A morte do jornalista Toninho Boa Morte

Do Estadão

Morre o jornalista Antonio Carvalho Mendes, responsável pelo obituário do ‘Estado’ 

Toninho foi responsável pela seção por quase cinco décadas e ainda sugeriu a publicação dos versos de Camões durante a censura da Ditadura Militar

15 de março de 2011 | 12h 29

José Maria Mayrink – O Estado de S.Paulo

Juan Guerra/AE - 15/12/08
Juan Guerra/AE – 15/12/08 

SÃO PAULO – Internado no Hospital Nove de Julho, onde acabava de se submeter a uma cirurgia, o jornalista Antônio Carvalho Mendes, o Toninho, comemorou o aniversário no quarto de recuperação, em 2009, com a equipe de médicos e enfermeiros que tratavam dele. Cantou Parabéns pra Você e distribuiu, de mão em mão, os pedaços do bolo de chocolate que lhe levaram de presente. 

“No próximo ano, vou voltar aqui para festejar meus 77 anos com vocês”, prometeu com um sorriso alegre no rosto, animado como se estivesse sarando de vez do câncer que o havia surpreendido algumas semanas antes.

Um ano depois, Toninho festejou o aniversário no Residencial Santa Catarina, onde passou a morar depois de receber alta no hospital. Queria ir ao Nove de Julho, conforme havia prometido, mas não conseguiu, porque um enfermeiro que o acompanharia estava doente. No apartamento, recebeu abraços de amigos e vários telefonemas de parabéns. O bolo com a velinha dos 77 anos foi presente dos novos amigos e amigas, seus companheiros no Residencial.

Homem extremamente solitário, que morava sozinho num sobrado da Rua Bartolomeu de Gusmão, herança da mãe na Vila Mariana, Toninho era cheio de mistérios e segredos, quando se tratava de sua vida particular. Até que falou sobre a família, quando caiu doente, mas sem dar detalhes. O filho, Antônio Victor, foi visitá-lo no hospital. Telefonava para a ex-mulher, Josefa, com quem costumava jantar e pedia notícias da neta, Mônica.

Nesses sete meses em que passou ainda mais isolado, primeiro no Nove de Julho, depois em duas residências para convalescentes de idosos, esse jornalista tão reservado que parecia ser um sujeito de poucos amigos surpreendeu-se com o grande número de colegas – e de suas famílias – que se preocupavam com ele.

“Obrigado por se interessar por mim”, agradecia emocionado àqueles que telefonavam ou que iam visitá-lo. “Eu não sabia que tinha tantos amigos”, confidenciou mais de uma vez, citando nomes de companheiros de redação que foram vê-lo. Emocionou-se sobretudo com as visitas de Ruy Mesquita Filho. E contava para todos, orgulhoso, que o jornalista Ruy Mesquita, diretor do Estado, lhe telefonava quase todos os dias.

Obituários. A vida de Antônio Carvalho Mendes Foi, durante 50 anos, a redação de O Estado de S. Paulo. Ele tinha trabalhado por algum tempo na antiga Real Transportes Aéreos, mas considerava-se só jornalista, pois não pensava em outra profissão desde o dia em que se empregou no 5.º andar da Rua Major Quedinho, antiga sede do jornal. Julio de Mesquita Filho, que para ele era “amigo, pai e mestre”, como costumava repetir, foi o modelo que sempre teve em mente. Esse respeito e amizade, de total fidelidade, estendeu-se a toda a família Mesquita.

Na vida profissional, Toninho era sinônimo de dedicação e seriedade. Chegava à redação por volta das 16 horas e era um dos últimos a sair. Responsável pela coluna de falecimentos, conferia e atualizava a relação de mortos até o fechamento da edição. Em caso de dúvidas, telefonava para o Serviço Funerário ou para parentes e amigos do morto. Se necessário, fazia entrevistas e ouvia opiniões que transformavam em reportagens as notas do obituário. Por causa do trabalho, ganhou o apelido de ‘Toninho Boa Morte’, mesmo que a contragosto.

Toninho assinou também uma coluna de Cinofilia e, de tanto escrever sobre os animais, acabou se tornando um especialista em cães e gatos. Gostava dos bichos, mas não tinha nenhum em casa. “Preciso ser imparcial”, justificava-se. Participava de júris de concursos de cães de raça, gastando dinheiro do bolso para viajar ao Rio e outras cidades quando integrava comissões de julgamento.

Censura. Durante o período militar, quando a censura prévia se instalou nas oficinas doEstado e do Jornal da Tarde, Toninho entrou em choque com os censores por causa do título “Pastor alemão vence exposição”, na coluna Cinofilia. Achavam que ele se referia ao presidente Ernesto Geisel, gaúcho luterano de ascendência alemã.

Foi de Antônio Carvalho Mendes a sugestão para que o Estado publicasse versos de Luís de Camões, para cobrir o espaço das matérias censuradas que a polícia não permitia deixar em branco. Deu a ideia ao redator-chefe Oliveiros S. Ferreira e o diretor do jornal, Julio de Mesquita Neto, aprovou. Toninho levava de casa um exemplar de Os Lusíadas para adiantar a composição do texto na gráfica.

Quando os problemas da doença começaram a se complicar, Toninho atribuiu a resistência às sucessivas cirurgias e às sessões de quimioterapia à prática de esportes na juventude,quando lutou esgrima, fez natação e correu a São Silvestre. Era torcedor do São Paulo, do qual falava sempre no plural, como se fosse membro da diretoria ou conselheiro do clube. “Nós temos de reforçar o meio de campo…”

Na política, era fanático por Carlos Lacerda e, na esteira dele, por todas as principais figuras da União Democrática Nacional (UDN), o partido que se opôs a Getúlio Vargas. Era um conservador. Católico e devoto de Nossa Senhora Aparecida, vibrou com a eleição do cardeal Ratzinger, quando ele se elegeu Bento XVI na sucessão de João Paulo II, outro ídolo seu.

“As coisas não andam bem”, dizia para começo de conversa, quando ia comentar a situação brasileira e as denúncias de corrupção no governo. Criticou o senador José Sarney até a última hora. Toninho exaltava-se ao falar dos adversários, mas, apesar das aparências, era um sujeito de bom humor que ria das próprias piadas.

Méritos. Uma de suas últimas alegrias foi ser eleito irmão remido da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, em cuja capela costumava assistir a missa nas manhãs de domingo.”Sou São Paulo em tudo – no Estado, no jornal, no clube e agora na Santa Casa”, brincou no dia da posse.

Toninho gostava de cozinhar. Como morava sozinho e não tinha geladeira em casa, comprava o essencial no supermercado ao sair da redação. “Não ter geladeira esta semana foi um conforto”, comentou ao ler a notícia de que muita gente havia tido prejuízo com o apagão em São Paulo.

Sem condições de retomar o trabalho, passou a morar num apartamento do Residencial Santa Catarina, onde fez novos amigos e onde recebia a visita de companheiros da redação do Estado. Estava sempre ligado ao noticiário, lia o jornal todos os dias e, sempre que necessário, voltava ao prédio da empresa, na Marginal do Rio Tietê.

Em dezembro de 2009, Toninho sofreu dois enfartes e teve uma parada cardíaca de cinco minutos. “O médico me ressuscitou”, comemorou com alegria, quando inexplicavelmente se recuperou da crise. Como gostava muito do Hospital Nove de Julho e da equipe de profissionais que cuidaram dele, considerava uma bênção ter de se internar ali para tratar de algum problema inesperado. Na primeira semana de janeiro, internou-se no quinto andar para combater uma anemia e acabou voltando à UTI.

Melhorou, passou dois meses no Residencial Santa Catarina, mas precisou retornar ao hospital, mais uma vez a UTI, onde morreu às 5h30 desta terça -feira.

Natural de São Paulo, onde nasceu em 20 de junho de 1933, Antônio Carvalho Mendes fez o ginásio e o colegial no Colégio Pasteur, antigo Liceu Franco-Brasileiro, no qual estudou 11 anos. Fez especialização em espanhol da Câmara de Comércio Argentina e na Casa de Cervantes, e estudou inglês na Cultura Inglesa.

Atualizado às 13h29 

Luis Nassif

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