Daniele Mastrogiacomo e a experiência do jornalismo de guerra, por Arnaldo Cardoso

Em seus quarenta anos de profissão, Daniele Mastrogiacomo foi correspondente de guerra no Afeganistão, Irã, Iraque, Líbano, Somália e Congo. Entre 2014 e 2019 viveu no Rio de Janeiro

Daniele Mastrogiacomo e a experiência do jornalismo de guerra

por Arnaldo Cardoso

Da guerra do Golfo de 1991 – a primeira transmitida ao vivo por um canal de televisão, a CNN – até a presente guerra na Ucrânia, os avanços das tecnologias de informação e comunicação tornaram as guerras assunto popular.

Assistindo por dias seguidos a mais uma sucessão de imagens de destruição, sofrimento, desespero e desalento, essa guerra na Ucrânia – como todas, insensatas e cruéis – tem levado milhões de pessoas pelo mundo a se indagarem sobre as razões e motivações para a guerra.

Sob a pressão da dinâmica dos acontecimentos, o tempo requerido para a análise parece inviabilizado a cada míssil disparado e mais vidas ceifadas.

A extensa e densa literatura das relações internacionais – que tem na guerra um de seus temas permanentes – nos oferece ensinamentos recolhidos de séculos antes da era cristã, como em “A arte da Guerra”, de Sun Tzu (544-496 a.C.) ou “História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides (460-395 a. C.), ou ainda dos séculos mais recentes, dos quais o 20 foi um dos mais trágicos, obras de autores como Clausewitz, Kennan, Keegan, Morgenthau, Aron, Carr, Waltz, Kennedy, Walzer, entre outros, nos oferecem subsídios históricos e teóricos para pensar a recorrência das guerras na história da humanidade e, idealmente, identificar meios para erradicá-las, ou ao menos evitá-las. No entanto, é o jornalismo de guerra que captura imagens e relatos de homens e mulheres atravessados pelo horror da guerra, que produz uma etnografia da guerra, que nos atualiza sobre a brutalidade e estupidez de que os homens são capazes, infligindo a seus semelhantes sofrimentos indizíveis, lançando a todos ao coração das trevas, como sugerido por Joseph Conrad.

Quinze anos de uma experiência marcante, direta do front

Quinze anos atrás, precisamente no dia 8 de março de 2007, a Associação de Imprensa Romana convocou uma manifestação na capital do país pedindo pela libertação do jornalista Daniele Mastrogiacomo, então com 52 anos, sequestrado pelo Talibã no Afeganistão onde se encontrava trabalhando como enviado do jornal italiano La Repubblica.

Ele foi capturado no dia 5 de março, a caminho da província de Helmand – onde combates estavam ocorrendo entre forças do Talibã, EUA e OTAN –, junto com dois afegãos que o acompanhavam. Um deles, o motorista Sayed Agha, de 25 anos, foi decapitado na presença de Daniele.

Em 11 de março, um dos comandantes do Talibã, Mullah Dadullah, divulgou nota através da agência afegã de imprensa afirmando que mataria o jornalista italiano, acusado de espionagem, se as exigências do Talibã não fossem atendidas nos próximos sete dias. As exigências eram a retirada das tropas italianas do Afeganistão e a libertação de cinco combatentes talibãs, detidos pelo novo governo afegão liderado por Hamid Karzai.

Na época, altas autoridades da Itália, como o Primeiro-Ministro, Romano Prodi, e o Ministro das Relações Exteriores, Massimo D’Alema, declararam que o governo havia aberto canais humanitários para as conversas com o Talibã visando a libertação do jornalista. Autoridades políticas e religiosas, além de jornalistas de todo o mundo – inclusive árabe e islâmico – se manifestaram clamando pela libertação do jornalista. Invocavam o Artigo 3° comum às quatro Convenções de Genebra, o Protocolo Adicional II e a Norma 34 do Direito Internacional Humanitário, que estabelecem que “os jornalistas civis envolvidos em missões profissionais em áreas de conflito armado devem ser respeitados e protegidos, desde que não estejam tomando parte direta nas hostilidades”.

Os dias seguiram tensos envolvendo várias frentes de ação e diferentes interlocutores.

Daniele Mastrogiacomo foi libertado no dia 19 de março, depois de duas semanas de cativeiro. Nesse período o jornalista foi transferido diversas vezes de cativeiros, vivendo picos de tensão.

