Como o Fantástico embarcou na pós-verdade de Adoniran Barbosa

Adoniran Barbosa sempre foi um fantástico gozador. Nos anos 70, a Folha criou o Folhetim, um caderno no estilo do Pasquim. Uma noite, o editor do Folhetim encontrou-se com Adoniran em um boteco perto da Folha.

Sentou em sua mesa, explicitando sua profunda admiração pelo compositor. Em sua homenagem, Adoniran compôs uma música na hora e entregou ao jornalista a letra, escrita em guardanapo.

No domingo, foi capa do Folhetim. No Bar do Alemão, morremos de rir do trote: era uma música que há tempos já fazia parte do nosso repertório.

Depois de morto, é possível que Adoniran tenha repetido o trote, e levou no bico toda a imprensa brasileira, a começar do programa Fantástico, que dedicou a ele uma homenagem sentida, inclusive com o repórter percorrendo as ruas do Bexiga, enquanto o programa anunciava a grande descoberta arqueológica musical: letras inéditas de Adoniran, descobertas após sua morte e musicadas por diversos compositores.

Em cima dessas letras, o Estúdio Eldorado montou uma mega-operação, conseguindo conquistar a adesão de inúmeros grandes cantores brasileiros, que toparam interpretar as obras.

O único senão é que dificilmente as letras seriam de Adoniran.

Na verdade, vieram ao mundo algumas décadas atrás, por meio de Juvenal Fernandes, ex-sócio da editora Fermata. E sempre acompanhadas de enormes dúvidas sobre sua autenticidade.

Alguém pode imaginar Adoniran “O Arnesto nos convidou” perpetrando algo como

“Os jesuítas e as missões /

os aventureiros bandeirantes /

entradas, fronteiras e os sertões /

histórias de sagas triunfantes”?

Ou, então:

“Passou como deve passar o que passou,

e como passou só sei que deve passar

como a onda sobre o mar,

como a ave sobre o mar,

o rio nas pedras lisas,

as árvores sentindo a brisa,

o vento pelas folhagens,

as flores e as aragens…

Passou o ódio que ficou de alguém

de estar só sem ninguém

Passou ontem, passa hoje,

também amanhã vai passar.”

Como lembra  o compositor Eduardo Gudin, amigo e parceiro, com raras exceções Adoniran jamais compôs letras metrificadas. Seu estilo era o da narrativa, contando o casos, fazendo crônicas com o dia-a-dia.

Apresentado às letras dez anos atrás, convidado a compor para uma delas, Gudin não quis correr risco. Recentemente, quando os produtores solicitaram um depoimento seu sobre Adoniran, recusou-se novamente a endossar a autenticidade das letras.

Em reportagem do Estadão, a Eldorado informa ter providenciado um exame grafotécnico atestando que se tratava da letra de Adoniran. No Fantástico, a única prova da autenticidade das letras foi a declaração de um dos produtores, informando que a filha de Adoniran, Maria Helena Rubinatto, teria assegurado a autenticidade.

Maria Helene teve pouquíssima convivência com o pai. E apenas seu endosso não basta.

De qualquer modo, o caso deverá ter desdobramentos. A obra de Adoniran compõe o patrimônio cultural de São Paulo.

Luis Nassif

13 Comentários

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  1. Da Rede Globo é possível esperar qualquer coisa.

    Talvez, encontram algo com louvores ao Judiciário nacional, e digam que foi uma “exaltação profética” ao Guantánomoro.

  2. E o pior, disse que estava

    E o pior, disse que estava numa gravadora que ele costumava dormir …

    Tá de brincadeira? 

    Conheci Adorinan Barbosa numa gravadora, onde ele pacientemente aguardava ser atendido. Na Faria Lima, perto de minha casa. No final de 78.

    Quer que eu desenhe, “fantástico”?

     

  3. Como o Fantástico embarcou na pós-verdade de Adoniran Barbosa

    “A letra, não condiz com a careta”; aguarde-se a peritagem sobre a autoria dessas poesias descobertas.

  4. Nem com banda de música tocando atrás

    Escutei até o fim o “repertório” de 14 músicas do “Adoniran”. Gosto de música há 61 anos, nasci gostando de música, atestam meus 1.500 CDs, e outro tanto desse que se perderam pelo caminho. Sou rato de shows da rede Sesc SP, meu recorde foi establecido em junho/2012, 16 shows em 30 dias. Debutei em shows de música no ginásio de esportes da Associação Luso Brasileira de Bauru, não sei se foi em 70 ou 71, com Chico Buarque e o MPB-4. Porém, entre gostar de música e entender, vai uma distância abissal. Não entendo chongas de música, não entendo de harmonia, acordes, um ré de um dó. Entretanto, se vc puser um grupo de pessoas que entendem raozavelmente, tocar essas 14 músicas e der a elas 100 (cem) chances para dizerem de quem é, ninguém vai acertar, sequer chegar perto.  É constrangedor. Esse timaço da MPB que participou dessa fraude foi de boa fé. 

