Escrúpulos jogados às favas, por Sylvia Debossan Moretzsohn

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Do Observatório da Imprensa

Por Sylvia Debossan Moretzsohn
 

Quem conhece como funciona uma redação de jornal não se surpreenderia com a situação. A surpresa é quanto ao procedimento: tradicionalmente, as ordens para manipular o noticiário, por mais abjeção e revolta que causem, costumam ser verbais. Daí o espanto diante da notícia de que a direção de jornalismo da Globo enviou mensagem escrita determinando o corte de qualquer referência ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nas mais recentes denúncias da Operação Lava Jato, que investiga a corrupção na Petrobras.

O e-mail com essa orientação foi inicialmente divulgado no blog de Luís Nassif (ver aqui), no domingo (8/2), e logo se espalhou pela internet:

“(…) a diretora da Central Globo de Jornalismo, Silvia Faria, enviou um e-mail a todos os chefes de núcleo com o seguinte conteúdo:

‘Assunto: Tirar trecho que menciona FHC nos VTs sobre Lava a Jato

Atenção para a orientação 

Sergio e Mazza: revisem os VTs com atenção! Não vamos deixar ir ao ar nenhum com citação ao Fernando Henrique’.”

Segundo Nassif, “o recado se deveu ao fato de a reportagem ter procurado FHC para repercutir as declarações de Pedro Barusco [ex-diretor da Petrobras, um dos que fizeram acordo de delação premiada] – de que recebia propinas antes do governo Lula”.

As declarações constam de depoimento prestado em novembro do ano passado, mas apenas agora liberado. Barusco diz que começou a receber propina “em 97 ou 98”, mas esse trecho não apareceu imediatamente nas reportagens dos canais da Globo. O caso recebeu tratamento diferente no Jornal Nacional e nos jornais da GloboNews.

Recapitulando

As primeiras reportagens foram ao ar na tarde de quinta-feira (5/2). Na GloboNews, a primeira matéria (ver aqui) não faz referência ao período anterior aos governos petistas, mas à noite, no Jornal das Dez (aqui), essa menção é explícita e repetida no dia seguinte. Na tarde do dia 6/2, em matéria cujo link chama para o título “Ex-gerente da Petrobrás diz que começou a receber propina em 1997” (aqui), a repórter lembra que “na época o país era comandado pelo PSDB”, mas ressalva que, sobre esse período, “o ex-gerente da Petrobras não deixa claro se recebeu propina a pedido de alguém ou de algum partido político”.

Na longa reportagem, de quase seis minutos, em que começou a tratar do caso, em 5/2, oJornal Nacional utiliza seus habituais recursos de infografia para detalhar como funcionava o esquema denunciado por Barusco, mas omite a referência ao período de FHC. Pelo contrário, destaca, no infográfico, o pagamento de propina “em 90 contratos, entre 2003 e 2013, nos governos Lula e Dilma”. Apenas no dia seguinte, em reportagem um pouco menos longa (quatro minutos e meio, ver aqui), o JN menciona que o denunciante diz ter começado a receber propina “em 97 ou 98, durante o governo Fernando Henrique Cardoso”, mas também ressalva que ele “não esclareceu se o dinheiro recebido naquela época era destinado ao PSDB, partido do então presidente da República, ou a alguma aliança que o apoiava”. No sábado (7/2), o jornal anuncia que Fernando Henrique comentou “por escrito” o depoimento de Barusco (ver aqui), eximindo o seu governo de responsabilidade na história.

Deixando rastros

As reportagens informaram que os envolvidos cuidavam de não deixar rastros. Tampouco o tipo de ordem que partiu da direção de jornalismo da Globo deveria deixá-los. Mas deixou.

Seria improvável pensar que, nesses tempos de internet, o e-mail não vazaria. Mesmo considerando a hesitação dos jornalistas em denunciar o que ocorreu, por medo de perder o emprego.

Assim, a divulgação do e-mail só complicou as coisas para a empresa, ao menos em relação ao público minimamente atento, quando o Jornal Nacional pediu desculpas, em sua edição de segunda-feira (9/2, ver aqui),por ter insinuado que um dos ex-diretores da Petrobras, Guilherme Estrella, estaria comprometido no esquema de propina, quando o próprio denunciante o isentava.

Outras coisas viraram motivo de galhofa: por exemplo, a vinheta da GloboNews sobre o pedido do PT de “investigações na Lava Jato no período que antecede o governo petista”. Como disse o jornalista Eduardo Souza Lima em seu mural no Facebook, “não é nada disso, pessoal, eles só quiseram abreviar para caber na chamada. Afinal, ‘período que antecede o governo petista’ é bem mais curto do que ‘governo FHC’.”

Outro erro – que provavelmente foi mesmo um singelo erro de digitação, como tantos os que ocorrem e não deveriam ocorrer, pelo menos não com tanta frequência – ganhou outra conotação durante a cobertura do acidente com o navio-plataforma da Petrobras, na quarta-feira (11/2), em Aracruz, Espírito Santo: ao recapitular outros acidentes, a GloboNews divulgou, também em vinheta, que a explosão e o afundamento da plataforma P-36, na Bacia de Campos, que deixou 11 mortos, tinha ocorrido em 2011 (governo Dilma, portanto), e não em 2001 (portanto, governo FHC).

