A moralização publicitária da velocidade

Do blog Cinegnose

A Celebração da Velocidade e a Politização do Tempo

Ironicamente a nosso indignação moral diante das mortes no trânsito corresponde à moralização que a cultura atual faz da velocidade: ser veloz é moralmente bom, como nos informa diariamente o discurso publicitário de produtos e marcas. Através da moralização da velocidade e da glamorização da lei do menor esforço, a obsessão pelo “maior é melhor” é substituída pela compulsão do “mais rápido é melhor“.

“Quicklube”, “Quick Cash”, “American Express”, “Federal Express”, “Mach 3”, “Slimfast”, “Speedo”, “Speed Dial”, “Instant Credit”. “Entregamos em 20 minutos ou você não precisa pagar por ele”. “Você precisa agir AGORA!”. “Você será aprovado em menos de 2 minutos”. “Corra! Restam alguns dias. Acabarão muito em breve!”

Sob esse regime da velocidade explicitado pelas mensagens publicitárias e da construção da imagem das marcas, ser veloz é moralmente bom. Em postagem anterior quando discutíamos sobre os atropelamentos de ciclistas na cidade de São Paulo (veja links abaixo), afirmávamos que era necessário politizar o tempo através da crítica à moralização da velocidade. De nada adiantam medidas de contenção do fluxo acelerado urbano (multas, câmeras, radares, leis etc) se testemunhamos o crescimento do regime da velocidade por meio da sua celebração e glamorização.

Onde Guy Debord via a “sociedade do espetáculo”, Paul Virilio (urbanista e pensador francês) via uma nova sociedade dominada pelo novo regime da velocidade. Nesta abordagem, velocidade é um meio ambiente e uma força sócio-psicológica que transformam o quê fazemos, como o fazemos, como nós pensamos e sentimos e, assim, como nos tornamos.

Os estados velozes se tornam o significante do desejo, capacidade, superioridade, eficiência, energia libidinal, performance e inteligência. Ao contrário, lentidão torna-se o significante da frustração, falta, inferioridade, deficiência, impotência, fraqueza, ou ainda – pensando em termos infantis – retardamento mental.

Velocidade se torna um novo imperativo cultural, disciplina, forma de dependência e submissão. Virilio também vê a velocidade como uma força psicológica e social ou uma pressão que altera a visão de mundo, desorienta-nos, deixa-nos num estado de concussão mental e promove uma profunda crise que afeta nossas relações com o mundo, sociedade e democracia. Para ele, a natureza não é apenas destruída por uma poluição química ou térmica mas também por uma poluição dromosférica – uma invisível poluição através da velocidade (veja VIRILIO, Paul. “Velocidade e Política”)

Para o geógrafo britânico David Harvey, o efeito primário dessa aceleração geral é notado na nova ênfase nos valores e virtudes da instantaneidade (instantâneos e fast-foods, refeições e outras satisfações) e da descartabilidade (sociedade do desperdício) … Isso significa muito mais do que jogar fora bens produzidos (criando um monumental problema da coleta de lixo), mas também significa a criação de valores descartáveis, estilos de vida, relações estáveis e associações com coisas, construções, lugares, pessoas e maneiras aceitas de fazer e ser … indivíduos são forçados a lidar com descartabilidade, novidade e possibilidades com obsolescência instantânea … isso implica em profundas mudanças na psicologia humana.

Com o incremento da velocidade de locomoção, temos cada vez menos espaço para mover-nos; com a aceleração da velocidade da informação e telepresença, temos menos distância mental-emocional – menos tempo para refletir, menos atraso entre interpelação, interpretação, seleção e consumo. Assim como telefones substituem cartas e contatos face-a-face, telas de computadores substituem livros, imagem suplanta a linguagem e notícias substituem a História.

Como um anúncio comercial da TV Fox News clamava, “Se às 10 horas é notícia, às 11 horas foi História” (com uma entonação estressada na palavra “História”).

