Há 50 anos, Elis plantava a semente da MPB, por Milton Ribeiro

Enviado por Alfeu

do Sul 21

Há 50 anos, em Guarujá, aparecia o ‘Eliscóptero’ que faria nascer a MPB

Elis Regina no I Festival da Excelcior

Elis Regina no I Festival da Excelsior

Milton Ribeiro

A fluidez e elegância do texto de Chega de Saudade — referimo-nos ao livro de Ruy Castro, não à belíssima canção de Tom e Vinícius — é interrompida quando o autor fala na MPB. Subitamente, Ruy torna-se agressivo. Em sua opinião, a MPB e sua popularidade vieram destruir aquela bela mistura de samba, cool jazz e bebop chamada Bossa Nova. Até hoje, cerca de 50 anos depois, alguns amantes do gênero manifestam-se com certo ressentimento sobre o fim do movimento que deu algum protagonismo, em âmbito mundial, à música produzida no Brasil.

Em meados da década de 1960, a Bossa Nova deu sinais de uma cizânia à esquerda. Estimulados pelo Centro Popular de Cultura da UNE, novos (e grandes) artistas trouxeram uma crítica à influência do jazz norte-americano na bossa nova, propondo uma reaproximação com compositores de morro, como o sambista Zé Ketti. Eram eles Edu Lobo, Marcos Valle, Dori Caymmi, Francis Hime e outros.

Tom, Edu e Vinícius: sem problemas.

Tom, Edu e Vinícius: sem problemas.

Um dos pilares da Bossa Nova, Vinícius de Moraes, logo descobriu em Edu Lobo um possível parceiro e, de forma saudável, passou a circular tanto ao lado da Bossa como no outro lado. Carlos Lyra e Nara Leão, que promoveram parcerias com artistas do samba como Cartola e Nelson Cavaquinho e do baião e xote nordestinos como João do Vale, logo abraçaram a nova ideia. Foi uma fase riquíssima de nossa música. Em 1966, Vinícius estendia sua mão ao novo movimento lançando o antológico LP Os Afro-sambas, dele e Baden Powell.

Alguns dizem que a data de fundação da MPB foi o início do mês de abril de 1965, quando Arrastão venceu o 1º Festival Nacional da Musica Popular Brasileira da extinta TV Excelsior. Arrastão era uma parceria de Edu Lobo e Vinícius de Morais e realmente não tinha nenhuma feição bossanovista. Impossível cantá-la com um banquinho e violão. Elis Regina detona na interpretação não apenas em termos de potência vocal como de performance física. O coreógrafo Lennie Dale mandou que ela cortasse os cabelos e agitasse os braços. E ensinou-lhe como fazer.

“É, eu rodopiava os braços”, disse Elis, anos depois. Aquela natação um tanto ridícula valeu a ela o apelido deEliscóptero ou de Hélice Regina. Poucos ousaram criticá-la, pois a qualidade da música de Edu era indiscutível. Um dos poucos foi Ronaldo Bôscoli, que casaria com Elis pouco tempo depois. Assim como Tom Jobim, Bôscoli achava a gaúcha meio brega. Outro foi um Caetano Veloso cuidadoso. “Aquela dança marcada me pareceu cafona, mas cheia de talento”. Depois todos eles mudaram de opinião. Os gestos exagerados de Elis tornaram-se assunto em todo o Brasil, principalmente pelo ineditismo visual: num movimento desengonçado e pouco natural, mas movido aparentemente pelo entusiasmo, os braços da cantora pareciam dois remos no ar.

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Lamentavelmente, há apenas registros incompletos do eliscóptero, mas dá para ver facilmente no vídeo abaixo que Elis seguiu não apenas os conselhos de Dale como leu direitinho o bilhete de Vinícius que lhe foi passado minutos antes de entrar no palco. Este dizia: “Arrasta essa gente aí, Pimentinha”. A melodia agressiva e a letra de Vinícius (“Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim / Nunca, jamais, se viu tanto peixe assim”) não tinha nada a ver com a Bossa Nova.

É estranho que o sofisticado e melodioso Edu Lobo tenha ido para a história como um dos exterminadores da Bossa Nova. Mais estranha ainda é a lenda de que Vinícius escreveu a letra de Arrastão em dez minutos em sua casa, na companhia de Edu.

Porém, outros dizem que a MPB, expressão derivada de Música Popular Brasileira, teria nascido em 1966, com a também chamada segunda geração da Bossa Nova. A MPB teria nascido quando um grupo novo de artistas efetivamente tomou conta da cena musical brasileira. Gente como Geraldo Vandré, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, etc. tornaram-se rapidamente famosos e alguém que tivesse ficado sem notícias do Brasil desde 1964 e aqui desembarcasse em 1966, não entenderia nada. Os novos ídolos eram muito jovens e recentes. Eles apareciam com frequência em festivais de música popular e na TV. Sua consistência e estabelecimento como figuras públicas teria feito naufragar a Bossa Nova. E pouco tinham de Bossa Nova.

Vencedoras do II Festival de Música Popular Brasileira, realizado em São Paulo em 1966, Disparada, de Vandré, e A Banda, de Chico, podem ser consideradas marcos desta ruptura e mutação da bossa em MPB.

Jair Rodrigues defendendo Disparada, de Vandré: "Prepare o seu coração / pras coisas que eu vou contar"

Jair Rodrigues defendendo Disparada, de Vandré: “Prepare o seu coração / pras coisas que eu vou contar”

Na prática, não havia animosidade entre os movimentos. Assim como Vinícius, Chico Buarque trafegava em ambos. Mas o público discutia a manutenção da sofisticação musical ou a fidelidade à música de raiz brasileira. Quando a ditadura apertou, os dois movimentos se tornaram uma frente ampla cultural contra o regime militar, adotando a nova sigla MPB como uma de suas bandeiras de luta.

Zuza Homem de Melo afirma que o estilo da música dos Festivais foi o que sepultou a Bossa: “A grande transformação veio de um programa de televisão com competição de canções e participação do público torcendo abertamente. Ali, as canções da Bossa Nova não teriam êxito. Surgiu um novo formato”, conta. “O governo não percebeu que as canções poderiam se tornar uma bandeira da classe universitária contra a censura e contra a ditadura militar”, completa Zuza.

Exato. Os festivais perderiam sua força no momento em que o Governo Militar percebeu o poder de contestação que estava associado e eles, mas a MPB seguiu e segue até hoje.

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Em 1967, na terceira edição do festival, já na Record, a Tropicália seria lançada, as mensagens políticas estariam mais cifradas e a MPB seria invadida por guitarras elétricas. Mas isso já é outra história.

Uma rápida lista de artistas que participam ou participaram da MPB demonstra um grande domínio qualitativo do gênero. Os críticos que votaram os 100 melhores discos brasileiros de todos os tempos da revista Rolling Stone, colocaram 52 discos de MPB na lista.

De memória e podendo cometer injustiças, listamos compositores, cantores e arranjadores ligados à MPB. Ele é impressionante: Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Jorge Ben Jor, Elis Regina, Paulinho da Viola, Vinícius de Moraes, Milton Nascimento, Gonzaguinha, Maria Bethânia, Rogério Duprat, Baden Powell, João Bosco, Gal Costa, Tom Zé, Guinga, Toquinho, Marisa Monte, Nara Leão, Cristóvão Bastos, Francis Hime, Mutantes, Mônica Salmaso, Paulo César Pinheiro, MPB-4, Carlos Lyra, Sidney Müller, Luiz Melodia, Marcos Valle, Geraldo Vandré, Belchior, Zizi Possi, Clara Nunes, Joyce, Sueli Costa, Moraes Moreira, Simone, Fagner, Lô Borges, Jards Macalé, Djavan, Lenine, Maria Rita, Sérgio Sampaio…

1965-arrastao-elis-regina-1

 

Redação

6 Comentários

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  1. faltou muita gente

    onde estão os caymmis?

    mpb4, elomar, sivuca, hermeto, beth carvalho, ivan lins, taiguara, theo …

    … o restante do clube da esquina …

    tem muita gente …

  2. Minha estrela eternamente brilhante

     

    Visionária,

    libertária

    solidária,

    quase pária

    em muitos momentos.

    Elis fonte

    elis nascente e foz

    Elis pimenta da boa

    pra temperar homens amigos amores

    músicas apresentações alegrias e lágrimas.

    Agora que os anos me chegam,

    depois de ter lido duas biografias da estrela maior,

    de ter convivido com suas músicas por  três décadas

    e por tê-la visto estirada naquele caixão

    com a camiseta bordada em paetês

    onde se lia

    ELIS REGINA

    na faixa da bandeira nacional brasileira,

    posso dizer que tento ser-te

    sendo-me também,

    Elis, essa mulher!

     

    Odonir Oliveira

     

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=1bk750ksXoc%5D 

  3. A bossa nova é um belo
    A bossa nova é um belo recanto do Brasil. Mas o Brasil é imenso! O que me deixa aturdido até hoje é o tamanho do talento da Elis. Ela queria o Brasil todo. Seu coração era apaixonado pela sua terra, que cantava aos sete ventos. Me deu um nó na cabeça. Que maravilha! Saudades.

  4. elis elis

    Alfeu,

    Elis Regina foi infernal.

    Para analisar o tamanhão da fantástica baixinha, basta ver a quantidade de músicas interpretadas por ERegina e que nenhuma outra cantora quis saber de interpretar por um único e compreensível motivo, o medo da inevitável comparação.

    Quanto aos conselhos do grande Lennie Dale para Arrastão, eu nunca tinha ouvido falar, apenas sabia que Elis gostava muito dele, o que nada significava pois muitos gostavam de LDale. Eu tenho um compacto da Elenco, Arrastão de um lado e Reza do outro, com Edu Lobo e o inesquecível Tamba Trio, já de Elis tenho alguns CDs.

    Tem um filme sobre Elis que acaba de ficar pronto, imagino que as músicas venham a provocar momentos de muita emoção para aqueles que gostam e/ou tiveram a sorte de assistir ao vivo a cantora espetacular.

    Cada um tem as suas preferências, prá mim Elis é algo que nunca mais ocorrerá.

  5. Faltou gente…

    Leny Andrade, Pery Ribeiro, Johnny Alf, Zimbo Trio (Amílton Godoy, Adilson Godoy, Luís Chaves), Édson Machado, Alayde Costa e tantos e tantos mais…

  6. MPB é um guarda-chuva

    MPB é um guarda-chuva grandão, ou antes um balaio de gatos. Sempre cabe mais um, e cada um mais diferente do que o outro. Quanto a Elis, além do carisma, tinha uma das mais poderosas vozes da canção brasileira. Particularmente, gosto muito da sua fase “soul brasileiro”, quando esqueceu aquelas bobagens puristas que a levaram a encabeçar uma ridícula passeata contra a guitarra elétrica, sendo que daí a pouco tempo estava todo mundo usando guitarra e baixo elétricos, inclusiva ela mesma. Aliás, quem patrocinou a ideia foi a Record, onde Elis tinha o programa O Fino da Bossa, pra criar polêmica, pois a mesma TV tinha o programa da Jovem Guarda… Segue “Osanah”, do guitarrista argentino-brasileiro Tony Osanah, batizado pela Elis por causa dessa canção.

    [video:https://www.youtube.com/watch?v=51H1zAY2Jfs%5D

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