Em seus quarenta anos de profissão, Daniele Mastrogiacomo foi correspondente de guerra no Afeganistão, Irã, Iraque, Líbano, Somália e Congo. Entre 2014 e 2019 viveu no Rio de Janeiro e hoje vive entre Lisboa, Roma e Rio de Janeiro, mantendo sua atividade jornalística e vínculo com o jornal italiano La Repubblica, como correspondente para a América do Sul.

Em 2011, Mastrogiacomo publicou o livro “Days of fear”, em que relata a marcante experiência de seu sequestro e tempo no cativeiro, com reflexões que remetem ao “eterno drama humano: o encontro de um homem com o Outro”.

Daniele Mastrogiacomo – Um olhar experiente sobre o jornalismo de guerra

Dias atrás, em diálogo com Daniele Mastrogiacomo propus e ele aceitou responder algumas perguntas sobre os desafios do jornalismo de guerra, tendo em perspectiva a guerra na Ucrânia. Abaixo segue a entrevista:

AC – É comum repetirmos a frase que diz que “na guerra a primeira vítima é a verdade”. Você concorda com essa predição? Nessa guerra na Ucrânia isso está se confirmando?

DM – A frase atribuída a Ésquilo, famoso dramaturgo da Grécia antiga, infelizmente é uma constante nos conflitos. Mas nesta guerra, tão diferente e ao mesmo tempo tão igual às demais, fica ainda mais evidente. Há uma guerra de propaganda que se soma à de mísseis e bombas que torna muito mais difícil distinguir o que é verdadeiro do que é falso. As notícias se sobrepõem, se negam e depois se confirmam. Quando este desastre terminar, e todos esperamos que aconteça o mais rápido possível, será difícil fazer justiça às vítimas, como o Tribunal Penal Internacional de Haia provavelmente tentará fazer.

AC – Com a sua experiência acumulada como correspondente em zonas de conflito, quais são as maiores dificuldades para a realização desse trabalho de jornalismo de guerra?

DM – O correspondente de guerra deve ser uma testemunha direta e ao mesmo tempo evitar ser uma das muitas vítimas. As dificuldades são enormes. É preciso preparação física, força mental e psicológica. Deve ter excelentes contatos, contar com colaboradores locais que o ajudem no seu trabalho. Entender para onde ir, como construir seu serviço, acompanhar as notícias, coletar informações. A cada momento você tem que fazer escolhas. Seguir seus instintos, aproveitando sua experiência. É preciso muito pouco para ser ferido, morrer, ser sequestrado, desaparecer. Nesta guerra, três colegas já morreram e um ficou gravemente ferido.

AC – Neste conflito na Ucrânia, a guerra de informação tem sido intensa, produzindo diariamente vereditos sobre “quem está ganhando a guerra”. A maior parte da mídia ocidental, avalia que Putin está isolado e que já perdeu a guerra diante da opinião pública mundial. Os críticos dessa mídia ocidental denunciam que ela é aliada de seus governos e que produz narrativas falsas e parciais. Como você está vendo essa cobertura da guerra na Ucrânia?

DM – Acho que é uma das guerras mais difíceis para a mídia seguir. Porque você tem que estar em campo e juntos distinguir as diferentes narrativas sobre quem ganha e quem perde. Interpretar a realidade nem sempre é fácil: você pode dizer o que vê, mas precisa colocá-lo no contexto geral. Há uma evidente desproporção entre os dois lados. A Rússia tem o segundo exército mais forte do mundo, a Ucrânia acaba de reconstruí-lo. Mas Kiev tem uma resistência que surpreendeu a todos, incluindo Moscou. Infelizmente, isso sugere um longo conflito cheio de vítimas. A Ucrânia não vai desistir. Basta ver como eles lutaram durante a batalha de Maidan em 2014, quando a maioria escolheu a liberdade e o Ocidente.

AC – Você considera que o fato do presidente ucraniano, Zelensky, ser um profissional de comunicação tem influenciado a forma da narrativa ucraniana da guerra? Ele está representando o papel de herói?

DM – O presidente Zelensky aproveita suas habilidades de comunicação que vêm de sua experiência como comediante de televisão. Ele fala com as pessoas, mostra-se em Kiev, intervém na Câmara dos Deputados, no Parlamento Europeu, contacta primeiros-ministros e presidentes, discute com eles. Está fechado em seu bunker junto com seu governo, mas está aberto ao mundo. Ele usa as redes sociais e a mídia porque são suas ferramentas de pressão, mais do que armas e ameaças. Ele já é um herói. Certamente para o seu povo.

