Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
[email protected]

Metáforas e inferências do fim de semana eleitoral ou Segura, Berenice!, por Leticia Sallorenzo – a Madrasta do Texto Ruim

Metáforas e inferências do fim de semana eleitoral ou Segura, Berenice!

por Leticia Sallorenzo – a Madrasta do Texto Ruim

Sábado e domingo, 8 e 9 de setembro de 2018

O rasgo na barriga de Jair Bolsonaro já rendeu alguns desequilíbrios ao corpus de manchetes: além de aumentar o volume de reportagens, tornou o uso do verbo atacar e do substantivo ataque totalmente compatível com a semântica dessas palavras – algo que não ocorreu no segundo turno de 2014, como demonstro no meu livro Gramática da Manipulação (que já está à venda). Atacar / ataque são apalavras que pressupõem um ato irracional, intempestivo, que foi o que aparentemente aconteceu com Bolsonaro – eu tiro o aparentemente do meu texto quando as investigações forem concluídas. Ainda tenho uma série de perguntas sem respostas desse quiproquó todo.

Mas voltemos à forma linguística das manchetes. O ataque contra Bolsonaro também suscitou o uso de metáforas de guerra e paz e orientacionais. (Lembrando que metáfora é uma forma de explicar uma coisa em termos de outra coisa). O Estadão, por exemplo, nos trouxe no sábado:

 

  1. Ataque a Bolsonaro freia agressões na campanha (Estadão, interna, 8/9)

 

Temos duas palavras que categorizam imagens e ideias antagônicas. Um movimento de ataque é de avanço, mas na manchete do Estadão esse avanço freia agressões. Além de orientacionais, por aludirem a movimentos de avanço e recuo, essas metáforas também nos remetem à ideia de guerra, e temos aqui uma nova metáfora conceitual: ELEIÇÃO É UMA GUERRA. Não sei se George Lakoff, meu guru e um dos maiores estudiosos de metáforas do mundo, já havia mapeado essa metáfora nas eleições americanas. Certeza, mesmo, é a metáfora conceitual ARGUMENTAÇÃO É UMA GUERRA, da qual ele fala desde 1980, em Metáforas da vida cotidiana (Metaphors we live by). O que indica que o Brasil segue sempre inovando, né? (contém ironia)

No mais, é muito legal ver o Estadão preocupado porque “disputa pela presidência ficará ainda mais emocional”. Logo o Estadão, que vem nos brindando com as manchetes mais emocionais e menos elegantes da temporada. “ATA”, como diria aquele meme da Mônica diante do computador (algo como: eu me recuso a acreditar que você está jogando essa mentira pra cima de mim, mas eu vou disfarçar e fazer de conta que acredito em você).

Também no sábado, Folha nos brinda com um artigo de título bem metafórico:

 

  1. A complexidade do samba eleitoral – Maurício Moura (Folha, Interna, 8/9).

 

Temos a metáfora em sua plenitude, explicando um processo eleitoral (uma coisa) em termos de samba (outra coisa). Mas de todas as metáforas do sábado, a do Globo é tão intensa que praticamente alude a um campo de batalha:

  1. Com Bolsonaro fora de perigo, vice e filhos assumem linha de frente (Globo, 8/9, capa)

 

Toda a manchete nos remete à ideia de comandante ferido em batalha, vice e filhos entrincheirados e avançando contra o inimigo. Algo como a Mulher Maravilha nesta parte do filme:  (dsclp, mas foi a única cena de guerra que me veio à cabeça.)

Fora de contexto, essa manchete remete à guerra. Em seu contexto, ele remete a uma eleição difícil e belicosa. E mais uma vez aciona as metáforas conceituais ELEIÇÃO É UMA GUERRA e ARGUMENTAÇÃO É UMA GUERRA.

E antes que você se pergunte quem é o inimigo nessa guerra, trago outras duas artimanhas linguística a serem analisadas aqui, que estrearam com garbo e pompa no domingo numa reportagem bem marota da Folha, as inferências e os pressupostos.

