A construção da mentira

Do Observatório da Imprensa

A construção da mentira

Por Lilia Diniz em 12/8/2010

Em busca de novidades, parte da imprensa levou a sério a teoria de Ary Itnem, um desconhecido consultor de Recursos Humanos que pregava a idéia de que abraços combateriam o afastamento gerado pelas novas tecnologias no mundo empresarial. Seu nome é um anagrama da palavra “mentira”. Durante um ano, um ator divulgou a inusitada e fictícia teoria criada pelo jornalista e diretor Ricardo Kauffman para o documentário O Abraço Corporativo, lançado em junho. O filme mescla a trajetória do “consultor” de RH na mídia com entrevistas sobre a produção de notícia nos dias atuais, onde há espaço até para pautas inconsistentes.

Para divulgar a teoria, valia tudo. Em 2006, Kauffman aproveitou a grande popularidade da Campanha dos Abraços Grátis, do australiano Juan Mann, e foi para a Avenida Paulista pedir abraços. O suposto consultor converteu as imagens em um filme institucional que virou febre na internet e foi visto mais de 600 mil vezes no YouTube. Em seguida, a teoria começou a ganhar espaço na mídia. A idéia da fictícia Confraria Britânica do Abraço Corporativo, da qual Ary seria o porta-voz, foi mostrada na TV, em jornais, revistas e no rádio. A partir deste caso, o Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (10/8) pela TV Brasil discutiu problemas estruturais da mídia, como falhas na checagem e a publicação de notícias irrelevantes.

Alberto Dines recebeu em São Paulo Ricardo Kauffman. Kauffman trabalhou na Gazeta Mercantil, na Rádio Jovem Pan , na Carta Capital e foi colunista do Terra Magazine sobre imprensa. Cursou roteiro cinematográfico na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de Los Baños, em Cuba. No Rio de Janeiro, os convidados foram Muniz Sodré e Marcos Almeida. Sodré, colunista do Observatório online, é mestre em Sociologia da Informação e Comunicação e doutor em Letras. Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), preside a Fundação Biblioteca Nacional. O jornalista Marcos Almeida é chefe de reportagem da BandTV. Trabalhou em diversas rádios, no jornal O Globo, dirigiu o jornalismo da RedeTV! e da TV Bandeirantes e participou da implementação da Rádio Bandnews FM.


Dois fetiches

 

Antes do debate no estúdio, na coluna “A mídia na semana”, Dines comentou fatos recentes que tiveram destaque. Ele criticou a cobertura da imprensa sobre as recentes catástrofes naturais, ponderou que a luta para salvar a iraniana Sakineh Ashtiani do apedrejamento não é apenas política – “É pela defesa da humanidade” – e mencionou o desligamento do filósofo Marcos Nobre como colunista da Folha de S.Paulo. “No seu texto de despedida, Marcos Nobre constata que o `dar de ombros´ não é exclusivo de políticos que topam tudo para serem eleitos. A degradação é generalizada e ele pulou fora”, disse.

Ainda antes do debate no estúdio, em editorial sobre O Abraço Corporativo, Dines comentou a busca de jornalistas pelos factóides. “A palavra significa pseudo fato, acontecimento falsificado que, pela repetição, tende a ser aceito como verdadeiro”. E listou “enfermidades” que precisam ser combatidas para evitar a consagração da mentira, como o culto dos modismos, a criação de celebridades e a confusão entre comunicação e propaganda.

A reportagem exibida pelo Observatório mostrou a opinião de jornalistas. Para Suzana Singer, ombudsman da Folha S.Paulo, bastaria um pouco de bom-senso para ver que a história de Ary Itnem não fazia sentido. “É tão absurda a Teoria do Abraço, mas tem tantos gurus absurdos nesta área de empresas e em outras áreas, que muitos jornalistas acabaram comprando esta ideia. E aí, eles usaram dois fetiches que dão certo com jornalista: pesquisa – eles falavam que tinha pesquisas mostrando as melhorias do desempenho – e um nome estrangeiro”, disse.


Efeito dominó

 

A ombudsman da Folha apontou o YouTube como outro fator que contribui para casos como o do Abraço Corporativo. “Hoje em dia, as coisas `bombam´ muito rápido e a mídia tradicional quer estar na onda e mostrar os novos fenômenos do YouTube”, avaliou. Para Suzana, falta um olhar crítico. Parte da imprensa está acreditando “em qualquer coisa que te vendam”. Outro ponto levantado pela jornalista foi a incapacidade de repórteres em derrubar pautas inconsistentes. Mesmo Ary não tendo mostrado seus clientes, a imprensa não percebeu a picaretagem. Ela avalia que falta criatividade nas redações, cada vez mais dependentes de assessorias de imprensa. Em tempos de “bombardeio de informação”, a ombudsman sublinhou que é preciso ter cuidado ao selecionar as notícias para não “comprar gato por lebre”.

Paulo Motta, editor de “Rio” de O Globo, disse que tem “paranóia” com a apuração da notícia, mas que ainda assim é impossível evitar totalmente erros na checagem. “Hoje em dia, com as redações multiplataforma, para o jornal impresso, a internet, os mobiles, você não tem mais um fechamento. Você tem várias entregas ao longo do dia. Isso torna o corre-corre maior, mas isto não pode servir de desculpas para a gente errar”, alertou. Motta defende que o jornal seja “um mix” e contou que as pautas de entretenimento já tiveram um peso maior. “Tinha uma época que tinha briga para dar furo no Jardim Zoológico”, relembrou. Atualmente, mesmo as matérias mais leves, na visão de Motta, procuram ter uma “questão importante por trás”.

Para não cair em “cascas de banana” com no caso da pauta do Abraço Corporativo, Gisele Domingues, editora de “Cidade” do jornal O Dia, pondera que é preciso ser criterioso, sobretudo em relação a notícias espetaculares ou ridículas, e avaliar a fonte que está passando a informação. “Jornal e revista são os que têm que errar menos, porque a gente têm mais tempo de apuração. Acho que quem corre mais risco é realmente a internet, o rádio, a TV. No jornal, você tem algumas horas para tentar descobrir se aquilo ali é uma farsa, ou se te venderam, turbinaram, um assunto que não é bem aquilo”, disse.


Notícia em primeira mão

 

“A velocidade é um desafio para todas as mídias, cada uma na sua proporção. E aí, cabe a gente ter responsabilidade de lidar com ela neste sentido. É claro que todos nós temos que ter a primazia e soltar a notícia primeiro, mas tem que soltar com responsabilidade”, afirmou Iuri Pitta, chefe de reportagem da editoria “Metrópole” de O Estado S. Paulo. Para Aziz Filho, gerente executivo de Jornalismo da TV Brasil no Rio de Janeiro, existem dois princípios básicos do jornalismo que precisam ser respeitados: desconfiar sempre e ouvir o outro lado da questão. “Mas, por mais qualificada que seja uma redação, ela jamais vai ter 0% de erro. Sempre está sujeita a uma barriguinha ou outra”, disse.

No debate no estúdio, Dines perguntou se Kauffman estava provocando a mídia para cometer uma grande gafe quando idealizou O Abraço Corporativo. Kauffman concordou e disse que o tema central do documentário são as “notícias irrelevantes”. A ideia do longa-metragem surgiu em bate-papos em redações de jornais pelas quais passou, quando sentiu que havia um desconforto de colegas jornalistas a respeito da quantidade de informação – “que não se justificava” – que era publicada. Nesta época, o documentarista questionava a função do jornalista na sociedade se, de fato, uma parte das informações veiculadas pela mídia não tinha relevância.

Dines comentou que nas redações usa-se o termo “bola de neve” para o fenômeno de notícias em sequência e perguntou a Kauffman sobre a construção da mentira mostrada no documentário. “A idéia de fazer o filme foi exatamente buscar algo que não existe, algo que não só não seria palpável, que teria um discurso superficial, um discurso vazio, mas que tivesse os dois signos que hoje parecem ser capazes de atrair os holofotes: uma boa imagem e uma frase de efeito. A boa imagem de um consultor capaz de fazer qualquer coisa para aparecer na imprensa e a frase `dá um abraço´ são dois elementos que parecem ter sido suficientes”, explicou.


Apuração apressada

 

Marcos Almeida comentou que não caiu na “pegadinha sensacional” de Kauffman porque a ação do filme concentrou-se em São Paulo. No Rio de Janeiro, de acordo com a análise do chefe de reportagem da BandTV, por conta do grande número de jovens com “tanta vontade de fazer e de fazer rápido” encontrados nas redações, o resultado do filme poderia ser semelhante. “A gente acaba refém deles”, disse. Dines pediu para Marcos Almeida explicar como ocorre a filtragem da informação nas redações. O jornalista comentou que antes das ferramentas de busca da internet, os profissionais acionavam o setor de pesquisa das empresas. O resultado podia ser demorado, mas o material “vinha mais consolidado”.

“Hoje, você vai na Wikipedia, nestes sites com informação que a gente não sabe de onde veio, e corre-se risco”, disse. O fenômeno não é novo. Marcos Almeida relembrou que em 1983, a revista Veja e o jornal O Estado de S.Paulo publicaram reportagens a partir de uma brincadeira de 1º de abril da revista New Scientist sobre uma fantasiosa fusão das células de um tomateiro com as de um boi, gerando o “boimate”. O erro, só reconhecido por Vejasemanas depois, virou “um clássico”, na visão de Dines.

Para Muniz Sodré, é preciso avaliar a hipótese de a mídia ser “histérica”, como levantado pela professora Raquel Paiva, da UFRJ, no livro Histeria na Mídia: a simulação da sexualidade na Era Digital. “A histeria é uma doença da representação, da fala sem referência, da fala que desliza, que escorre. E a mídia é esta fala excessiva que às vezes gira em torno do nada”, disse. Neste contexto, notícias e fatos sem fundamento “incham” como sintoma histérico no corpo doente. O professor também atribui o espaço dado a notícias irrelevantes a um fenômeno ligado à internet que sociólogos ingleses chamam de flash mob, abreviação da expressão flash mobilization, que significa mobilização instantânea.


Discurso vazio

 

Redes sociais tentam captar a atenção da sociedade – uma grande mercadoria, na visão de Sodré – criando fatos reais ou imaginários simplesmente para mobilizar a atenção. “É possível porque toda esta parafernália midiática está tornando quase que indistintos os limites entre o real e o imaginário. Isto é próprio desta sociedade criada por mídia. Para entender plenamente, é preciso compreender que a mídia é um novo tipo de real. Não é para veicular informações. É uma suprarrealidade, uma hiperrealidade assentada em quem fala, no discurso. E o discurso e a fala sem garantia, sem caução, é histeria pura”, analisou.

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Fábrica de factóides

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 558, no ar em 10/8/2010

 

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

O jornalista vai atrás dos fatos e, muitas vezes, tropeça nos factóides. A palavra significa pseudo fato, acontecimento falsificado que, pela repetição, tende a ser aceito como verdadeiro. Foi aparentemente criada pelo escritor e jornalista americano Norman Mailer e hoje incorporou-se ao jargão internacional. O factóide é filho de um sistema midiático que se expande tão agressivamente e cria deformações tão fortes que poucos conseguem identificá-las.

O culto pelos modismos, o incensamento das assessorias de imprensa, a obsessão com a criação de celebridades, a transformação de garotas-propaganda em jornalistas, a confusão entre comunicação e propaganda e entre jornalismo e show-bizz são algumas das enfermidades que tornaram obrigatória a criação de um sistema de imunização contra a consagração da mentira.

Hoje vamos contar a história de um gigantesco factóide criado justamente para acionar os alarmes contra a invasão dos factóides. É extremamente divertido, mas faz pensar.

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A mídia na semana

 

 

** É possível que não exista uma relação direta entre as catástrofes da China, do Paquistão, da Rússia e o intenso inverno na América do Sul. Mas a hipótese de que os dilúvios, incêndios, ondas de frio, marés fortes e tufões façam parte do mesmo fenômeno não deveria ser descartada pela imprensa. A função principal do jornalismo é relacionar os fatos, contextualizá-los. O leitor sozinho não consegue desfragmentar o noticiário, quem deveria cimentar os fatos é a imprensa. Mas se ela própria não percebe a interatividade entre estes eventos, ela descumpre uma das cláusulas do seu pacto com o leitor. Nada acontece por acaso e se a imprensa mostra-se incapaz de descobrir as causalidades seria melhor desistir de buscar informações e concentrar-se apenas em palavras cruzadas.

** A condenação à morte da iraniana Sakineh Ashtiani por apedrejamento não é um caso que se resolve com gestões diplomáticas ou apelos dramáticos. É uma flagrante violação da declaração universal dos direitos humanos da qual o Brasil é signatário. Adultério não é crime, nem crime hediondo, é no máximo pecado e a noção de pecado não é taxativa. O caso de Sakineh não é isolado de fanatismo religioso, a barbaridade que está sendo tramada contra a iraniana desvendou uma incrível coleção de castigos impostos no mundo islâmico e tornou corriqueiros atos horrorosos como cortar narizes, orelhas ou deformar o rosto de mulheres com ácido. A luta para salvar Sakineh não é política, nem concerne apenas às mulheres. É pela defesa da humanidade.

** O caso é raro, raríssimo. Num mundo onde todos procuram seus 15 minutos de fama para proclamar platitudes e asneiras, causa espanto o gesto deste colunista da Folha de S.Paulo, um dos melhores do seu elenco, que decidiu por vontade própria interromper sua colaboração com o jornal. No seu texto de despedida Marcos Nobre constata que o “dar de ombros” não é exclusivo de políticos que topam tudo para serem eleitos. A degradação é generalizada e ele pulou fora.

Luis Nassif

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