuindo com reflexões sempre pertinentes, frequentemente extraordinárias, à compreensão do mundo em sua heterogeneidade.

Nas últimas décadas, seu trabalho foi especialmente reconhecido pela teorização da “colonialidade”, neologismo necessário para evidenciar que o padrão de poder mundial, além de capitalista, moderno e eurocentrado, é marcado de forma indelével pela lógica colonial, que classificou a população mundial mediante “raças”, processo iniciado com a colonização da América, o espaço/tempo que dá origem a nosso período histórico.

Quijano nasceu em 1930 em Yanama, pueblo andino da província peruana de Ancash. Mudou-se a Lima em 1947 para estudar medicina na Universidad Nacional Mayor de San Marcos, mas terminou estudando história, letras, direito e lutando contra a ditadura de Odría. Esteve preso várias vezes entre as décadas de 1940 e 1950, tendo sua biblioteca e seus escritos repetidamente destruídos, fatos decisivos para que iniciara sua atividade de escritura apenas em 1964, já com 34 anos, o que por sua vez explica uma maturidade rara em um iniciante. 

Falava castelhano e quéchua e, apaixonado pela poesia e pela narrativa, aprendeu português, francês e inglês para ler os clássicos dessas línguas no original. Custou-lhe renunciar aos estudos literários para ser cientista social, mas, se escolheu a sociologia como “sua” disciplina foi por acreditar que ela permite o estudo da totalidade do social, a arte inclusive. Esteve sempre muito preocupado tanto com as tendências sociológicas de viés empiricista, que se limitam a compreender os fragmentos da vida social, quanto com aquelas tendências que apresentam uma totalidade coerente, onde o todo e suas partes se encaixam. Para Quijano, toda existência social é resultado do encontro de diferentes vetores históricos, que se articulam de forma irregular, mediante conflitos que, mesmo sendo infindáveis, passam a ter uma forma reconhecível, com alguns grupos superando outros na capacidade de determinar os rumos da vida conjunta: é o estabelecimento de um padrão de poder, o qual outorga um caráter de totalidade a um determinado espaço social, sem homogeneizar as diferenças histórico-sociais que o compõem. Tal compreensão sociológica permite um pensamento atento tanto às tendências gerais da sociedade e do poder, quanto às especificidades de cada fenômeno humano.

Em 1964 se doutora com um trabalho precioso, sumamente original para a época, sobre a cholificación,[1] ou seja, sobre o caráter indefinidamente transicional da sociedade peruana, na qual o andino e o ocidental se imbricam, sem parecer procurar uma síntese. Chega à CEPAL no ano seguinte e, com reflexões sobre as relações entre o rural e o urbano e a marginalidade, não somente contribuiu à guinada marxista na teoria da dependência, mas também abriu brechas no caráter tão estritamente econômico daquele debate, trazendo outras dimensões da vida social para a discussão.

Retorna ao Peru a inícios de 1970, com o firme propósito de contribuir às forças que queriam ultrapassar pela esquerda o regime militar nacionalista de Velasco Alvarado. De 1972 a 1983, dirige a revista Sociedad y Política, publicando análises de longo alcance sobre a realidade peruana e mundial, acreditando na possibilidade de uma iminente revolução socialista global. Após viver exiliado em 1974 no México, volta ao Peru e, com outros intelectuais e trabalhadores, funda o Movimento Revolucionário Socialista (MRS) que contribui ao período intensos de lutas no país, do qual as principais conquistas são a greve geral de 1979 e o fim de treze anos de governos militares. Durante este período, e principalmente a partir da participação do MRS na luta da Comunidade Autogestionada de Villa El Salvador -fundada por povos andinos na cidade de Lima- teoriza sobre a “socialização do poder”: a necessidade de que as práticas democráticas sejam constitutivas das lutas sociais. A força comunitária andina, cuja vitalidade extraordinária havia sido constatada décadas antes por intelectuais como José Carlos Mariátegui, passou a ocupar cada vez mais espaço em suas reflexões.

No entanto, o longo período de lutas sociais no Peru, iniciado nos anos sessenta com a recuperação de terras por parte de campesíndios, e prolongado nos anos setenta por movimentos operários, foi bruscamente interrompido pela debilidade dos sindicatos, pela violência da crise iniciada em 1973 e pela incapacidade generalizada da esquerda de compreender o que acontecia. A ditadura de Morales Bermúdez -que havia derrubado a de Alvarado pela direita e se aliado ao Plano Condor- terminou quando se iniciou o “intercâmbio terrorista” entre Sendero Luminoso e o Exército, que por sua vez resultaria na ditadura de Fujimori, prolongada até o ano 2000. Foram mais de trinta anos seguidos de repressão, assassinatos e exílios de líderes políticos e intelectuais, tendo como resultado o achatamento dos horizontes intelectuais e políticos. O país dos dois pensadores políticos de maior influência na América Latina durante a primeira metade do século XX, Mariátegui e Víctor Raúl Haya de la Torre, aderiu ao mais empobrecedor neoliberalismo.