Pela culatra

Ao anunciar, em 11/2, o pedido da liderança do PT na Câmara para a ampliação das investigações da CPI da Lava Jato para o período anterior a 2003, considerando o depoimento de Barusco, o Jornal Nacional conclui a nota dizendo que “o Ministério Público Federal informou que se pauta pela isenção em suas investigações e não faz distinção de datas, prazos ou gestores”.

A mesma isenção deveria pautar o jornalismo, como as próprias empresas fazem questão de reiterar em seus princípios editoriais.

Sabemos que nunca foi assim, mas quando há um documento escrito apontando na direção oposta a denúncia quanto à manipulação é mais contundente. Assim, o e-mail disparado pela diretora de jornalismo da Globo teve efeito contrário e só ajudou a piorar a imagem da empresa, pelo menos entre os que têm alguma capacidade de discernimento e não se contentam com a primeira informação que recebem.

Mas, de fato, não é a primeira vez. Em março de 2010, quando representantes das empresas de comunicação se reuniram para discutir a terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos, a então presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), Judith Brito, afirmou que os meios de comunicação “estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada”.

Tratava-se de uma defesa do que as empresas entendem por liberdade de imprensa, por oposição à proposta do governo – e de muitos movimentos sociais, há muitos anos – de “controle social da mídia”.

Assumir-se como porta-voz da oposição significava, evidentemente, abandonar a posição de fiel da balança que as empresas de comunicação se arrogam, pelo menos desde a redemocratização.

A recente orientação para excluir qualquer menção ao ex-presidente Fernando Henrique do noticiário sobre corrupção na Petrobras não deveria mesmo causar espanto. Mas não deixa de ser uma forma de mandar às favas todos os escrúpulos de consciência.

***

Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

7 Comentários

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  1. Não há interese nenhum em

    Não há interese nenhum em divulgar os escândalos da era FHC pois a mesma está de mãos dadas com a mídia de então e de agora.  Os interesses da oposição assim como da mídia são os mesmos…  O pré-sal, essa fortuna colossal brasileira, precisa ser vendido e o bolo fatiado entre eles.  é isso….sempre isso.  Claro que com os estados governados pelo PSDB, em crise (SP quebrado, MInas quebrada, Paraná quebrado) recuperar o governo federal é o único jeito…precisam da chave do cofre.  Pois assim como os gafanhotos, por onde passa o PSDB, não sobra nada…nem água!!!  A mídia, amarrada ao partido e aos corruptos de sempre, também sai com o bolso cheio de contratos firmados e anúncios milionários.  Brasil?  Brasileiros?  E quem se importa quando se tem apto em Paris e apto em Miami!!  

  2. Não é oposição.

    A autora do artigo comete uma falha fatal: não se trata de escrúpulos ou de fazer oposição, trata-se de banditismo inaceitável e visto com olhos vendados pela justiça deste país. É um serviço público e por concessão e usado para o crime.

    Escrúpulos não passa nem perto, Escrúpulo é quem trata de um assunto levar e conta a ética ou a moral. é quem por exemplo fala de um crime e mostra a crueza do mesmo em cenas chocantes e desnecessárias, etc.

    Quanto a oposição, o que a imprensa bandida faz nunca foi oposição. Mesmo sendo fã da Dilma ou do Lula eu sei que oposição é um componente importante para qualquer governo. Seria ótimo se a imprensa fizesse oposição. Precisamos de oposição até porque o psdb ficou a reboque do pig e se desmaterializou, se contaminou, desceu, sumiu. Mas o que temos é banditismo de DESINFORMAÇÃO,  informação errada ou deturpada, jornalismo de esgoto que manipula os fatos e lhes dá uma versão costumizada por bandidos. Criam um público de idiotas e desinformados e mal informados. Escolhem, detrupam, escondem. Repito: bandidos.

    Hoje mesmo escutando a rádio guarani, do jornaleco estado de minas, eles se referiram as contas do HSBC como contas onde os corrutos que roubarama petrobrás colocaram os dinheiro. E foi dito: o dinheiro da corrupção da petrobrás no HSBC. Há algo mais bandido e de detrurpação de um fato maior do que este? O pobre coitado do jornalista que escreveu a nota não merece a nossa mais piedosa dó. Mas reflete banditismo. Deturpação da notícia. Desinfotmação. Coisa de bandido que perdeu a noção das coisas para puxar o saco do patrão e passou a acreditar no que faz para poder sobreviver e olhar os filhos.

    Não há como conteporizar: o pig é criminoso e bandido. Muito, mas muito, longe da falta de ética, de escrúpulos ou de oposição.

  3. no caso em questão…

    acredito que já temos mais do que o suficiente, em provas produzidas pela própria mídia, por acobertamento ou cumplicidade com a corrupção…………………………..

    podemos até entender que não é facil denunciar um FHC protegido por vários, mas se já temos pelo menos 3 dos que protegeram, torna-se bem mais fácil

      1. tratando-se de politicagam ou não…

        apenas a revelação, retrocedendo, já seria a punição

        afinal, são ou não são a oposição, se até já reconheceram!?

  4. a mídia sempre escondeu e favoreceu a maior corrupção…

    hoje quer nos convencer de que a corrupção começa quando é descoberta. Que mídia cretina!

    pois além de esconder que a corrupção sempre existiu com FHC e antes, revela também o que realmente não existiu no período FHC,  jornalismo de verdade, investigação e polícia federal de verdade

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