Lugar de fala

Beyoncé usa D.Bleu.Dazzled – Foto: Divulgação

 

Indivíduo, Lugar de Fala, Cancelamento, Racismo e Autoritarismo

Trabalhando como terapeuta há cerca de 30 anos não foi possível ignorar a enorme produção sobre a linguagem e seus efeitos concretos na construção de mundos, no reconhecimento de possibilidades e nas relações de poder, dentre outros. Desse modo o conceito de Lugar de Fala, não me parece exatamente novo, espantoso ou limitador da possibilidade de diálogo.        

Explico, num trabalho terapêutico de casal, ou família, é facilmente reconhecível que dizer ‘do outro”, por mais bem intencionado que seja, por mais acurado que venha a ser, gera desconforto, resistência e reações de fuga ou ataque. Ou seja, efeitos de dizer do outro são quase sempre violentos e autoritários.

O indivíduo nesse contexto terapêutico sempre parece cioso de seu direito de dizer de si na medida que bem lhe aprouver e ser forçado ou conduzido a dizer de si também gera desconforto.

No entanto, reconhecido em seu direito de saber de si e de falar de si na medida de sua escolha, bem como reconhecendo no outro os mesmos direitos, não há nisso nenhuma limitação para que a conversa se desenrole. Cada um sempre pode falar do efeito da situação, dos atos e falas do outro sobre si mesmo.

Vale a pena falar também da responsabilidade de quem fala. Na relação terapêutica individual onde uma pessoa está numa relação assimétrica em relação a outra e o profissional é buscado como quem sabe algo sobre aquele que busca ajuda, podemos ver que estar autorizado a falar não deve significar falar o que se quer.

As questões éticas  postas incluem dentre outras: a percepção do próprio não saber (ninguém sabe tudo sobre si mesmo); da incerteza do conhecimento (saber do inconsciente implica em pensar em processos que nos escapam e que são sobre determinados, condensados e deslocados); da abstinência do poder para propósitos pessoais; consciência da liberdade do outro de discordar eou encerrar o processo quando quiser e da consciência dos danos que se pode causar e a responsabilidade das escolha em relação as formas.  Quem fala deve se responsabilizar pelo que fala em determinado contexto e pelos efeitos prováveis que podem advir daí.

Nesse universo também sempre que alguém traz uma observação ela nunca é entendida como o retrato fiel de tudo que poderia ter sido observado naquele momento, mas sim como uma observação particular. “Tudo que é dito é sempre dito por um observador” (Maturana). O observador nunca é neutro, bem como nunca é neutra a linguagem que ele utiliza. As particularidades e limitações do observador mais que contextualizam o que ele pode observar, criam sua observação. Assim sempre é legítimo se perguntar por quem faz aquela observação, quais são seus conceitos e particularidades, de onde ele olha e que linguagem utiliza.

Generalizações, atribuições de intenção, determinações para o comportamento do outro, o abuso do imperativo, as identificações com: “Bem”, “Justiça”, ‘Deus” ou “Conhecimento” e a ausência de dúvidas sobre a própria posição costumam ser potentes obstáculos para a escuta do outro e precisam ser controlados. As limitações não impedem o diálogo, ao contrário, permitem novos campos de conversação. O Beabá da comunicação envolve conhecer: contexto, meio e os observadores falantes.

O que realmente é uma condição para que o diálogo possa se dar é o reconhecimento do outro como “legítimo outro” nas palavras de Maturana. (Embora aqui para devêssemos socorrer das contribuições de Axel Honneth e Habermas). Assim sendo, o preconceito, o autoritarismo, o racismo e a violência podem acabar com as possibilidades do diálogo.

Correndo o risco de grande simplismo por percorrer extensamente uma analogia, Lugar de fala parece colocar em termos sociais para grupos e pessoas, o direito individual consagrado no campo terapêutico. O sacrossanto direito de saber de si (na medida do possível), falar por si e de si mesmo e ser devidamente considerado.  Essa é uma questão candente para a humanidade nesse momento (mesmo para os ricos, brancos e hetero). Segundo Harari, pela primeira vez na história da humanidade, o aparato tecnológico pode saber de nós tanto quanto ou mais que nós próprios, ou seja, nosso conhecimento e declarações sobre nós mesmo podem a vir a ser dispensáveis ou tomadas a menor.

A questão que a analogia entre Lugar de Fala e direito individual a falar de si mesmo coloca é: Qual o motivo de um direito básico precisar ser reivindicado por grupos específicos? E a resposta é que os direitos individuais nunca foram oferecidos, sempre tiveram que ser conquistados através de lutas e reinvindicações e até hoje são precariamente distribuídos e exercidos. Outra questão seria: qual o motivo de tanta celeuma quanto a isto? E a resposta poderia ser a mesma, mas há elementos novos que cabem ser analisados.

O primeiro é que intelectuais e ativistas brancos estão sendo, ou se sentindo barrados, simplesmente por serem brancos e se sentem ultrajados por isso. Os brancos serem retirados da condição de referentes universais e racializados é de fato uma novidade porque os intelectuais brancos desfrutam desse direito (que deveria ser universalizado) de falarem como indivíduos e fazerem escolhas além das categorias que possam lhe ser impostas.

Na contextualização dos debates as categorias devem ser suspensas para todos os envolvidos, ou mantidas para todos: “Debate entre colaboradores brancos e negros da Folha de São Paulo agita os meios acadêmicos” ou “Debate entre Lília Schwarcz e Djamila Ribeiro” movimenta estudantes” seriam formulações equilibradas.

Suponhamos um debate sobre o tema do autoritarismo e Lugar de fala que unisse Djamila Ribeiro, Marlene Felinto, Ana Xongani e Lilia Schwarcz, Maria Rita Kehl e Contardo Caligaris (todos colaboradores fixos ou eventuais da Folha de São Paulo).

Dificilmente se estranharia se as três primeiras fossem caracterizadas como colaboradoras negras ou militantes. Todavia isso não significa necessariamente nenhum consenso entre elas, as opiniões podem ser totalmente diversas ou conflitantes, ou seja, ser negras não as iguala.

Se os três últimos colaboradores fossem chamados “brancos” a designação soaria estranha. Seria ainda mais estranho e paradoxal também que a condição de “neutros” ou “simpatizantes” fosse apontada. É como se mesmo que defendessem argumentos similares e se defendessem uns aos outros os colaboradores brancos nunca formassem um conjunto que pudesse ser adequadamente descrito em nossos costumes de debate intelectualizado.

E o que dizer de todas as questões relacionadas aos cancelamentos e aos debates impossibilitados por argumentos “ad hominem”?  Argumentos dirigidos a desacreditar a pessoa são uma arma de combate, não visam debater, mas sim desqualificar, submeter, vencer o embate. Estão longe de terem sido criados pelos movimentos identitários, ao contrário, ser apontado como ateu, mulher, negro, pobre ou gay tem sido usado há séculos para calar pessoas. A designação latina e a popularização via Schopenhauer deveriam indicar alguma genealogia não africana.

Alguns militantes dos “movimentos identitários” utilizam essa argumentação sim e em nossa história política recente é difícil, se não impossível, apontar quem não a utilize. O desconforto e atritos evidentes podem suscitar várias questões complexas:

– o que fazer com a raiva dos que sempre foram barrados nos debates?;

– como responder sem violência a atos violentos?;

– como estabelecer alianças partindo de múltiplas diferenças?;

– quais as atuais regras do debate considerando-se as pensadoras Antirracistas, Feministas, Gays, Queer e Decolonialistas?;

– como debater nos meios virtuais e para um público muito mais amplo que se poderia atingir através dos meios tradicionais?

Nesse universo ampliado das redes sociais que os cancelamentos precisam ser entendidos, sempre existiram boicotes, fofocas e recusas a participar do mesmo evento com determinada pessoa. A novidade é que nossa vida (trabalho, amigos e família) se estabeleceu de tal forma pelos meios virtuais que eles tornaram-se fundamentais para nosso reconhecimento pessoal, assim cancelamentos passaram ter potencial de grande impacto sobre a vida das pessoas.

Com rapidez quase instantânea, limitação de toques, de espaço e presença marcante de imagens, os meios virtuais convidam e contextualizam interações superficiais e finalizações bruscas “lacradoras”. A lógica é o lucro através do entretenimento assim quanto mais radicalizadas forem “as tretas” mais servirão para adesões, mobilizações e ‘lacrações”.

Os meios virtuais democratizaram o acesso à informação, mas o acesso à informação e ao debate não garantiu a qualidade da informação, nem do debate. As próprias definições de público e privado foram profundamente afetadas, bem como a distinção entre jornalismo e entretenimento. Basta ver como as manchetes são feitas para serem consumidas independente da leitura dos artigos aos quais se referem. Manchetes são feitas para serem tuitadas, espalhadas no Whatsapp ou no Instagram: #bomboutreta.

Com a massiva comunicação em rede social, a organização desses meios pela lógica do entretenimento, entendo que a questão não seja exatamente por que os movimentos ditos identitários utilizam argumentos que podem excluir interlocutores simpatizantes, mas sim se existe possibilidade de ação política nesses meios virtuais que não seja identitária e que não opere de forma análoga. No Brasil atual qual política não é identitária?

E a questão crucial não é como os intelectuais organizam adequadamente seus debates, mas sim como superar o abismo entre os debates intelectuais e a imensa maioria da população brasileira. Essa deveria ser uma preocupação constante para nós, intelectualizados identificados com a necessidade de barrar o horror do projeto necropolítico e autoritário em curso.

A “Direita” mundial certamente resolveu sua equação, abraçou uma política identitária sem pudores e dominou os meios comunicativos para levá-los a cabo. Deveria ser espantoso para todos que acompanharam a política no país nos últimos anos que de 2016 para cá tenha se montado uma máquina de comunicação capaz de rivalizar com a Globo no estabelecimento de uma narrativa sobre o que acontece em nosso país.

Em contrapartida, nós que não estamos à direita, parecemos estar à deriva sem um discurso que nos conecte com o conjunto da população e, aparentemente, sem real interesse de aprender sobre as formas de utilização dos meios virtuais de comunicação.

O conceito e a aplicação de “Lugar de Fala” podem nos trazer um manancial de questões sobre  “Branquitude”,“Autoritarismo”, “Políticas Identitárias” alertando para as configurações de poder nas conversações e para a possibilidade de que sejamos violentos ou autoritários mesmo sem o desejar.

Indiferentes às tentativas de regulá-los e discipliná-los os movimentos negros seguem com suas ideias e atitudes e em conjunto com os movimentos GLBTS solapam mais um privilégio: o direito de não se questionar e não ser questionado. Felizmente, outros direitos “universais” podem nos salvar: direitos de ter dúvidas, errar, mudar de opinião e pedir desculpas.

Paulo F. P. Souza, Recife 24/08/2020

 

 

 

 

Redação

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