Já no início dos anos oitenta, Quijano compreendeu que o período de lutas se encerrava e se recolheu, mas sem nenhuma intenção de se render: “para as pessoas mais resistentes, talvez as mais lúcidas, foi um período de isolamento terrível, muitos de nós sentimos por mais de uma vez sermos uma minoria de um”[2]. Aceitou que o marxismo clássico tinha suposto uma camisa de força, mas não renegou a Marx e menos ainda aceitou a inevitabilidade do capitalismo. Neste início de década, defendeu que a hegemonia do liberalismo na América Latina não demoraria em ser contestada, pois não haveri a forma de que os povos aceitem passivamente por muito tempo a violência das elites nacionais e internacionais[3]. Sem poder perceber signos claros das formas que tomariam estas lutas, procura literatura sobre formas incipientes ou resistentes de organização social, mas parece se sentir convocado, sobre tudo, a repensar a América Latina dentro da história mundial.

Recorre a Mariátegui, a José María Arguedas, a Gabriel García Márquez e a análises históricos heterogêneos e propõe uma compreensão universal da modernidade: este período histórico revolucionário para a humanidade, no qual nossa espécie se percebe por primeira vez como construtora de seu próprio futuro, foi certamente centralizado pelo que vinha se consolidando como Europa, mas esteve longe de ser uma produção exclusivamente sua. A modernidade, propõe Quijano, é uma conjunção de saberes e formas de se relacionar com o mundo, produzidas por muitas e heterogêneas vias históricas e sociais, embora sistematizada e dirigida pelo interesse de elites localizadas na Europa[4].

Desta forma, o eurocentrismo, categoria que passou a ser central em seu pensamento, não é meramente um etnocentrismo que atribui uma superioridade de Europa sobre os povos de outros continentes. Ele é, principalmente, o processo contínuo de usurpação, pelas elites europeias e seus descendentes, das riquezas imateriais e materiais produzidas mundo afora[5]. A sorte da Europa, como tinha dito Aimée Cesaire, foi ser um cruzamento de caminhos.

A partir destas reflexões, Quijano propôs a categoria de “colonialidad do poder” para designar o elemento central sobre o qual se baseava o novo período histórico iniciado com América: a classificação da população mundial pela ideia de raça. A inédita codificação da diferença entre colonizadores e colonizados mediante uma categoria pretensamente biológica foi o que permitiu a exploração máxima dos “indígenas” (serventes ou tributários) e dos “negros” (escravizados), gerando uma riqueza inédita que permitiria aos países localizados na parte nordeste do Atlântico expandirem suas práticas colonizadoras a todo o globo terrestre, criando-se as condições para que as relações capitalistas determinassem (sem homogeneizar) as práticas econômicas mundiais.

A ideia de colonialidade é, em certo sentido, oposta à mais difundida de pós-colonial, sendo seu objetivo justamente evidenciar que o colonial persistiu para além das colônias e impregnou todo padrão de poder daí em diante. O termo “raça” veio a ser impugnado somente quanto deu lugar a um genocídio dentro de Europa. Não faltaram, no entanto, substitutivos: “cultura”, “etnia”, “civilização” são comumente usados para negar a interdependência das experiências sociais, de modo que Europa seja apresentada, ainda nos dias de hoje, como uma criação endógena, iniciada com a Grécia Antiga. O resto da humanidade tem deslegitimadas, ao mesmo tempo, sua história própria, sua contribuição continua ao mundo contemporâneo e a dignidade de suas opções autônomas de futuro.

Só assim podemos compreender, por exemplo, porque a escravidão continua se expandindo ou porque é possível destruir parcelas gigantescas de territórios indígenas sem que haja uma solidariedade internacional ampla o suficiente para impedi-lo.

Nos últimos quinze ou vinte anos, Quijano deixou de se considerar uma minoria de um. Acompanhando as lutas contemporâneas, acreditava que havia muito ainda por se fazer, mas afirmava, com empolgação, que o futuro tinha voltado: os últimos anos do século XX não somente traziam novas lutas, mas também uma muito saudável imaginação política, consciente da necessidade de construir cotidianamente um mundo inteiramente novo e aberto. Acreditava, especialmente, na riqueza do encontro entre as lutas pelo território por parte dos povos indígenas e a compreensão cada vez mais generalizada de que a vida em nosso planeta está sendo ameaçada pelas elites humanas.

Quijano faleceu no dia 31 de maio de 2018, aos 87 anos de idade. Após a crise de 2008 evidenciar os limites do neoliberalismo, sua obra vem sido lida com um interesse ainda maior. Nos últimos anos recebeu numerosas homenagens dentro e fora do Peru. Foi despedido com música andina por dezenas e dezenas de amigos e amigas na Casona de San Marcos, o prédio histórico da universidade em que estudou, ensinou e lutou[6].

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Danilo Assis Clímaco – doutor em Estudios Latinoamericanos pela Universidad Nacional Autónoma de México. Pesquisador e ativista no encontro das lutas descoloniais, pro-feministas e socialistas. Editou a antologia de Aníbal Quijano, Cuestiones y Horizontes. De la Dependencia Histórico-Estructural a la Colonialidad/Descolonialidad del Poder. Buenos Aires: CLACSO, 2014, que ganhou em 2017 o Premio de Ensayo Casa de las Américas. Disponível em PDF: https://www.clacso.org.ar/libreria-latinoamericana/libro_detalle.php?id_libro=871

 

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Alguns dos artigos de Aníbal Quijano em português:

Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS, Boaventura & MENESES, Maria Paula (orgs). Epistemologias do sul. Coimbra, Biblioteca Nacional de Portugal, 2009.

http://www.mel.unir.br/uploads/56565656/noticias/quijano-anibal%20colonialidade%20do%20poder%20e%20classificacao%20social.pdf

Colonialidade do poder, eurocentrismo ye América Latina. In: LANDER, Edgardo (Coord.). Colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas.  Buenos Aires: Unesco-Clacso, 2005.

https://es.slideshare.net/josimarnunes/colonialidade-do-poder-eurocentrismo-e-amrica-latina-37590613

Colonialidade, poder, globalização e democracia. Revista Novos Rumos. São Paulo, ano 17, n. 37, 2002.

http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/view/2192/1812

O labirinto de América Latina: há outras saídas? In: SANTOS, Theotônio dos (Coord.). Impasses da globalização – hegemonia e contra-hegemonia. v. 2. Rio de Janeiro: Loyola, 2003.

http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/view/4891/3513

 


[1] “cholo(a)”, no Peru, é a forma coloquial de se denominar aquelas(es) andinas(os) que participam, também, do mundo urbanizado, em teoria não-indígena. O termo guarda, em determinados contextos, caráter pejorativo.

[2] TRÍAS, Ivonne. Entrevista con Aníbal Quijano. Un nuevo imaginario anticapitalista. Em: Brechas, Uruguay, 2002. Disponível em: http://www.pensamientocritico.org/aniqui0602.htm.

[3] Revolución democrático-burguesa y revolución anti oligárquico-antiimperialista. En Revista de Ciencias Sociales Puerto Rico, HOMINES Vol.VII Núm.1 y 2 feb/dic de 1983. Disponível em: http://anibalquijano.blogspot.com/2016/02/1983-revolucion-democratico-burguesa-y.html

[4] Modernidad, identidad y utopía en América Latina. Lima: Sociedad y Política Ediciones, 1989. Disponível em internet: https://www.yumpu.com/es/document/view/14701488/modernidad-identidad-y-utopia-en-america-latina-

[5] Colonialidade do poder, eurocentrismo ye América Latina. In: LANDER, Edgardo (Coord.). Colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas.  Buenos Aires: Unesco-Clacso, 2005.

https://es.slideshare.net/josimarnunes/colonialidade-do-poder-eurocentrismo-e-amrica-latina-37590613  

[6][6] A Universidade Nacional Mayor de San Marcos funciona hoje em um outro local. O belo edifício da “Casona” é hoje principalmente dedicado a atividades culturais. Uma vez tive a sorte de entrar à Casona com Aníbal. Ele se deteve na fonte do pátio central para me contar como, desde ali, tinham esperado na década de 1940 os tanques militares entrarem para terminar uma greve estudantil.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. Parabéns ao GGN por

    Parabéns ao GGN por reproduzir artigos como esse. Tenho estudado a questão da colonização e o presente artigo traz alguns dos grandes pensadores dessa questão na Al. Pena que no Brasil hoje poucos são os intelecuatuais interessados em ir além na questão do colonialismo e seus reflexos para o Pais que somos.

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