Democratização da música, o grande legado de Benito Juarez

Fundador do Coral da USP e regente da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas por mais de 25 anos, o maestro mineiro morreu no dia 3, aos 86 anos 

Benito Juarez regendo o Coral USP – Foto: Teatro Municipal de São Paulo

do Jornal da USP

No mesmo ano em que morreram os regentes Naomi Munakata e Martinho Lutero, o canto coral brasileiro perde agora mais um grande nome. Na manhã da segunda-feira passada, dia 3, morreu, aos 86 anos, o maestro Benito Juarez, que deixa um legado de ensino, formação e democratização da música. Ele tinha como premissa levar a música para onde o povo está – não só em igrejas ou teatros, mas em praças, ruas, galpões, escolas, hospitais e presídios. Ficou conhecido por unir a música popular à música erudita. Defendia uma arte engajada, mas não panfletária, através de uma música de excelência. Formou gerações de músicos, além de uma grande plateia de canto coral.

Nascido em novembro de 1933, em Januária, Minas Gerais, Benito Juarez iniciou seus estudos na música por meio do canto coral e da viola, formando-se na Escola Livre de Música de São Paulo. Depois, em Salvador, teve contato com mestres como Hans-Joachim Koellreutter, Ernest Widmer e Damiano Cozzella e foi membro da Orquestra Sinfônica da Bahia. Deixou uma bolsa de estudo na Alemanha para reger na Paraíba, e foi no sertão que encontrou inspiração no popular. De volta a São Paulo, passou a integrar o Movimento Villa-Lobos, dedicado à formação de maestros pelo interior do Estado. Na USP e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma longa trajetória, abrindo caminho para um grande trabalho de extensão musical.

Em 1967, em plena ditadura militar, fundou o Coral da  USP (Coralusp), ao lado de José Luiz Visconti, então diretor do Grêmio Politécnico, formado inicialmente por alunos da Escola Politécnica e alunas da Escola de Enfermagem, que logo foi incorporando outros integrantes, de todas as idades, religiões e etnias, de dentro e também de fora da Universidade. Desde sua fundação, o Coralusp sempre esteve ligado ao setor de extensão da USP, a atual Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária.

O atual diretor artístico do Coralusp, Eduardo Fernandes, lembra que Benito Juarez criou o coral em uma época conturbada, com uma forte agitação política, ao mesmo tempo em que surgiam vários nomes importantes da música popular brasileira nos Festivais da Canção.

Eduardo Fernandez - Foto: Reprodução / Youtube - Canal Coral Unifesp

Eduardo Fernandez – Foto: Reprodução / Youtube – Canal Coral Unifesp

“De um lado, ele conseguiu dar voz a um sentimento bastante importante, sempre ligado ao momento histórico e social que ele viveu, mas de forma nenhuma tornou o Coralusp panfletário. E, de outro, flertou com a música popular urbana, uma grande novidade nos programas de concerto, trazendo os primeiros arranjos de Dorival Caymmi, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, feitos e executados pelo Coralusp”, informa Fernandes. Mas, acrescenta, Juarez não deixou de lado o repertório coral clássico ao executar peças renascentistas, demonstrando a importância daquela estética. Audacioso, o maestro foi o primeiro a levar música popular para o Theatro Municipal de São Paulo, ao lado de canções eruditas.

Como conta Fernandes, Juarez sempre se manteve firme no que  acreditava e é exemplo de uma visão inovadora, unindo o popular, porque está na nossa raiz, e o erudito, por ser uma música centenária, de qualidade. “Ele queria aproximar o canto coral das pessoas e tinha uma preocupação de não fazer só o estabelecido, mas de ir atrás de repertórios inovadores”, reitera Fernandes. Essa pluralidade, tanto no corpo do coral como no repertório, é uma marca de Benito Juarez, que até hoje é levado em frente pelo Coralusp. “O coral é absolutamente democrático, dando chance para todas as pessoas. É por isso que dá para entender por que hoje o Coralusp tem mais de 15 grupos, com mais de 500 pessoas. Isso vem da história que o Benito criou”, garante Fernandes. E ressalta que ele levava essa música para onde o povo estava: “Não cantava só nos teatros, fazia concertos nos restaurantes da USP, nas praças, nos hospitais, nos presídios”.

Além disso, Benito Juarez fazia questão do aprimoramento musical. “Embora não seja uma escola de música, o Coralusp oferece uma série de aulas de canto, história da música e técnica vocal.” Para Fernandes, o Coralusp acaba funcionando como uma porta de entrada, gratuita e democrática, para aqueles que querem estudar música. Segundo ele, grande parte das pessoas que está na equipe veio de outros cursos, como Economia, Arquitetura, Física e Fonoaudiologia, por exemplo. Mas há também, como diz, muitos outros músicos que passaram pelo Coralusp e hoje estão em grandes corpos musicais, como o Coral da Osesp e o Coro Municipal, ou atuando como regentes no Brasil e até no exterior. “Benito tem uma grande importância na vida de muitos músicos. Ele abriu espaços, era um empreendedor. Toda a equipe tem muita gratidão a ele por isso”, afirma Fernandes.

O maestro Benito Juarez – Coralusp e OSMC, em Campos do Jordão (1987) – Foto: Reprodução

O Coralusp marcou e marca a cena musical brasileira. Na década de 70, Benito Juarez realizou à frente do Coralusp três turnês internacionais, nos Estados Unidos (1971), Europa (1973) e África (1979), sempre com uma proposta inovadora de repertório. Ganhou vários prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), além de receber, em 1996, o prêmio de música Maestro Eleazar de Carvalho, concedido por uma comissão de intelectuais e artistas constituída pelo Ministério da Cultura, como melhor regente do País. Nas próprias palavras de Benito Juarez, em entrevista concedida neste ano ao Jornal da USP: “Ao longo desses 35 anos nós tivemos um itinerário extremamente rico de experiências artísticas, humanas e políticas”.

Para a regente e atual vice-diretora do Coralusp Marcia Hentschel, o canto coral fica órfão com a morte de Benito Juarez. “Além de criar o Coralusp, que tem mais de 50 anos, ele deu importância à música popular assim como à música erudita”, afirma, reiterando que o canto coral deve a Juarez essa junção do popular com o erudito. Segundo ela, o maestro também transformou o Coralusp em um pólo de ensino informal e de extensão. “Vários dos regentes foram cantores do próprio Juarez, e a grande maioria é de fora da USP ”, informa. “Ele realmente abriu as portas para ensinar o canto coral para quem quisesse, gratuitamente. E também teve a preocupação de levar a música para onde o povo está. A música para todos, de qualidade, não importando qual estilo. Esse é o seu grande legado.”

Marcia Hentschel - Foto: Cecilia Bastos/USP Imagens

Marcia Hentschel – Foto: Cecilia Bastos/USP Imagens

Trajetória em Campinas

Também na década de 70, Benito Juarez ajudou a fundar o Instituto de Artes da Unicamp e seu Departamento de Música, onde atuou como chefe e professor, e também onde, a partir de 1989, deu início ao primeiro curso universitário de Música Popular no Brasil. Segundo o diretor do Instituto de Artes da Unicamp, Paulo Ronqui, foi graças ao empenho do então reitor Zeferino Vaz e à resiliência de Juarez que, em 1971, com o compositor Hanz Koellreutter e o violinista Natan Schwartzman, iniciaram-se as primeiras atividades do Departamento de Música, célula mater do Instituto de Artes.

Por mais de 25 anos, de 1975 a 2001, Benito Juarez esteve à frente da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, como regente e diretor artístico. O maestro assumiu aquela orquestra quando o grupo passou a ser mantido pela Prefeitura da cidade, e participou do seu processo de profissionalização, sendo um dos responsáveis pelo atual reconhecimento nacional e internacional do conjunto. Foi com a Sinfônica de Campinas que Juarez ficou conhecido como o “Maestro das Diretas”, ao levar o grupo para tocar o Hino Nacional Brasileiro, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, no comício das Diretas Já, em 1984. Além disso, fundou o Coral da Universidade Estadual de Campinas e a Orquestra Sinfônica da Unicamp (OSU).