  5. Não é pós-verdade mas sim pós-modernidade.

    O problema Nassif é que os “jornalistas” da Globo já criaram tantas realidades que não mais acreditam em fatos,  acreditam apenas neles mesmos. A realidade  para eles é uma ficção literária.

  6. Quem conhece a obra de

    Quem conhece a obra de Adoniran sabe que as tais inéditas não são dele! Segue texto de Antonio Candido, o mais importante crítico do Brasil, em texto publicado na contracapa do álbum de 1975 do grande compositor/poeta paulista.

    ” Adoniran Barbosa é um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos; mas não é Adoniran nem Barbosa, e sim João Rubinato, que adotou o nome de um amigo do Correio e o sobrenome de um compositor admirado. A idéia foi excelente, porque um artista inventa antes demais nada a sua própria personalidade; e porque, ao fazer isto, ele exprimiu a realidade tão paulista do italiano recoberto pela terra e do brasileiro das raízes européias. Adoniran é um paulista de cerne que exprime a sua terra com a força da imaginação alimentada pelas heranças necessárias de fora. 

    Já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que é o sal da nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se alia com naturalidade às deformações normais de português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumo e não encontremo ninguém, exatamente como por todo esse país. Em São Paulo, hoje, o italiano está na filigrana.

    A fidelidade à música e à fala do povo permitiram a Adoniran exprimir a sua Cidade de modo completo e perfeito. São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer aonde irá. Mas a cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; e que desde então vem cedendo lugar a uma outra, transformada em vasta aglomeração de gente vinda de toda parte. A nossa cidade, que substituiu a São Paulo estudantil e provinciana, foi a dos mestres-de-obra italianos e portugueses, dos arquitetos de inspiração neo-clássica, floral e neo-colonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos palacetes franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás, das casas meio francesas de Higienópolis, da salada da Avenida Paulista. São Paulo da 25 de março dos sírios, da Caetano Pinto dos espanhóis, das Rapaziadas do Brás, na qual se apurou um novo modo cantante de falar português, como língua geral na convergência dos dialetos peninsulares e do baixo-contínuo vernáculo. Esta cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes, o trem da Cantareira, o Triângulo, as Cantinas do Bexiga, Adoniran não a deixará acabar, porque graças a ele ela ficará, misturada vivamente com a nova mas, como o quarto do poeta, também “intacta, boiando no ar.”

    A sua poesia e a sua música são ao mesmo tempo brasileiras em geral e paulistanas em particular. Sobretudo quando entram (quase sempre discretamente) as indicações de lugar, para nos porem no Alto da Mooca, na Casa Verde, na Avenida São João, na 23 de Maio, no Brás genérico, no recente metrô, no antes remoto Jaçanã. Quando não há esta indicação, a lembrança de outras composições, a atmosfera lírica cheia de espaço que é a de Adoniran, nos fazem sentir por onde se perdeu Inês ou onde o desastrado Papai Noel da chaminé estreita foi comprar Bala Mistura: nalgum lugar de São Paulo. Sem falar que o único poema em italiano deste disco nos põe no seu âmago, sem necessidade de localização.

    Com os seus firmes 65 anos de magro, Adoniran é o homem da São Paulo entre as duas guerras, se prolongando na que surgiu como jibóia fuliginosa dos vales e morros para devorá-la. Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua anti-voz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade. Talvez a borboleta seja mágica; talvez seja a mariposa que senta no prato das lâmpadas e se transforma na carne noturna das mulheres perdidas. Talvez João Rubinato não exista, porque quem existe é o mágico Adoniran Barbosa, vindo dos carreadores de café para inventar no plano da arte a permanência da sua cidade e depois fugir, com ela e conosco, para a terra da poesia, ao apito fantasmal do trenzinho perdido da Cantareira.” (Antonio Candido, 1975)

  7. Olá, Nassif,
    Gostaria de

    Olá, Nassif,

    Gostaria de acrescentar que já existe um CD gravado há 15 anos pelo cantor Passoca com músicas desse mesmo “tesouro inédito”, chamado “Passoca canta inéditos de Adoniran”, 2001.

    Essa matéria da época mostra como a polêmica é antiga e como nem a herdeira Maria Helena Rubinato tinha como garantir a autenticidade das letras.

    http://www.dgabc.com.br/(X(1)S(hs2us34qerg5xjtxptga3zhv))/Noticia/379858/ineditas-de-adoniran-barbosa-viram-polemica

    Do CD do Passoca, ao menos uma certamente é de Adoniran: “Currupaco”, parceria com Elzo Augusto (o próprio Adoniran canta a primeira parte dessa canção, publicada com o nome “Gente Curiosa”, no LP Documento Inédito, este realmente inédito, lançado pela Eldorado em 1984).

    Abraços

     

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