Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Globo faz mais três “Contos Maravilhosos” para Natal do mérito-empreendedor, por Wilson Ferreira

Por Wilson Ferreira

“Olhe sempre para o lado brilhante da vida”, cantava um condenado à morte pelos romanos, na cruz, no filme “A Vida de Brian” do grupo inglês de humor Monty Python. Diante de uma realidade birrenta e teimosa que insiste em contradizer a pauta da “retomada do crescimento econômico”, a mídia corporativa faz como Eric Idle cantando naquele filme: tenta transformar más notícias em positivos “Contos Maravilhosos”, conceito dos estudos de narratologia do pesquisador Vladimir Propp – contos mágicos de perda e recompensa. Para tentar elevar o astral da patuleia, agora convertida em mérito-empreendedores, a Globo criou mais três edificantes contos para as festas de fim de ano: os contos maravilhosos sobre o botijão de gás, o Conto Maravilhoso do resgate dos valores natalinos e uma novidade – o Meta Conto Maravilhoso da jornalista demitida.

Enquanto universidades privadas demitem em massa e engrossam as estatísticas do desemprego, os números de moradores de rua crescendo em 75%, o prosaico botijão de gás com o sexto aumento do ano forçando famílias a retroceder ao fogão à lenha e às velhas espiriteiras com álcool, além do comércio popular de final de ano não apresentar o aguardado aumento nas vendas, a grande mídia continua a sua cruzada estoica de tentar transformar todas essas mazelas da estagnação econômica em inspiradores contos maravilhosos. 

Para tentar elevar a moral da patuleia e fazê-la acreditar que lá na frente, depois de atravessar o deserto, estará a terra prometida do mérito-empreendedorismo – a fé de que querer é poder.

Em postagem anterior discutíamos como uma realidade que insiste em contradizer os visionários especialistas e pesquisas, associada a era das redes sociais e dispositivos moveis, obrigou a mídia corporativa a buscar uma estratégia híbrida de manipulação: transformar más notícias em “Contos Maravilhosos”, no sentido dado pelo estruturalista russo Vladimir Propp – clique aqui.

Vladimir Propp (1895-1970)

São verdadeiros “contos de magia” nos quais sempre parte-se de um dano ou carência, passando por funções intermediárias (transmissão do objeto mágico, reação etc.) e chegando ao casamento e recompensa.

Sem poder mais dissimular (mentir, esconder etc.) diante da abundância de informações disponíveis nas redes sociais (pelo menos enquanto a neutralidade da Internet permitir), o jornalismo corporativo é obrigado a apresentar as “más notícias”. Mas agora o desafio é reverte-las e transformá-las em “contos de magia” de superação e recompensa.

Claro que essa estratégia colocada em prática não é consciente. Afinal, com a atual precarização dos cursos superiores, nenhum jornalista possui formação cultural generalista suficiente que permita aplicar conceitos de narratologia em um texto noticioso.  

Propp descobriu nos contos folclóricos russos uma estrutura narrativa recorrente, uma “psicologia dos povos” que certamente figuram nos atuais produtos da indústria do entretenimento como arquétipos. Mas no caso do Jornalismo, nada mais é do que uma espécie de Wishifull thinking – de que a realidade magicamente se converta naquilo que é esperado nas reuniões de pauta dos “aquários” das redações.

Vamos analisar mais três Contos Maravilhosos “proppianos” que até poderiam ser divertidos, não fossem trágicos…

 

1 – Aumento do preço do botijão de gás rende mais contos maravilhosos

Não importa se o aumento dos preços é da eletricidade, da gasolina ou do botijão do gás. Sempre os motivos alegados pelo governo, e diligentemente replicados pelo jornalismo corporativo, estão no campo das fatalidades “naturais”: falta de chuva ou a tensa conjuntura internacional dos preços.

Só o gás de cozinha sofreu reajustes que acumulam 50% num ano em que os especialistas midiáticos definem como de “retomada do crescimento e de queda da inflação”. 

Diante dessa contradição entre a pauta da retomada e as insistentes notícias de reajustes de preços, nada melhor do que transformar tudo em um conto maravilhoso. 

Por exemplo, para os aumentos das tarifas de energia elétrica, a edição do Jornal Nacional de 05/12  qualifica como “estímulo para o consumo de eletricidade fora dos horários de pico”.

E outra reportagem do telejornal na qual os aumentos do botijão de gás também viraram uma espécie de estímulo: a volta da “cozinha à moda antiga” do fogão à lenha, com direito a trocadilhos como a da dona de casa Maria do Socorro que “manda brasa” na cozinha. 

Com um olhar meio perdido, virando de um lado para o outro, como fosse o espelho da própria ansiedade da repórter diante da necessidade de confirmar a pauta do editor, Maria do Socorro fala meio sem convicção: “… é mais gosto e mais barato, isso é verdade…”. 

E na mesma matéria, também a Dona Emília, “cozinheira de mão cheia”, prepara tudo na boca do fogão e não usa mais o forno: “economiza gás, mas no sabor não tem economia…”, sintetiza a atenta repórter a sabedoria popular da dona de casa.

