Das continuidades do estado de exceção no pós-Constituinte, por Rogério Mattos

Tanto Michel Foucault quanto o antigo quadro do ISEB, o professor Joel Rufino dos Santos, nos mostram como se deu a continuidade da política de genocídio do social apesar da restauração das liberdades de direito estabelecidas após a Constituinte de 1988.

Das continuidades do estado de exceção no pós-Constituinte

por Rogério Mattos

Os militares que deram o golpe em 64 poderiam ser considerados, vistos de hoje, como elementos de extrema-direita? Mesmo a “ala Sorbonne”, supostamente mais civilizada, pactuou com os elementos direitistas tradicionais (lacerdismo, adhemarismo, etc.), e implantaram o estado de exceção.

Tanto militares quanto neoliberais governaram com o primado da economia sobre a política. São os marcos da governamentalidade que se estabelecem no pós-guerra. Se a presença dos militares na política só se tornou evidente a partir de 2016, a união histórica entre direita e extrema-direita mostra o liberalismo como o governo de exceção que se torna regra.

Tanto Michel Foucault quanto o antigo quadro do ISEB, o professor Joel Rufino dos Santos, nos mostram como se deu a continuidade da política de genocídio do social apesar da restauração das liberdades de direito estabelecidas após a Constituinte de 1988.

Como disse Joel Rufino dos Santos, os militares de 64 são os da Escola de Guerra, cópia do War College, os mesmos que sustentaram a oposição a Vargas, tentaram impedir a posse de Juscelino e tiraram Jango do poder. War College e tecnoburocratismo: todos os problemas políticos são problemas de administração.

Muito já se disse dessa réplica brasileira do War College, mas o essencial é que, além de fabricar uma ideologia de Segurança Nacional (a Ordem e Progresso dos positivistas), pôs em circulação social, mais ou menos a partir de 1964, o tecnoburocratismo que seduziu nossa classe dirigente. Com a redemocratização (1982), foi-se a armadura militar e ficou o corpo tecnoburocrático. Pois o que chamamos tecnoburocracia não passa na verdade de uma “contaminação” da política pela ordem militar, a sua colonização pelos conceitos, termos e estratégias do estamento tecnocientífico-militar, visando, em última instância, a transformar todos os problemas de política em problemas de administração” (Joel Rufino dos Santos, Épuras do social, p. 19-20)

A partir disso, sem fardas, aparecem a tropa de economistas e demais tecnocratas da administração pública com a redemocratização. Por isso, sempre foi inviável o casamento perfeito entre um governo tecnocrático (ou “meritocrático”) e um governo de base popular. Quando um deste chegou no poder já no século XXI, por mais que qualificasse a administração pública com técnicos qualificados, existiu sempre um componente ideológico nesses governos que superaram os problemas tecnocráticos, hoje de origem exclusivamente neoliberal.

A política, contudo, sempre estará acima de filigranas administrativas. O sintoma mais agudo deste problema foi sentido quando se afastou da presidência alguém que teria cometido “pedalada fiscal”. O acordo entre política e tecnocracia é de todos os modos impossível por partirem de pressupostos opostos. Como diz Michel Foucault comentando as dificuldades da elaboração do programa político do SPD alemão na ordem neoliberal do pós-guerra:

Não se tratava, primeiro, de estabelecer e aceitar uma moldura jurídica ou uma moldura histórica dada, porque ela havia sido formada assim pelo Estado ou por um certo consenso popular, e depois trabalhar economicamente, de dentro dela, por um certo número de ajustes. Era o exato contrário. Nesse novo regime econômico-político alemão, começava-se por estabelecer certo funcionamento econômico que estava na base do Estado, da sua existência, do seu reconhecimento internacional. Estabelecia-se essa moldura econômica e somente em seguida aparecia, de certo modo, a legitimidade do Estado” (Michel Foucault, Nascimento da biopolítica, p. 121).

Logo, um governo nacional-popular parte de determinada história (que geralmente se quer resgatar), de determinado consenso popular (o enraizamento social do partido de massa) ou de alguma moldura jurídica previamente existente (no caso, a Constituição Cidadã), para aí então, “por dentro”, ajustar ou reorientar a economia. Como no Milagre Econômico ou na nova ordem econômica colocada para funcionar através do Plano Real, toda governamentalidade se molda a partir de matrizes radicalmente econômicas.

