Mesmo confinado dentro dos limites de um gênero hollywoodiano, “Amor Por Contrato” (The Joneses, 2009) tematiza o resultado de táticas híbridas de publicidade que cruzam conceitos como de “marketing invisível” e “reality show”: a privatização das relações humanas. Influenciar “alvos” sem parecer ser uma informação comercial por meio de “agentes” (“trendsetters”, atores ou perfil fake), o chamado “marketing invisível” exploraria o endosso da credibilidade e autenticidades das relações pessoais em uma época onde os consumidores cada vez menos confiam na publicidade tradicional.
Leia essas duas afirmações abaixo:
(a) “Já estamos cansados de atores com emoções falsas. Cansados de pirotecnias e efeitos especiais. Aqui não há roteiros. Não é sempre um Shakespeare, mas é genuíno. É uma vida. Para mim, vidas particular e pública são iguais. É tudo verdade, tudo real, nada aqui é falso”
(b) “Sem colocar o produto na vida real, não há marketing invisível que possa ajudar. Você verá pessoas reais sendo patrocinadas por companhias. Elas não são superstars, mas pessoas comuns, e isso será barato, efetivo e com mais credibilidade”
A afirmação (a) pertence ao mundo da ficção e a (b) ao mundo real. Na primeira afirmação temos a fala de abertura do filme “Show de Truman” (The Truman Show, 1998) onde o personagem Christoff, o produtor de um gigantesco reality show, justifica o programa; e na segunda afirmação, temos a fala de Jonathan Ressler, pioneiro da estratégia de “marketing invisível”. Apesar das afirmações provirem de mundos diferentes, o leitor percebeu a semelhança entre elas?
Tanto e (a) quanto em (b) temos exemplos de “privatizações” de relações humanas. A diferença está na escala: em Show de Truman, Christoff privatiza a vida de um indivíduo (confina Truman em um “reality show desde o seu nascimento) para conseguir audiência de TV; enquanto em (b) temos uma estratégia de privatização de relações humanas em larga escala por meio de redes sociais e relações sociais face-a-face para o lucro de empresas e corporações.
Assistindo a uma revista de notícias na TV, Derrick Borte (um artista plástico que virou jornalista e depois virou produtor e diretor de comerciais) viu uma matéria sobre “marketing invisível”: pessoas não sabiam que turistas mostrando uma nova câmera casualmente em abientes públicos ou uma menina bonita pedindo determinada marca de vodka em um bar eram atores contratados para expor produtos a clientes em potencial. Somado ao seu fascínio por “reality shows”, Borte acabou tendo a ideia do roteiro e dirigiu o filme “Amor por Contrato”, o seu primeiro filme.
Marketing invisível: agentes infiltrados para |
Borte quis nessa comédia romântica explorar as consequências de estratégias radicais de marketing e do consumismo nas relações humanas presenciais, isto é, dentro dos limites das convenções do gênero que uma produção hollywoodiana com atores famosos (Demi Moore e David Duchonovy) pode oferecer. Por isso, a narrativa abre mão em dar um tom mais contundente, mas o filme parte de uma ótima premissa para iniciar uma discussão.
O casal perfeito Steve e Kate Jones junto com seus lindos filhos adolescentes Jenn e Mick mudam-se para um elegante subúrbio de classe média alta com seus campos de golfe e requintados salões de beleza. Os Joneses passam a ser vistos como o modelo de família perfeita, equipados com as grifes mais caras e atuais (celulares, carros esportivos, roupas, móveis de estilo e festas abastecidas com bebidas e comidas das melhores marcas e procedências).
Logo se tornam líderes e criadores de tendências, admirados pelo sucesso e estilo de vida. Mas a vizinhança nem desconfia de que tudo nessa família é falso: eles são “trendsetters”, isto é, empregados de uma empresa de marketing que estão ali para simularem uma família perfeita. Na verdade os Joneses são uma vitrine viva de produtos, estilos e atitudes para, através da aparente espontaneidade e credibilidade desses “trensetters”, iniciar efeitos virais de tendências e comportamentos.
Como em todo filme hollywoodiano, o contexto (Sociedade, História e Cultura) são colocados entre parêntesis ou apenas como pano de fundo para uma estória de amor dificultada pelo conflito entre a família simulada e o afeto real entre Steve (ex-vendedor de carros e golfista fracassado) e Kate (workaholic e líder da “célula familiar” que deve bater metas fixadas pela empresa).
A crise da “lógica do papai-noel”
O marketing invisível pode ser considerado a reta final de uma longa história de técnicas publicitárias ao longo do século XX que se iniciou nas estratégias de repetição de estímulos para alteração de comportamento, passando pelas técnicas psicanalíticas para induzir a viciosidade e compulsão até o “approach” cognitivo para a construção da imagem de marcas e produtos.
Após toda essa longa trajetória, chega-se à seguinte constatação: os consumidores não confiam mais na propaganda e nem na publicidade tradicional. Isso não quer dizer que o ímpeto pelo consumismo e o fascínio pelo fetichismo, viciosidade e compulsão tenham desparecido. Pelo contrário, hoje esses traços são tão explícitos e desavergonhados que não necessitam mais do verniz ou do álibi dos slogans e textos publicitários. Os consumidores não necessitam mais de um suporte racionalizante que a instituição Publicidade e Propaganda sempre ofereceram às pessoas: a chamada “lógica do papai-noel”.
Explicando melhor, o termo “lógica do papai-noel” foi criado pelo pensador francês Jean Baudrillard no seu livro “Sociedade de Consumo”. Para ele, toda a lógica de persuasão publicitária estava numa espécie de alívio do sentimento de culpa por meio de álibis sutilmente sugeridos ao consumidor para que pudesse exercer livremente sua impulsividade e compulsividade. Não cremos em Papai Noel, mas, ao menos, a sua figura nos serve com álibi para justificar o consumismo natalino. Da mesma forma, nenhum consumidor crê em slogans, mas eles são ótimos para justificar (para si mesmo e diante dos outros) como álibis nossos impulsos.
“Amor Por Contrato”: abre mão da contundência |
Pois é esse mecanismo subjacente aos filmes publicitários que entrou em crise. O consumismo deixou de ser envergonhado pela sua inutilidade e superficialidade: transformou-se em “estilo de vida” e “identidade” Por exemplo, as chamadas “patricinhas” e “louras burras”, símbolos máximos da futilidade e consumismo, deixam de se esconder sob o manto dos álibis publicitários (compro porque “preciso”, “está na promoção” ou “está na moda”) para assumirem-se de forma desavergonhada e sem culpa que, na verdade, tornaram-se um “estilo de vida” ou “uma tribo” em redes sociais e blogs.
Orgulhosas dessa condição, deixaram de ser “vítimas da moda” para se tornarem “trendsetters” ou criadoras de tendências.
Mas se os consumidores deixam de “acreditar” (na verdade deixam de necessitar) no discurso publicitário tradicional, ainda acreditam nas pessoas, na espontaneidade de semelhantes que assumem sua espontaneidade, seja ela brega, chique, excessiva, fútil, esquisita ou dispendiosa. Consumidores que assumem sem culpa e ostentam isso nas relações sejam virtuais ou presenciais.
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