Lições tatibitate de “economia doméstica”

Os anos de abastança econômica e o surgimento da Classe C (que começou a ter os alguns hábitos de consumo de classe média alta) criou como reação a figura da “simplicidade descolada” – por exemplo, enquanto o Rodrigo Hilbert em seu “Tempero de Família” do GNT fazia seu próprio fogão a lenha e valorizava a volta das “tradições populares antigas” como signo diferenciado de consumo para a classe média alta, a Classe C esbaldava-se na ostentação comprando fogões novos de seis bocas com fornos espaçosos.

Hoje, quando a arrependida Classe C retorna à lenha e à boca do fogão, tudo transforma-se num conto maravilhoso do retorno do povo à sua própria sabedoria perdida pelos anos de “consumismo” e de “vida supérflua” da era lulo-petista: agora, cozinha “à moda antiga” com pratos “que não economizam sabor” e cozinheiras que “mandam brasa”

Mas em tempos do modo de pensar mérito-empreendedor (no qual todos os “desafios” podem ser “equacionados” com “planejamento” e “ferramentas criativas”), os contos maravilhosos devem ter o toque de “gestão”, como mostrou o Fantástico desse último domingo.

Dessa vez o “conhecimento mágico” foi transmitido por uma especialista ou gestora que iluminou a ignorância popular: Daniela Godinho, autointitulada “pioneira de educação financeira e comportamental no Brasil (mais um desses personagens da chamada “economia criativa”), “treinou” a Dona Jandira que fará uma ceia para 15 pessoas, em um bairro popular de São Paulo, com dicas da especialista Daniela.

As “dicas” são nada mais do que pérolas do pensamento gestor do empreendedorismo: divisão dos alimentos em “grupos” antes de serem levados ao forno, “planejar uso e a capacidade do forno”, “proporcionalidade das panelas” etc. … Já podemos imaginar o lançamento de futuros aplicativos, por alguma startup, para a gestão da cozinha. 

E todas as dicas da “especialista em educação financeira” em tom de voz quase tatibitate, como se tratasse a pobre Dona Jandira como uma ignorante.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

6 Comentários

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  1. Rir de tudo é desespero

    Transformar a desgraça em risadas pode ser divertido! No cinema.

    Aqui fora, aonde a realidade regride 100 anos (ainda bem que a lei áurea já completou 129 anos, senão, já imaginou o risco?) não há graça.

    Mas considero que seja merecido, afinal, quem abandona sua sorte aos desatinos de gente assim, reclama de que?

    Como sempre, vão esperar as benesses e, quando e se chegarem, beijarão as mãos do salvador, para mais um pouco a frente, acusá-lo da sua própria cupidez.

    Bravo mundo velho! 300 anos de escravidão gerou esses aleijões. Nem outros 400 nos livrarão deste mal, pois a educação jamais chegará para mudar. Se mudar, será para permanecer tudo como d’antes.

    Logo, poderei partir desta pocilga e deixar para trás todo esse desespero. Gostaria de me despedir à moda da Carlota Joaquina deste país cronicamente inviável.

     

  2. …até poderiam ser

    …até poderiam ser divertidos, não fossem trágicos…

    “Se está gostando tanto, minha linda repórter, vamos trocar então. Você fica com a minha lenha e eu com o seu fogão.” no bom sentido, lógico; como diria o Zeca Baleiro.

    …capacidade do forno e proporcionalidade das panelas…(sic) – merece um curso pós – pós canalhice descarada.

    … A ideia do ritual… já que estamos aqui, vamos comer bem, fazer brinde seja com que bebida for…”, completou entusiasmada…sem visar a questão comercial da data, as pessoas resgatam os valores mais belos do significado do Natal…quase chorei nessa; como é saudável ser pobre!

    (Dinheiro, riqueza, nada disso é bom, perverte os sentidos, sentidos verdadeiros da vida simples e desapegada. Vocês, pobres e miseráveis, não sabem o quanto são felizes; por isso nós estamos aqui para dizer isso para vocês. Continuem assim: simples, humildes, verdadeiros, honestos… – corta, volta ao estúdio e close nos olhos vermelhos e marejados…!)

    Fecha o pano, pausa para os comerciais. Agora o carnaval:

    “Veja o pessoal da comunidade, a Mariazinha, aquela minha secretária (doméstica) que é um primor de pessoa, veja que linda, como samba no pé, que graça; como o brasileiro é um povo alegre; chego às lágrimas…”

    skindô, skindô

    Fui!

     

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  3. Monty Phyton realmente é uma

    Monty Phyton realmente é uma comédia primorosa na mordaz e fina ironia inglesa. Mas os contos (de carochinha) da Rede Globo para beneficiar o golpe dos corruptos que ela apoiou e que levou o país para este estágio de miséria, desespero e desesperança no qual se encontra não tem nada de comédia, e tudo de tragédia…

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