O caso alemão narrado por Foucault não difere de natureza do caso brasileiro. A Alemanha precisa se justificar internacionalmente após a falência de seu Estado, ou seja, do nacional-socialismo. O problema deles seria o seguinte: “supondo um Estado que não existe, como fazê-lo existir a partir desse espaço não estatal que é o de uma liberdade econômica?” (p. 117). O problema do liberalismo clássico era o exato oposto: se considerava um Estado existente e assim se buscava limitá-lo, abrir espaço em seu interior para uma necessária liberdade econômica.

Pode-se dizer que nesta inversão de perspectiva o liberalismo do século XX, especificamente a partir da derrota de Hitler, encontrou sua originalidade. Portanto, a justificativa internacional que a Alemanha buscava era através da economia e não do Estado ou da política. Desde então, jamais deixou de ser atual esse problema.

Assim, mudando rapidamente a perspectiva, pode ser dito que o Plano Real foi, primeiro, um programa de enxugamento monetário necessário para diminuir o meio circulante e, portanto, a inflação. Porém o fim da inflação não corresponde ao fim da carestia.

A diferença entre um governo popular e outro da “equipe econômica” da escola da PUC-Rio, é o foco que o primeiro teve em dar maior valor ao aumento do poder de compra da população do que usar de todos os meios possíveis para se manter os índices nominais de preço estáveis. Se o Plano Real foi bem sucedido, foi por atacar a demanda através da dolarização da economia, mantida por altas taxas de juros.

Ao lado da ausência de investimentos públicos de grande porte e do amplo processo de privatizações (abandono do Estado de seus meios de atuação na sociedade), o governo criou uma situação de recessão constante onde se torna praticamente impossível o aumento do índice nominal de preços ou da “inflação”. O que mantinha a economia precariamente funcionando era o aporte de recursos estrangeiros, seja pela atração da SELIC em patamar elevado ou, no desespero, as corridas da alta cúpula do governo ao FMI para injetar dólares na economia.

Não é o caso de dizer que são paradigmas econômicos de todo opostos, o dos militares e o do neoliberalismo. Ambos se basearam em pressupostos antes econômicos do que políticos para se legitimar. A diferença é que na época da ditadura existiam dois modelos econômicos em jogo divididos pela cortina-de-ferro.

Com segurança relativa, os países socialistas conseguiram erradicar a fome e o analfabetismo de suas populações, porém sem dar amplo acesso a inovações tecnológicas ou bens de consumo variados, além das restrições às liberdades individuais. O estado de bem estar social europeu, por exemplo, parece uma resposta capitalista às garantias mínimas que se davam aos cidadãos no bloco soviético.

O governo militar, portanto, agia tanto como um agente estatal autônomo ao fomentar determinados setores industriais, quanto alçava suas ações a partir de um cenário internacional imprevisível. Se houve fome, miséria, migrações e favelização durante a ditadura, é porque seus investimentos se baseavam no dólar. Este é o objeto de “consumo suntuário” por excelência (peço perdão talvez pelo abuso no uso do termo de Celso Furtado).

Assim, o crédito chegava às grandes empreiteiras e às estatais, porém nunca “na ponta”, no cidadão comum. Caso o governo militar fosse de fato nacionalista, como muitos hoje continuam a falar, o aumento real do crédito e dos salários formariam uma base de consumo e de produção capazes de fomentar o mercado interno. Formaria-se um verdadeiro colchão de reservas nacionais diante das crises internacionais.

 

Por outro lado, numa economia não dependente do dólar (o governo militar não foi apoiado apenas por governos americano, por instituições americanas), tampouco veríamos a crise tremenda, de inflação e dívida pública, que formou as condições de possibilidade para a solução singular dos economistas do Real, solução malograda nos anos 1980 com o Cruzado mas cujos pressupostos macroeconômicos ainda regem nossa administração pública, seja qual partido esteja no poder. Contudo, como alertou Foucault acima, um governo popular pode “por dentro”, baseado em sua ideologia e em sua história, ir modificando esse estado de coisas.

Rogério Mattos: Professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review. Formado em História (UERJ) e doutorando em Literatura Comparada (UFF). Mantém o site http://www.oabertinho.com.br, onde publica alguns de seus escritos.  

Redação

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