A Sociedade do Espetáculo foi substituída

pelo “regime da velocidade”

Sob o regime da velocidade, o “Grande Confinamento” ao qual Foulcault se referia não mais tem a ver com práticas coercitivas de controle e constrangimento individual  por trás de muros de tijolos das instituições totais. Particularmente, a velocidade acelerada da vida cotidiana termina por nos confinar naquilo que Rifkin chamava de “gueto temporal” – um espaço físico, social e mental que se torna progressivamente estreito nos termos de seus limites espaciais, imediatista em termos de suas necessidades temporais e exaustivo em termos da energia emocional e mental que exige (veja RFKIN, J. Time wars: The primary conflict in human history. New York: Henry and Holt, 1987).

Sob estas condições de aceleração, a grande recusa, o grande NÃO, foi derrotada pelo grande AGORA! Cada desejo e urgência devem ser preenchidos imediatamente pelo tempo real e limitações espaciais se tornam cada vez mais tomadas como experiências sem sentido e intoleráveis. Como um slogan comercial produzido pela empresa de telecomunicações norte-americana Sprint (o nome da companhia já é significativo) coloca: “Esteja lá agora! – mas é especialmente difícil de distinguir se este slogan é uma promessa ou uma ordem.

Comerciais e Senso Comum

A constante exposição e celebração da velocidade na mídia de massa, a constante associação da velocidade com a variedade de mercadorias promove o desejo por estas mercadorias enquanto, ao mesmo tempo, celebra e normatiza a velocidade.

Por exemplo, cereais matinais não têm nenhuma ligação com velocidade, mas quando comerciais repetidamente justapõem imagens de cereais com imagens de crianças alegremente correndo em volta da cozinha, uma conexão é criada entre esses significantes: cereais, alegria e velocidade. Tal relação, simultaneamente, salienta e normaliza a inter-relação e desejo.

Quando contabilizamos o número de comerciais que desenvolvem a mesma estratégia e relacionam velocidade com uma infinita ordem de mercadorias (de laxantes a lipoaspirações), o desejo por velocidade se torna crível, evidente por si mesmo, reestruturando nosso senso comum. Simultaneamente, essas mercadorias e práticas derivadas tornam-se veículos de certos significados sobre a velocidade, certas expectativas e certos critérios através dos quais avaliamos a nós mesmos e aos outros. Através de penetrantes imagens de diversão, aventura, lazer, performance e prazer a velocidade se insinua como necessária para a vida cotidiana.

Em um grande número de comerciais parece que a obsessão fálica pelo “maior é melhor” é progressivamente substituída pela compulsão do “mais rápido é melhor”. No mundo dos comerciais televisivos, muito mais do que tamanho, velocidade é agora representada como a fonte essencial de prazer e a vida cotidiana passa a ser orquestrada pela lógica da velocidade como algo inerentemente satisfatória, poderosa e irresistível – no sentido de ser sedutora e ao mesmo tempo de ser impossível opor qualquer resistência contra ela.

Nesta terra de fantasias prazerosas, nunca há filas nos caixas de supermercados, carros disparam ao longo de auto-estradas vazias produzindo instantes de liberdade, olhares ansiosos de uma mãe transformam vegetais crus em deliciosas refeições, cabelos crescem e avolumam-se sob olhares atentos, uma mancha de ketchup numa camisa favorita se decompõe imediatamente com uma gota de detergente, limo nos azulejos do banheiro se liquefazem e desaparecem com apenas um spray, pastas de dentes embranquecem o amarelado dos dentes num contato, todo medicamento cura instantaneamente, um EU totalmente novo está a apenas uma simples ligação telefônica.

Mas também a velocidade é apresentada como irresistível também em termos de superação a qualquer resistência contra ela. Dessa maneira, enquanto muitos comerciais inscrevem a velocidade como puro prazer, outros reconhecem que a vida cotidiana realmente, e sempre infelizmente, revela um ritmo estonteante. Ainda, enquanto algumas vezes deploram a aceleração, comerciais também tacitamente comunicam esta nova inevitável condição. Raramente sugerem que podemos resistir à velocidade ou talvez desacelerar um pouco. Convocam-nos a adaptarmos ao novo regime, a seguir a corrente e para ficarmos agradecidos por todas as mercadorias que ajuda-nos a performar a total capacidade. Seja pelo prazer ou por necessidade, no regime da velocidade rapidez é boa. O agradável é ser rápido e você dever ser rápido para o seu próprio bem.

—————>>>>>>>> Leia mais ——————–>>>>>

Luis Nassif

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador