Dona Ivone Lara – Uma jóia rara, por Daniela Name

Nise, Mavignier, Ivone e os “clientes” transformados em personagens no filme de Berliner

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do Algumas palavras sobre cultura

Nise, Almir, Ivone – 1

por Daniela Name

Se você ainda não viu Nise, o coração da loucura, de Roberto Berliner, em cartaz em todo o país, precisa saber que esse é um filme que oferece muito mais que a história de Nise da Silveira (1905-1999). A psiquiatra pioneira que revolucionou o tratamento de esquizofrênicos e outros enfermos no  então Hospital Psiquiátrico Pedro II, no bairro carioca do Engenho de Dentro,  é interpretada com o necessário impacto agridoce por Glória Pires, e apenas uma das pontas de um novelo que emaranha muitas  vidas. Entre elas, as de alguns artistas revelados no hospital, caso dos gigantescos Fernando Diniz (Fabrício Boliveira, magistral), Emygdio de Barros (Claudio Jaborandy, leve lenços de papel), Adelina Gomes (a incrível Simone Mazzer), Raphael Domingues (Bernardo Marinho), Octávio Inácio (Flávio Bauraqui), Lucio Noeman (Roney Vivela) e Carlos Pertuis (Julio Adrão, que cumpre muito a bem a tarefa de dar vida a Pertuis, o Carlinhos, talvez o mais lírico e complexo dos pintores do ateliê).

Há ainda o fio de carretel puxado pelo personagem Almir (Felipe Rocha), o artista e designer Almir Mavignier (1925), que teve a ideia de criar um ateliê de arte no hospital e assim colaborou de maneira decisiva para as mudanças ocorridas ali. Mavignier também foi o vetor para que a loucura transformasse de maneira decisiva o curso da história da arte brasileira recente, já que levou para o Engenho de Dentro o crítico de arte Mario Pedrosa (interpretado por Charles Fricks) e os artistas Ivan Serpa e Abraham Palatnik, que não aparecem no filme. A experiência é uma pedra-de-toque para a abstração geométrica carioca e, consequentemente, para a arte construtiva brasileira, como comentarei em um segundo artigo sobre o filme, que será publicado aqui no blog nos próximos dias. Por fim, mas não com menos importância, Nise, o coração da loucura apresenta uma personagem discreta, mas que é encruzilhada para muitos mundos. A enfermeira Ivone (Roberta Rodrigues) é ninguém menos que Dona Ivone Lara (1921), compositora e cantora que foi também pioneira em outras duas revoluções: a causada pela sua escola, o Império Serrano, na tradição de sambas-enredo do Rio de Janeiro; e a da presença de mulheres sambistas nas rodas e nas alas de compositores. 

Ivone Lara recebe  uma homenagem dos médicos do Engenho de Dentro  Acervo família da artista, s/d

Dona Ivone Lara se formou em Enfermagem e depois em Serviço Social. Trabalhava no Hospital Psiquiátrico Pedro II (hoje Hospital Nise da Silveira) quando, em 1946, doutora Nise criou a Seção de Terapia Ocupacional que Mavignier, também funcionário do hospital, transformaria em ateliê de arte.  Militante de esquerda, Nise havia sido presa em 1936 pela ditadura Vargas. Ficou dois anos presa e oito anos afastada do serviço médico. Quando voltou, em 1944, graças à anistia,  técnicas violentíssimas como o eletrochoque, a lobotomia e o coma induzido por insulina haviam se tornado práticas corriqueiras. A psiquiatra passou a se opor radicalmente a elas e optou por se dedicar ao “trabalho menor”da Terapia Ocupacional, como explicam Luiz Carlos de Mello e Gladys Schincariol em um vídeo feito para a exposição Ocupação Ivone Lara (que você assiste aqui). Mello e Schincariol são  responsáveis pelo Museu do Imagens do Inconsciente, até hoje em atividade no Engenho de Dentro, e trabalharam com Nise no hospital e na Casa das Palmeiras.

Se Nise foi a fortaleza que se opôs à violência médica, Ivone foi a menina negra e órfã do subúrbio que, criada em um internato na Tijuca, muito cedo teve seu talento musical descoberto pela professora Lucília Villa-Lobos, mulher do maestro Heitor Villa-Lobos. Enquanto Nise estava  na cadeia por se opor à ditadura Vargas, Ivone cantava nos coros regidos por Villa-Lobos no Estádio São Januário, em festas que, se tinham suas virtudes, serviam também como espetáculos um tanto fascistas para aclamar o ditador. Os caminhos dessas duas mulheres começaram a se encontrar em suas precocidades: se Ivone criou seus primeiros sambas-de-roda ainda menina, mesclando sua consistente formação escolar à tradição ancestral africana e rítmica de Madureira, Nise entrou na faculdade de medicina com 15 anos, e se formou aos 21, em uma turma da qual era a única mulher.

Em 1946, quando Nise e Mavignier implantaram o ateliê de pintura no Engenho de Dentro, Ivone tinha 25 anos e era compositora há mais de dez. Sua família foi um dos núcleos fundadores do bloco Prazer da Serrinha, e dele nasceria, em 1947, a escola de samba Império Serrano. Já casada, mãe de dois filhos,  ela trabalhava como enfermeira e assistente social para assegurar as despesas domésticas. Teve papel fundamental na revolução empreendida no e pelo “coração da loucura” a que se refere o filme de Berliner.  Nise acreditava que seus “clientes” com doenças psiquiátricas não deveriam ficar em leitos, a não ser para dormir, já que não estavam acometidos por problemas do corpo, e sim da mente. Além da Terapia Ocupacional, buscava aproximar os “clientes” de suas famílias, para que o afeto germinado desses elos colaborasse também com a reintegração psíquica, minimizando a cisão provocada pela esquizofrenia.

“Cliente” do Engenho de Dentro cai na folia do Loucura Suburbana, no carnaval de 2015: herança de Nise da Silveira  e de Ivone Lara. Foto Renata Missagia

Ivone percorreu quilômetros de estrada pelos municípios do Rio e pelos  estados vizinhos, localizando mães, pais, avós e tios que haviam abandonado seus familiares no hospital, acreditando que não havia mais nada a ser feito por eles – afinal, esse era o diagnóstico que ouviam dos próprios médicos.  Além disso,  colaborou para que a música também pudesse ser remédio para aquelas pessoas dadas como perdidas. Prima de um operário da fábrica de tecidos Nova América, hoje um shopping popular no subúrbio do Rio, Ivone usou seus contatos para conseguir  patrocínio e comprar instrumentos musicais para o Engenho de Dentro. Com isso, criou uma oficina de música, que passou a apoiar festas e eventos de socialização entre os “clientes”, seus familiares e os funcionários no hospital (o filme mostra uma festa junina). Na oficina  estão as raízes mais profundas de um bloco de carnaval, o Loucura Suburbana, que até hoje desfila anualmente pelas ruas vizinhas ao hospital. Quem nunca foi ao cortejo deveria incluir essa experiência transformadora na agenda momesca do ano que vem.

Se hoje o Brasil é machista, não é difícil imaginar como era ainda pior no fim dos anos 1940. Por isso é bonito pensar no encontro entre Ivone e Nise como uma espécie de pororoca. Duas correntezas que precisaram criar ondas gigantes, mas que souberam também cantar baixinho, doces como a água que arredonda pedras imensas: “Espalhe amor por onde for /Quem sabe amar destrói a dor”. Os versos de um lindo samba de Dona Ivone servem de espelho para o que aconteceu no Engenho de Dentro.

Daniela Name – Blog Algumas palavras sobre cultura

 
Redação

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