Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Canal Infantil que formar “Jornalistas de Boas Notícias”

 

 

Qual a solução para os graves problemas do mundo noticiados pelas mídias? Jornalistas que deem apenas boas notícias. Por trás dessa pueril solução desenvolvida pela narrativa de um episódio da série “O Esconderijo Secreto”, estão não somente as más lembranças sobre o destino dos telejornais em períodos de ditaduras mas, também, da forma como a infância e o próprio jornalismo são apresentados pela atual  indústria do entretenimento.


Julho é mês de férias escolares e, com os filhos em casa, não tem como os pais não prestarem atenção aos canais infantis na TV. Em um dia desses, minha atenção foi despertada para um episódio da série “O Esconderijo Secreto”, programetes de dois minutos de duração exibidos nos intervalos publicitários do canal Discovery Kids. A coisa era mais ou menos assim: as crianças desse pequeno clube diziam-se cansadas de notícias ruins na TV. Resolutos, decidem fazer um telejornal só com boas notícias. Na ocasião estava distraído e peguei o bonde andando, mas ao final da pequena narrativa, uma das crianças exorta aos espectadores para que se tornem também “jornalistas de boas notícias” e as enviem para a emissora!


Como jornalista não deu para ficar indiferente. Como assim, “jornalista de boas notícias”? A primeira coisa que me veio à cabeça foram as lembranças do tipo de telejornalismo durante os tempos da ditadura militar brasileira onde o general de plantão da vez, o presidente Médici, dizia: “Todas as noites quando vejo o noticiário sinto-me feliz. Porque no noticiário da TV Globo o mundo está um caos e o Brasil está em paz. É como tomar um calmante depois de um dia de trabalho”.


Claro que são associações muito pesadas para um inocente programa infantil. Resolvi, então, ficar mais atento e aguardar a repetição desse insólito episódio de “O Esconderijo Secreto”.


Na segunda exibição prestei mais atenção à narrativa: Chico (Guilherme Seta) olha a TV e reclama das notícias ruins. “Fazem até perder a fome”, diz incomodado. Nanda (Manoela Ferreira) então tem uma ideia: usando a Internet, propõe fazer um telejornal somente com “boas notícias”. Eles, então, começam a recrutar “jornalistas de boas notícias”. Chico vai ser o repórter nas ruas, Nanda a “moça do tempo” (no mapa que ela mostra que só tem tempo bom com sol em todo o país) e um correspondente no México que envia notícias através de uma “web cam”. E quais as boas notícias? Lixo sendo é reciclado e pessoas que ajudam umas às outras em todo o mundo. Ações ecologicamente corretas e solidariedade.


Há um claro argumento moral nesse episódio: o mundo necessita de uma “agenda positiva”.  Somente noticiando boas intenções o mundo irá melhorar. É a polêmica ideologia do “politicamente correto”.

 

 


A série “O Esconderijo Secreto” é produzido pela Malcine, produtora argentina de vídeos publicitários e curtas. É veiculada pelo canal Discovery Kids com dois times de atores de nacionalidades diferentes (brasileiros e mexicanos) para a veiculação em toda a América Latina. Dessa maneira, como típico produto globalizado suas narrativas trabalham com argumentos arquetípicos, globais . Em consequência, esse episódio específico nos revela não só a forma como a indústria do entretenimento atual representa a infância como, mais além, o próprio jornalismo é encarado como produto e visão de mundo.


Infância e Inocência


Todos os episódios de “O Esconderijo Secreto” estão baseados em um argumento básico: um grupo de crianças curiosas e bem intencionadas se confronta com questões do mundo adulto e provam que tudo pode ser resolvido a partir da simplicidade do olhar infantil. Na suposta ingenuidade infantil, podemos encontrar uma inesperada sabedoria.


Esse é o arquétipo do “Inocente”, exaustivamente explorado pelas criações publicitárias e cinematográficas.   Sabemos que esse imaginário parte do ponto de vista de Jean Jacques Rosseau que no século XVIII concebia a criança como portadora da “verdade” ao valorizar o jogo e a espontaneidade infantis. A criança parece se situar mais próxima à Natureza, à pureza, às nossas origens idílicas que, posteriormente, foram corrompidas pela vida social adulta.


A visão rousseauniana de infância tem o seu momento de verdade gnóstica (a Razão como reminiscência, como lembrança do que foi perdido para que criticamente se contraponha ao mundo real). Porém, a atualização dessa visão através da indústria do entretenimento elimina essa essência crítica para impor o clichê infantil do “Inocente”.


E qual é o elemento crítico do jogo infantil eliminado pela indústria do entretenimento? A “mimese”. Pesquisadores como Huizinga, Mead e Benjamin (veja HUIZINGA, Johan, “Homo Ludens”; MEAD, Hebert, “Mind, Self and Society” e BENJAMIN, W. “Reflexões: a criança, o brinquedo e a educação”) apontam que a maior riqueza dos jogos infantis é o seu aspecto mimético, ou seja, a capacidade criativa da criança incorporar elementos da dimensão cotidiana (inclusive adulta) através da imitação para, posteriormente, tudo ser livremente subvertido no espaço lúdico. Se o mundo adulto é violento, cruel etc., tal realidade será imitada, incorporada e ressemantizada nos jogos infantis.

Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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