José Alexandre Carvalho - Foto: Rubens Chaves / Reprodução Ná Ozzetti

José Alexandre Carvalho – Foto: Rubens Chaves / Reprodução Ná Ozzetti

Como conta o chefe do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp, professor José Alexandre Carvalho, Benito Juarez levou para Campinas músicos da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, formando um núcleo que transformou a cidade nos anos 70 e 80, tornando-a conhecida pela música. “Ele era uma figura presente no Departamento de Música, um grande incentivador da música”, relata Carvalho. A marca do maestro de unir o popular e o erudito continuou na Orquestra Sinfônica de Campinas e em todos os outros grupos que regeu. “Foi Benito Juarez quem primeiro fez essa ponte entre música popular e música sinfônica. Muitas das obras que Cyro Pereira levou para a Orquestra Jazz Sinfônica foram estreadas pela Orquestra Sinfônica de Campinas por encomenda de Benito Juarez”, informa Carvalho, citando, por exemplo, as peças Gonzaguiana Jobiniana.

Quando saiu da orquestra, em 2001, Juarez fundou a Banda Sinfônica do Exército Brasileiro, na qual atuou como regente titular e diretor artístico. “É uma grande perda. Ele não foi alguém que só ficou no discurso, ele levou suas ideias adiante”, acrescenta Carvalho.

O pró-reitor de Extensão e Cultura da Unicamp, professor Fernando Hashimoto, conta que tocou como músico da Sinfônica de Campinas por muitos anos com o maestro Benito Juarez, e também conviveu com ele na Unicamp. “Posso destacar duas marcas importantes de sua trajetória: o compromisso na execução e gravação do repertório nacional e seu trabalho de aproximação da música dita popular com a erudita. Sua contribuição para a cultura e para as artes em específico na região de Campinas é imensa. Ele aproximou e deu acesso a setores da sociedade que nunca tiveram oportunidade de escutar uma orquestra ao vivo. Muitos projetos e instituições nas quais ele atuou de maneira significante perduram até os dias atuais”, relata, ressaltando que o maestro é “um gigante da música brasileira”.

Fernando Hashimoto - Foto: Reprodução/Facebook

Fernando Hashimoto – Foto: Reprodução/Facebook

Raul do Valle - Foto: Reprodução/NICS Unicamp

Raul do Valle – Foto: Reprodução/NICS Unicamp

“Benito Juarez, figura ímpar no cenário musical brasileiro, deixou-nos um legado artístico-cultural da mais alta relevância”, comenta Raul do Valle, professor titular do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp. E continua: “Como regente ‘eletrizante’, aclamado pela crítica, foi o responsável pela aproximação da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas ao grande público, desde 1975. Tive a honra e o prazer de conviver diuturnamente com Benito por mais de 30 anos e sou-lhe grato por ter executado minhas composições sempre com carinho e maestria. Nossa amizade sempre foi sincera e fiel”.

Também para o professor titular do Instituto de Artes da Unicamp Jônatas Manzolli, Juarez foi uma figura marcante no cenário musical brasileiro. “A singularidade do maestro Benito Juaerez foi a conexão atenta ao seu tempo conectada à capacidade de projetar a música como meio de transformação sociocultural. Um pioneiro. Engendrador da cultura musical sem-fronteiras, levou a música sinfônica a todos os públicos e espaços. Ampliou conexões entre o erudito e o popular. Levou milhares de pessoas aos concertos no Teatro de Arena do Centro de Convivência de Campinas. Fez da música e da orquestra um apelo atento às identidades e às singularidades da música brasileira e do repertório sinfônico”, comenta Manzolli. “Durante toda a sua atuação como educador e regente, foi marcante a sua capacidade de realizar e construir novos horizontes. Relembro a sua presença à frente da Sinfônica de Campinas no Concerto das Diretas Já. Fica na memória o seu gesto musical que demonstrou como a música e a cultura são testemunhas e forças vivas de transformação da nossa sociedade.”

Jônatas Manzolli - Foto: Reproduão/Unicamp

Jônatas Manzolli – Foto: Reproduão/Unicamp

O diretor do Instituto de Artes da Unicamp, Paulo Ronqui, conta que recebeu com tristeza a notícia da morte de Juarez. “Fica nosso pesar à família do maestro, alguns deles ex-professores do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp, como a professora Elizabeth Rangel Pinheiro de Souza, sua esposa, e André Juarez, seu filho.” O prefeito de Campinas, Jonas Donizette, lamentou a morte de Juarez e decretou luto oficial de três dias na cidade.

“Meu pai foi um humanista,

um encantador de plateias”

Benito Juarez – Foto: Rosa Gauditano para Revista Good Year

“Meu pai foi um humanista, definitivamente. E um músico brilhante, genial eu diria. Muito forte, encorajador, sério, profundo. Uma figura de um carisma e de uma força. Mas também uma pessoa brincalhona e divertida”, afirma sua filha Carmina Juarez, que por quase 30 anos foi orientadora de técnica vocal no Coralusp e hoje é professora da Escola de Arte Dramática (EAD) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Benito Juarez foi casado com a pianista e musicista Elizabeth Rangel Pinheiro de Souza e teve cinco filhos: além de Carmina, André Juarez (vibrafonista) e Tiago Pinheiro (clarinetista), ambos regentes do Coralusp, Felipe de Souza (violinista, arranjador e produtor) e Mateus Pinheiro de Souza (psiquiatra e psicanalista), além de três netos.

Para Carmina – nome que ganhou da avó, mãe de seu pai e não por causa da cantata Carmina Burana, como todos pensam –, “a imagem que fica é a dele indo passear no rio São Francisco com o cachorrinho no barco, e do meu avô, que ralhava com ele”. Segundo ela, fica também sua contribuição por todo esse trânsito entre a música popular e erudita, “não só pelo fato de juntar no Coralusp a música erudita e a música sacra, mas a música popular de todos os gêneros”. Ele foi também, diz, um músico que quebrou toda sorte de preconceito, que criou um curso pioneiro de música popular da Unicamp – a própria Carmina fez o curso. “Levou a música em Campinas para as ruas, escolas, presídios.”

Carmina Juarez – Foto: Gil Grossi

“Para meu pai, a música é um direito de todos”, garante Carmina. E dá como exemplo o próprio Coralusp, que hoje está espalhado pela capital através de seus vários grupos. “Aí tem muito da luta dele pela democratização da cultura e da educação”, diz. “Certamente, muitos músicos, muitas pessoas que participaram do Coralusp, que tiveram essa história cravada na música e esse contato com a figura do meu pai, estão em luto, mas gratos por poder viver de música.” Carmina lembra de um comentário de Eduardo Fernandes, diretor artístico do Coralusp, que disse: “Primeiro vamos falar de um ganho, de uma vida digna para o músico, depois falamos de estética”, e afirma que seu pai compartilhava essa ideia de valorizar o músico. “Meu pai foi um, junto a tantos outros artistas, músicos e musicistas, a lutar por uma condição melhor para os artistas.”

“Tenho muito orgulho do meu pai. Herdei seu temperamento forte e temos uma história muito rica, de encontros e de risadas.

“Tenho muito orgulho do meu pai. Herdei seu temperamento forte e temos uma história muito rica, de encontros e de risadas. Meu pai me levou para música. Carmina entrou no Coralusp aos 12 anos de idade, no Madrigal, um coro de excelência que viajou pelo mundo, e ensaiava aos sábados e domingos, de manhã. “As apresentações tinham muito bis. Ele mergulhava fundo na música. Era muito intenso, determinado e destemido”, define.

“Nessa última década, estivemos muito próximos. Ele pôde muito ser meu pai e amigo”, diz. Ele morava perto do  consultório de Carmina, que atua também como psicanalista. Ela conta que há dois anos seu pai teve sérios problemas de saúde e ficou internado por cerca de dois meses na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Ao sair do hospital, precisou ir para uma clínica, porque exigia cuidados médicos. Sempre que podiam saiam, “íamos ao Parque do Ibirapuera e tomávamos água de coco”, diz, e continua: “Ele foi um homem gigante, um encantador de plateias, e para os filhos, um exemplo, um pai querido, um amigo e um colega também”.

Segundo ela, seu pai “foi até o fim com toda lucidez e revolta diante desse momento político e dessa situação trágica da pandemia, de todo esse caos”. Foi uma morte tranquila, “morreu num cochilo”. “Nós pudemos nos despedir, e, curiosamente, a música, que acalenta bastante nesses momentos, foi conduzida por meu irmão Mateus. Foi uma despedida para toda a família, e aí incluo Lu Gallo, seu braço direito e esquerdo, amiga de toda a vida, e de muito amor e gratidão. Ele foi cremado e as cinzas serão jogadas no Rio São Francisco, em Januária, de acordo com os desejos dele. Fica essa imagem dele pulando do vapor no rio São Francisco, e, desta vez, ele faz esse pulo para o infinito.”

Redação

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