 

  1. Cidade palco de ataque tem tradição de apoiar PT (Folha, 9/9, interna)

 

“Ah, se na cidade palco de ataque só tem petista e eleitor do PT, foram os petistas que atacaram o Bolsonaro!”, você pode concluir. Mas isso tá escrito lá em cima? Não, né? Ah, então eu não posso afirmar isso? Posso, porque a literatura me permite: o paper On invited inferences (sobre inferências sugeridas), de Geiss e Zwicky, de 1971, já explica que frases como “Está frio aqui” dão a entender “por favor, feche a janela”.

Se considerarmos que a manchete de capa da Folha traz um cientista político dizendo que “Bolsonaro não é ameaça à democracia”, aí você soma as inferências da capa com as inferências da manchete 4, e temos que Bolsonaro é um santo, o demônio é o PT.

Manipulação? Na imprensa tradicional? Magiiina, tudo gente fina, elegante e sincera, todo mundo trabalhado no jornalismo com correção…. De novo, como diria a Mônica do meme: ATA!.

Sejam bem-vindos à segunda semana de campanha. Segura, Berenice!

 

Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

4 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Olha a faca

    Ainda bem que o agressor do Bolsonaro não tinha uma pistola automática e ainda bem que a entourage do Bolsonaro segurou seus instintos e não fez justiça pelas próprias mãos, linchando o agressor.

  2. Ataque

    Atacar / ataque são ​[palavras] que pressupõem um ato irracional, intempestivo

    Discordo. Ambas são palavras de largo e tradicional uso, tanto nos esportes quanto na política e na atividade militar, para descrever atos, ou séries de atos, racionalmente planejados:

    O Madureira ataca sempre pela esquerda, onde a defesa do Flamengo é mais frágil.

    O ataque alemão à França foi detalhadamente planejado pelo OKW, sob o nome em código de “Fall Gelb” (Caso Amarelo).

    Os repetidos ataques da ala blairista ao líder Jeremy Corby fazem parte de uma estratégia de reconquista do partido pelo assim chamado “New Labour”.

    1. é um verbo também acionado por sujeitos irracionais

      – O homem atacou a mulher : Temos uma frase q mostra q sujeitos humanos aiconam o verbo atacar.

      – o cachorro atacou o gato: Temos uma frase que mostra que sujeitos não humanos e animados acionam o verbo atacar

      – O poste atacou o muro: temos uma frase que mostra que sujeitos não animados não acionam o verbo atacar.

       

      O verbo atacar, portanto, é compartilhado por sujeitos racionais e irracionais. Ao contrário do verbo criticar, acionado apenas por sujeitos humanos (o cachorro não critica o gato; o poste não critica o muro). Criticar pressupõe raciocínio, ponderação, pensar.

       

      Todos os exemplos de atacar que vc deu são derivações por extensão de sentido – logo, são metáforas conceituais.

      Atividades militar e esportiva pressupõem ímpeto, ação, investida. É o mesmo tipo de ação que move um cachorro contra um gato. E diferente da ação que leva alguém a criticar algo ou uma pessoa.

       

      O ataque do madureira e o ataque do exército russo têm o mesmo ímpeto do ataque do cachorro contra o gato. é investida, é uso de força / velocidade contra um paciente/objeto direto.

       

      Já os ataques da ala blairista contra o premiê são, na verdade, críticas, expressas de forma ofensiva.

       

      Lembrando que o que bolsonaro sofreu na quinta-feira foi um ATAQUE. quem o atacou foi um AGRESSOR. Adélio não “criticou” Bolsonaro com uma faca. Adélio ATACOU Bolsonaro com uma faca. 

      É um verbo instintivo, intempestivo, que, dependendo do contexto, pode pressupor algum raciocínio, mas, em geral, é usado também e principalmente pra expressar ímpetos e instintos.

       

      Espero ter esclarecido.

      1. Crimes premeditados

        Nem todos os crimes são premeditados. Quando um golpista vê alguém de bobeira com uma carteira, ele, sem pensar duas vezes, bate-lhe a carteira e grita “pega ladrão” a fim de despistar os perseguidores. É assim que fazem o $érgio Moro e o Dallagnol quando se apropriam indebitamente do auxílio-moradia a que não fazem jus. É assim que faz o judiciário, ao se conceder um aumento de salário de quase 17% ao tempo em que precarizam as relações de trabalho através da terceirização generalizada.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador