Dino está aí. Viva Dino Sete Cordas!, por Luís Felipe de Lima

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Dino está aí. Viva Dino Sete Cordas!

por Luís Felipe de Lima

Ele tinha um aperto de mão firme, um sorriso largo, quase prognata. Corpo rijo, sem ser musculoso, feição quadrada, o conjunto da obra lhe valia o apelido de Boi, que aliás detestava. Um taurino típico. Mas não podia reclamar, afinal: foi ele quem deu ao sanfoneiro Luiz Gonzaga a alcunha de Lua, por causa da cara redonda deste. Adorava uma boa conversa e era o rei do idioma de duplo sentido: no fundo, fulano é um cara estourado, chega a ser gozado!

Teve infância humilde, foi criado no Bairro do Santo Cristo, zona portuária carioca. Seu pai era operário do estaleiro Lloyd. Não sei agora quantos irmãos tinha, mas ele me contava que eram muitos. Chegou a trabalhar, ainda adolescente, numa fábrica de sapatos, até que virou músico, começou a ganhar muito bem de uma hora para outra, cinco ou seis vezes o salário da fábrica. Não pestanejou. Chegou em casa com sua carteira assinada pelo flautista Benedito Lacerda, reuniu os pais e disse que daquele dia em diante eles não precisariam mais trabalhar. Foi arrimo de família durante um bom tempo.

Antes de viver de música já tocava bem violão e chegou a acompanhar no picadeiro do circo, por alguns trocados, cantores também iniciantes, como Moreira da Silva, ou mais conhecidos, como Augusto Calheiros. Era umbandista. Uma vez o vi recomendar a um conhecido que acendesse uma vela na intenção de Nossa Senhora do Bom Parto, o rapaz havia se queixado de um problema na gravidez da esposa. Pouca gente sabia, já que ele era um famoso violonista acompanhador – o maior que já houve entre nós, em seu estilo -, mas ele solava dezenas e dezenas de choros e peças compostas para o violão, como as de Agustín Barrios, João Pernambuco, Garoto, e Aimoré.

Desde meados dos anos 30, quando se tornou profissional, era um virtuose das baixarias, as frases graves de contracanto tocadas nos bordões. E era fã do veterano Tute, um dos raros músicos que tocavam à época o violão de sete cordas. Pois nosso herói contava que, de tanto respeito que tinha à figura de Tute, só se aventurou a aprender a tocar o sete-cordas com quase 20 anos de carreira, no início dos anos 50, depois que seu ídolo falecera. Foi assim que ele acabou inventando uma maneira própria, rica, inspirada, de tocar aquele violão diferente com uma corda a mais.

Fez tanto, mas tanto, que se tornou o primeiro músico a ganhar o sobrenome desse mesmo instrumento: Dino Sete Cordas. O grande patriarca, pai de todos que vieram depois dele, assim como eu, e abraçaram os sete arames de aço. O invulgar codificador, o epicentro de uma nova arte das baixarias. O criador de uma sonoridade única, gestada a partir de seu violão Do Souto de caixa feita em imbuia, cordas alemãs Pyramid Gold e dedeiras de aço. Pois a história do violão de sete cordas em nosso país se divide claramente entre antes e depois de Dino.

Muito da linguagem antiga dos violões de baixaria foi catalisada e a partir daí expandida por Dino. Com ele, o instrumento antes bissexto ganhou visibilidade inédita no panorama musical brasileiro. Foi um dos primeiros músicos de regional de choro, cuja formação é tradicionalmente empírica, a aprender a ler e escrever música. Foi em seu tempo, e talvez ainda hoje, o músico acompanhador brasileiro que mais obteve reconhecimento do público, da imprensa e da academia, tanto pela sua colossal capacidade de criação, quanto por seu talento exuberante.

Dino deixou sua assinatura em milhares e milhares de fonogramas, espalhados por discos de 78 rpm, LPs, compactos, CDs, trilhas de cinema e TV, para além de seu trabalho em shows e emissoras de rádio. Um operário pródigo e incansável que, por viver num país que despreza sistematicamente seus tesouros, terminou por morrer em condições modestas, amparado por seu filho único Dininho Silva, outro grande músico. Dininho soube seguir o exemplo de seu próprio pai, que cuidara de seus mais velhos num momento de necessidade.

Pois neste 5 de maio Horondino José da Silva completaria 100 anos de idade. Que este centenário seja comemorado com toda a pompa e circunstância que o homenageado merece. Sabemos que as homenagens oficiais serão modestas, em tempos de inédita e sufocante retração do setor das artes e, de resto, de toda economia criativa. Cabe a nós, portanto, seus discípulos, fãs, amigos, seguidores e curtidores, balançarmos o bambuzal para que o centenário de Dino se transforme numa ponte firme, capaz de transmitir às gerações futuras o seu imenso e fundamental legado musical, o seu sorriso aberto, o seu senso de humor, a vela de Nossa Senhora do Bom Parto acesa para todos. Vamos prestigiar as iniciativas que já se fazem presentes, como a da Casa do Choro, no Rio de Janeiro, e inventar mais o que for possível para celebrar a memória desse gigante brasileiro.

O centenário está só começando. É como dizia o antigo samba, aquele aperto de mão não foi adeus. Dino está aí. Viva Dino Sete Cordas!

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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