JK, Chateaubriand e Zé Maria Alkmin divagam sobre a construção de Brasília

Por Sebastiao Nunes

Setembro de 1952. Fim de tarde na Cinelândia. Numa mesa do Amarelinho, três homens bebericam chope. Percebe-se que são pessoas importantes, de terno e gravata, perfumados, contrastando com os fregueses habituais.

            – Conhecem a última do Benedito Valadares? – perguntou Zé Maria, deputado federal, conhecido pela língua afiada.

            – Conta aí, Zé – respondeu o mais espigado deles, Juscelino, então governador de Minas, sorriso preparando-se para virar gargalhada.

            “– Benedito chegou a Juiz de Fora e perguntou ao correligionário: – Que bom te ver, Fulano. E seu pai, tem passado bem? – Meu pai morreu, doutor Benedito. – Morreu para você, filho ingrato. Mas está bem vivo no meu coração!”

            Riram tão alto que atraíram a atenção das mesas vizinhas.

O NEGÓCIO É O SEGUINTE

            JK viera ao Rio para reivindicar recursos federais. Depois de visitar Getúlio no Catete e Horácio Lafer no ministério da Fazenda, passara pelo Senado e pela Câmara. A mesma ladainha de sempre: Minas estava à mingua, desse jeito não haveria progresso, impossível governar sem dinheiro, metade das obras paralisadas etc. Encerrada a missão e certo de ter feito bom trabalho, decidira aproveitar o fim de tarde calmamente. Ligara para Chateaubriand e, Zé Maria a tiracolo, mandara-se para o Amarelinho. Mal haviam pedido chope quando chegou, esbaforido, o jornalista, dispensando o motorista.

            Ouvida a inevitável anedota do Zé, disse Nonô:

            – O que vou contar é estritamente confidencial. Nem um pio na câmara, nem uma linha nos jornais, combinado?

            – Combinado.

            – Sabem que sairei candidato a presidente, não sabem?

            – Sabemos.

            – Pois fiquem sabendo mais. Já tenho o slogan da campanha pronto: 50 anos em 5. Não é batuta?

            – É batuta.

            – Para conseguir tanto desenvolvimento, tenho algumas ideias. Por exemplo, trazer para o Brasil as grandes indústrias automobilísticas.

            – Mas não temos estradas que prestem – interferiu Chatô.

            – Construirei rodovias. Milhares de quilômetros. Construídas e pavimentadas.

            – Assim, tudo bem – concordou Zé Maria.

            – O mais importante vem agora. Segredo absoluto, hein? Nem um pio. Confio em vocês, mesmo sabendo da língua comprida do Zé e da safadeza do Chatô.

            Curiosos, os dois ficaram calados, esperando.

            – Vou transferir a capital federal do Rio para o interior de Goiás!

            Zé Maria e Chatô engoliram em seco e arregalaram os olhos.

UM SONHADOR VAI EM FRENTE

            – Pensam que é brincadeira? – perguntou JK. – Brincadeira coisa nenhuma. Tomo posse num dia e a obra começa no outro. Transformarei o planalto central num canteiro de obras gigantesco. Virá gente do Brasil todo, principalmente do Nordeste, que é mais carente. Será um paraíso para quem trabalha.

            – E para quem furta – acrescentou Chatô.

            – E para os espertalhões – sugeriu Zé Maria.

            – Vocês estão é embasbacados. Não sabem o que é pensar grande. Vão ter de ruminar essa ideia durante muito tempo até entender sua grandiosidade.

            – Está certo, Nonô, concordo com a ideia – disse Chatô. – Mas para construir uma cidade, principalmente uma capital nacional, serão necessários rios de dinheiro.

            – Empréstimos internacionais, meu caro. A juros altos e a perder de vista. Deixo a dívida para os futuros presidentes, eles que se virem. Mas teremos uma nova capital. Teremos indústria automobilística. Milhões de empregos na obra gigantesca. Toda uma nova e dinâmica burocracia trabalhando…

            – E ninhos de ratos por toda parte – concluiu por ele Zé Maria.

            – Como, ninhos de ratos? – espantou-se JK.

            – Ora, Nonô, não seja ingênuo – disse Zé Maria. – Se para fazer uma ponte, um viaduto, um campo de pouso vagabundo, as empreiteiras dobram e triplicam os preços, como você construirá uma capital sem conviver com centenas de ladrões?

