Lygia não morreu, ela viverá enquanto existir tempo, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Lygia Fagundes Telles morreu, mas não será esquecida num cemitério. Apenas o corpo dela será enterrado. A obra dela continuará viva e vibrante entre nós.  

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Lygia não morreu, ela viverá enquanto existir tempo

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Ao ficar sabendo da morte de Lygia Fagundes Telles revirei a estante e reencontrei “Antes do baile verde” (Editora Nova Fronteira, 10a. edição, Rio de Janeiro, 1986), um dos meus livros preferidos da grande escritora. Dessa obra, o conto que considero mais apropriado mencionar aqui é “Venha ver o por do sol”.

O tema dessa pequena obra prima é singelo: ninguém deve subestimar o rancor de um homem menosprezado. Partindo dessa ideia, a escritora retrata aquilo que poderia ser considerado um crime perfeito. Sem utilizar violência, o amante abandonado engana a ex-companheira aprisionando-a viva na catacumba de um cemitério. Raquel demora para perceber a crueldade de Ricardo. Todavia, ela também havia enterrado o relacionamento de ambos.

A narrativa é ágil e contundente. Lygia Fagundes Telles parece ter sido inspirada nos contos de Edgar Allan Poe ou de Alvares de Azevedo.

Não é possível saber o que ocorre com Raquel. Quando Ricardo deixa o cemitério ela ainda está gritando presa na cela funerária. Talvez ela tenha conseguido escapar dessa prisão mortal. Senão naquela noite, no dia seguinte talvez. Cemitérios não são locais totalmente abandonados. Os coveiros estão sempre abrindo novas covas. Mausoléus devem ser construídos e reparados, lápides precisam ser transportadas e colocadas nos locais adequados para marcar o último endereço de cada novo habitante do cemitério.  

Os mortos entram em silêncio e ficam. Mas os parentes deles entram e saem, geralmente fazendo barulho quando participam do enterro ou visitam a sepulturas de seus entes queridos. Raquel ficou presa, é verdade. Mas  ela pode ter sido eventualmente libertada. O susto talvez lhe sirva de lição. Mas a sepultura emocional em que ela enterrou Ricardo será obviamente definitiva. Ela não voltará para ele caso sobreviva ao que ocorreu.

A chave para entender esse conto é uma frase dita por Ricardo.

– Mas é nesse abandono na morte que faz o encanto disso. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja – disse apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas… Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.”

Todo relacionamento é um ser vivo. Algumas vezes ele morre, outras transforma em zumbi um dos amantes (ou ambos, cada qual em sua solitária prisão emocional). A morte de um relacionamento só é perfeita sem lembrança ou saudade. Se sobreviver, Raquel provavelmente lembrará da prisão não do ex-amante. Ela não sentirá saudade dele. O ato dele de prender a ex-companheira numa catacumba foi cruel, sem dúvida. Mas o resultado daquela crueldade pode ser benéfico para ambos.

“Venha ver o por do sol” não nos oferece abertamente essa perspectiva, mas ela pode ser inferida da última frase do texto: “Crianças ao longe brincavam de roda”. A vida sempre segue seu curso sem se importar com as pequenas tragédias. Além disso, “… a estúpida intervenção dos vivos…” é quase sempre inevitável.

Aquelas crianças viram Raquel e Ricardo entrarem no cemitério? Elas notaram que Ricardo saiu sozinho do local? A curiosidade do leitor é atiçada. Ele pode dar como certa a morte de Raquel. Mas também pode admitir a hipótese de que ela será imediatamente salva por causa da curiosidade natural das crianças.

Lygia Fagundes Telles morreu, mas não será esquecida num cemitério. Apenas o corpo dela será enterrado. A obra dela continuará viva e vibrante entre nós.  

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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