Um banquinho, uma voz, um violão, e a nossa suprema vergonha, por Carlos Motta

Um banquinho, uma voz, um violão, e a nossa suprema vergonha

por Carlos Motta

Escuto muita música. Desde os meus 12, 13 anos, ou seja, há mais de meio século.

Ouço quase tudo com quase nenhum preconceito – está bem, axé é demais, esse tal de sertanejo universitário é de lascar, aquele batidão que dizem que é funk, então é dose, e até fico sem palavras para expressar o que sinto pelo “rock” nacional da década de 80 e por essas cantoras de hoje com voz de menininhas de 7 anos.

Minha discoteca tem lá uns 1.500 LPs – alguém sabe o que é um “Long Play”? -, a maioria comprada no fim da década de 60 e na seguinte na saudosa Casa Carlos Gomes, em Jundiaí, onde o Paulinho Copelli me dizia, todo mês, “quanto você quer pagar agora”, quando eu largava uma pilha de discos em sua mesa, para depois, ao escutar a minha resposta, marcar numa santa caderneta – alguém sabe o que é isso? – o que restava de minha dívida, interminável dívida.

Eram outros tempos, nos quais a palavra inflação ainda era desconhecida por grande parte de nós – não é que ela não existisse, a palavra e o que ela significava, mas convenhamos, o aumento do custo de vida não fazia parte da propaganda do Brasil que ia para a frente moldado pelos militares.

Tenho também algumas centenas de CDs, perto de mil, calculo, espalhados pelo apartamento, numa desordem que nem eu entendo.

Me considero um entendedor nível 4, uma escala de 10, da música em geral, pelo menos daquela que é mais difundida por estas terras: além, é claro, dos nossos ritmos, vamos dizer, mais consolidados, samba e seus subgêneros, choro, baião, xote, forró, frevo, marchinhas e marchas, conheço um pouco dos ritmos alienígenas, principalmente os americanos, como o jazz e suas milhares de variações, o rock e as suas também milhares de variações, idem o blues, ibidem o country, etc etc. Música erudita, a mesma coisa: já escutei e ainda escuto desde Boccherini, Vivaldi, Mozart, os três BBBs, os românticos do século XIX, as grandes árias das grandes óperas, o teatral Wagner, até essa turma mais moderna que acha que melodia não é essencial.

Ah, e o genial Villa-Lobos – sem patriotismo.

É isso, não só sou um ouvinte meio compulsivo, como acho que a música é uma das expressões culturais mais importantes da civilização – qualquer civilização. 

Bem, lá se foram umas 400 palavras e uns 2 mil caracteres e ainda não disse o que queria dizer nesta crônica ordinária. 

Falei de música, falei da minha paixão pela música, e ainda não cheguei ao essencial, que é seguinte:

que lixo de país é este que deixa um dos maiores músicos de sua história virar notícia de jornal porque está, aos 86 anos de idade, em estado de penúria?

Que porcaria de país é este que permite que um artista reconhecido como um gênio em todo o planeta, que é, junto com alguns outros poucos brasileiros, aclamado quase como unanimidade, aqui e lá no badalado “Primeiro Mundo”, lá no invejado States, virar notícia porque não tem nem onde morar?

Dá uma tristeza infinita constatar que este país – e quando digo país quero me referir a não só às autoridades, mas ao todo poderoso mercado, aos meios de comunicação, à toda a engrenagem que faz a sociedade funcionar – chegou a este ponto.

Não bastava o vexame de ter como presidente um anão moral e ético, de vermos as instituições serem usadas para perseguir os “inimigos” da classe dominante, de nos assustarmos com a onda fascista que se aproveita da ignorância – e burrice, extrema burrice – da maioria do povo para crescer e intimidar quem ainda tem cérebro…

Não, não bastava perceber que o Brasil retrocede à Idade Média e das trevas, da caça às bruxas – “lincha, lincha que ele é comunista, ele é petista” -, da Inquisição, da pré-civilização…

Agora nos agarra essa vergonha, de chutarmos para o noticiário de escândalos a biografia desse que, fosse este um país não dominado pelo complexo de vira-lata, seria, há muito tempo, louvado como um gigante, um herói, o sujeito que com um violão e uma voz pouco potente, simplesmente definiu os rumos da Bossa Nova, esse gênero que é um dos mais fortes produtos brasileiros de exportação, e foi mestre indiscutível de milhares de artistas de todos os cantos da Terra.

Conheço pessoas que não gostam dele, não suportam seu jeito de cantar, porque talvez não percebam a sutileza com que ele, durante décadas, mostrou ao mundo um país de sonhos, gentil, cujos artistas, de qualquer cor, de qualquer condição social, eram respeitados justamente porque eram artistas, pessoas especiais, de sensibilidade exacerbada, capazes de tocar o coração mais empedernido.

A alma dói ainda mais quando, a poucas palavras de terminar este texto, tenho a certeza de que existem nestes 8 milhões e tantos quilômetros quadrados de solo, muitos músicos, cantores e compositores que se entregam à arte por puro amor, sem concessões a modismos, ao comércio, e ao vil metal.

Exatamente como este baiano João Gilberto. 

 

Redação

7 Comentários

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  1. Nao é só ele . . .

    Johnny Alf ,quando de sua morte ficamos sabendo que vivia em um asilo simples e humilde custeado por ele proprio por uma magra aposentadoria que recebia .

    O Brazil trata muito mal seus verdadeiros artistas ! 

  2. “que lixo de país é este que

    “que lixo de país é este que deixa um dos maiores músicos de sua história virar notícia de jornal porque está, aos 86 anos de idade, em estado de penúria?”:

    O mesmo dos anos 70 quando Flavio Cavalcanti foi aa TV chamar artistas para um fund-raiser por Cartola, que tambem estava com financas inexistentes.

  3. Joãosinho

    Eh terrivel saber que João Gilberto esta nessa situação e também pela exploração de produtoras e divulgadores, que ganham em cima do talento alheio e, muitas vezes, prejudicando o artista com contratos desonestos.

  4. Ladeira a baixo.

    Estamos indo ladeira abaixo não so na política como na música.

    Sou do tempo que quando uma pessoa entrava na universidade tenha a obrigação de refinar o gosto musical, literário etc.

    Hoje, a pessoa entra e sai gostando de funk, forro universitario e se orgulha disso.

    Quando quero ouvir música brasileira de qualidade sou obrigado a ir ao youtube  e ás radios da internet.

    Façamos justica: a Radio USP, Eldorado, Cultura, pelo menos tocam musica de qualidade.

     

  5. Epa epa epa,parem que eu

    Epa epa epa,parem que eu quero descer.Eu tenho horror,assim como Joel Silveira,a essa batidinha irritante e horrorosa de João Gilberto.Nada contra de quem gosta,por que nesta vida “Tem Bobo Pra Tudo”,segundo Carmen Costa.Afirmar que João Maluco  Gilberto foi lesado,ludribiado,enganado,e que “o Brasil trata muito mal seus verdadeiros artistas”,tenham dó.Menos senhores argonautas,menos.Se jogou fora,o problema é dele.Pode acreditar,é demais pra mim.

    1. Amigo, ele teve de ser

      Amigo, ele teve de ser interditado pela filha… Imagina em que pé anda a cabeça do homem João Gilberto, aos 86 anos de idade. Na nota divulgada pela assessoria da Bebel Gilberto foi dito que ele está sofrendo de um “quadro confusional” e que está em processo de despejo. País nenhum deve fazer isso com alguém que esteja desassistido. Nem amigos. Nem família. Nem os que ouvem. Nem os que não ouvem. Irritie-se o quanto quiser com a batida xoxa que conquistou o mundo e foi nosso melhor produto pra importação do século XX, mas o ser humano João Gilberto merece dignidade, e se ele não está apto a consegui-la por debilidades, temos o dever de dar assitência.

  6. Que texto sofrível. Agora a

    Que texto sofrível. Agora a esquerda está usando até autores antes desprezados por ela, tidos como elitistas etc, para ‘argumentar o zeitgeist”. Tenha a santa paciência. 

    Gilberto é refém de suas escolhas, e não deve e não quer ser tutelado pelos mesmos de sempre. Seus relacionamentos, suas escolhas amorosas, suas escolhas canábicas, suas escolhas profissionais é que devem ser analizadas. Quem usa de sua imagem e de sua arte para jogar, demagogicamente, argumentos que seriam elogiosos se classificados como sofismas, é forçar a nota. 

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