AC – Para países periféricos como o Brasil é possível ter uma cobertura jornalística independente diante de um conflito como esse? Ou só nos cabe reproduzir a cobertura feita pelas grandes agências de notícias?

DM – Tenho lido ótimas matérias na cobertura feita pela mídia brasileira. Claro que estar longe não ajuda, e quem tem a possibilidade de enviar jornalistas ao local acaba sendo favorecido. As agências de imprensa costumam receber notícias, como as relativas a negociações diplomáticas e ações paralelas à guerra. Mas o papel dos enviados continua sendo decisivo. Os colegas dos jornais brasileiros sabem bem disso.

AC – Dias atrás o governo Putin anunciou duras restrições à liberdade de imprensa na Rússia, proibindo o uso de palavras como invasão e guerra para noticiar o conflito na Ucrânia. Na sua opinião, em uma situação como essa, o jornalismo russo poderia praticar alguma forma de resistência diante da censura estatal? O povo russo ficou refém da narrativa oficial? A internet consegue furar esse isolamento?

DM – Putin, porque esta é uma guerra de Putin e não dos russos, usa as ferramentas que mais lhe agradam. Ele é um ditador, um criminoso. Fecha os jornais e as emissoras de TV independentes, cala as vozes dissidentes, aprovou uma lei que condena a 15 anos aqueles que usarem a palavra guerra e não uma “operação militar especial” e a 5 anos aqueles que se manifestarem a favor da paz. Já houve quase 10 mil prisões entre os russos que ousaram sair às ruas e protestar contra a intervenção. As sanções muito duras e sem precedentes desde o fim da Segunda Guerra Mundial começam a pesar na economia russa. Mas sozinhas elas não são suficientes, elas terão um efeito real apenas em alguns meses. Pagaremos também as consequências na Europa e aqui na América Latina. Mas é o mínimo que podemos fazer para combater essa agressão absurda. A liberdade está em jogo. A Ucrânia também está lutando por nós, por nossos valores, pelas escolhas que fizemos. Defende nosso modo de vida, nosso futuro. Porque queremos [e eles também] ser livres, com nossas contradições, e orgulhosos disso. (Tradução livre)

O filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960) que teve sua vida e obra marcadas pelos horrores da guerra de independência da Argélia (1954-1962) – o governo argelino fala de 1,5 milhão de argelinos mortos (a maioria civis) na guerra, já o governo francês alega terem sido 460 mil argelinos e 30 mil soldados franceses mortos –. Neste ano que completa 60 anos da independência do país, é oportuno recordar a reflexão de Camus de que a única resposta eticamente defensável diante do absurdo é a revolta.

As manifestações humanas, individuais e coletivas, diante de guerras, é um eloquente registro do espírito do tempo. 

Arnaldo Cardoso, sociólogo e cientista político formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), escritor e professor universitário

Redação

2 Comentários

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  1. É impressionante como que um jornalista com tanta experiência acredita nisto: “A Ucrânia também está lutando por nós, por nossos valores, pelas escolhas que fizemos. Defende nosso modo de vida, nosso futuro. Porque queremos [e eles também] ser livres, com nossas contradições, e orgulhosos disso. ” Parece um “jornalista” da Globo News.

  2. A narrativa de Putin de que a população russa estava sendo trucidada e de que a Ucrânia estava na iminência de entrar na OTAN só pode ser sustentada para um público que não tem acesso a fontes de informação independentes. Mesmo em nosso mundo onde setores de uma esquerda arcaica aceitam essa última justificativa de Putin, o custo da destruição física e das perdas humanas começa a parecer um pouco alto demais. Por que a Rússia não insistiu antes em uma negociação internacional? Por que não esperou até que ocorressem passos concretos para uma entrada na OTAN? Denúncias de laboratórios de armas biológicas secretas 15 dias depois do início de um ataque que não obteve a rendição do país, parece uma vacina de reforço para uma história que já estava mal contada. A contrainformação russa tem uma longa história de expertiese que vem desde os famosos “Protocolos de Sion”, mas em um mundo altamente conectado como o nosso, até lá fracassa.

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