            – Isso não importa – disse Chatô. – Já na construção das pirâmides havia roubo. Os mestres de obras atrelados aos escribas deitavam e rolavam. Quem não rouba não faz. A regra é essa. Se a ideia é grandiosa, os furtos serão grandiosos.

            – Concordo – aceitou Zé Maria. – Corrupção sempre existiu, faz parte da natureza humana. Mas fico imaginando se construir obra gigantesca a toque de caixa e sem controle rígido não será transformar corrupção em esporte nacional.

            – Esporte chique – complementou Chatô. – Não consigo pensar num sujeito pagando propina para vender acarajé ou saquinho de pipoca. Aliás, não tenho nada com isso, mas, se a mania espalha, será incontrolável. Em 10 anos teremos o país entupido de corruptos. E uma praga dessas é impossível de exterminar.

            – Não reclama, Chatô. Você não perderá nada. Para jornalistas de sua escola será um banquete permanente e delicioso. E poderão tirar sua casquinha, claro, que ninguém é santo. Como sobremesa, multiplicarão seu poder por 100.

 

VIVENDO O FUTURO

            – Meus caros – ponderou JK. – Não convidei vocês para botarem ventilador na minha farofa. Preciso é de gente entusiasmada. Colocarei Israel Pinheiro dirigindo e controlando as obras. Amigão do peito. Fará o que eu mandar.

            – Pago para ver, mas gostaria de ver – disse Zé Maria. – Quando você falou em construir a Pampulha, com lagoa, igreja e cassino, todo mundo duvidou. Agora é aquela beleza, até virou atração turística. O cassino então, nem se fala.

            – Tô contigo e não abro – entusiasmou-se Chatô. – Vamos assombrar o primeiro mundo. Faremos parte do primeiro mundo. Sempre pensei grande. Primeiro mundo e corrupção em grande escala, aqui vamos nós!

            – Os projetos já estão começados – acrescentou satisfeito JK. – Alguns até bem avançados. Convidei Oscar Niemeyer e Lúcio Costa pra tocarem o plano piloto. Quero uma cidade democrática. Grandes espaços abertos para o povo trabalhador.

            – Xiiii! – assobiou Zé Maria. – Agora está me cheirando demagogia.

            – Que demagogia o quê, Zé! O que sou é otimista.

            Foram interrompidos por uma velha que se aproximou devagar. Vestia roupas coloridas e largas, trazendo uma jiboia enrolada no pescoço.

            – Dão licença, meus senhores? Querem que leia suas mãos?

            Os três se entreolharam, indecisos.

            – E essa cobra aí? Não tem perigo? – perguntou JK.

            Não, meu senhor, perigo nenhum – respondeu a velha. – É só uma jiboia velha, velha que nem eu e mais sonsa do que eu.

            – E a senhora lê mesmo o futuro?

            – Leio. E respondo com uma frase para cada um. Só uma frase, que pode ter sentido ou pode não ter. A interpretação fica por conta dos senhores.

            – Eu topo! – entusiasmou-se Chatô, doido por novidades.

            A velha, com gestos lentos, colocou a cobra numa sacola. Então pegou a mão de Juscelino, que ela percebera ser o mais importante dos três. Fechou os olhos e passou lentamente os dedos pela palma da mão direita. Abriu depois os olhos e fixou longamente a mão. Afinal disse:

            – Toda propriedade é um roubo.

            Abandonou a mão de JK e tomou a de Chatô, repetindo os gestos.

            – Todo roubo é uma propriedade.

            Largou a mão de Chatô e pegou a de Zé Maria.

            – O que importa não é o fato, mas a versão.

            Nenhum dos três disse nada. Juscelino tirou a carteira e entregou à velha uma nota de 100 cruzeiros. Os olhos dela brilharam: era muito.

            – Deus lhe pague, meu senhor. Boa noite a todos.

            Então se afastou em busca de novos clientes. O sol se escondera atrás do Amarelinho. A Cinelândia continuava movimentada. Os três amigos se olharam em silêncio até que Zé Maria disse, com um sorriso maroto:

            – E não é que a velha está coberta de razão?

 

**********

Nota às profecias da velha quiromante: a primeira frase é tradução aproximada de “La propriété, c’est le vol”, de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), anarquista francês. A segunda, do poeta paulista Glauco Mattoso, a quem peço desculpas pelo uso fora do contexto. A terceira, dizem que é do próprio Alkmin.

Sebastiao Nunes

1 Comentário

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  1. O futuro da humanidade

    Ja que citou o Egito. Dizem que um e outro são a mesma pessoa. Vai saber…

     

                                                                                                                  

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