O dia que a TV pública merecia direito de resposta na TV pública
por Camila Martins e Isabela Vieira
03 de setembro de 2024, o dia que jamais esqueceremos na mídia pública brasileira. Isso porque o programa “Sem Censura”, exibido na TV Brasil pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), recebeu o ex-diretor da Globo, José Bonifácio Oliveira Sobrinho, o Boni.
Não só o recebeu como o ovacionou em uma roda laudatória de entrevistadores sem qualquer capacidade crítica e jornalística, revelando que comunicação não se faz por click bait ou por influencers. As declarações dadas por ele ao programa demonstram a necessidade urgente da retomada do projeto de mídia pública, com participação popular, como o único capaz de se contrapor às teses do todo-poderoso e de fomentar a cidadania nas telas, fundamento constitucional que Boni trabalhou para prejudicar.
Relembremos alguns fatos para evidenciar tal estratégia. Afinal, trabalhamos com fatos. Em 15 de setembro de 2020, durante uma entrevista no programa Roda Viva, Boni tergiversou sobre a ditadura civil-militar e a influência dos meios de comunicação: “ficaram com medo do João Goulart estatizar toda a comunicação no Brasil e todos eles começaram apoiar a chamada “revolução” e isso foi unânime, a imprensa inteira brasileira. A Globo naquele momento não tinha ido ao ar, mas O Globo apoiou bastante”.
Em 26 de novembro de 2011, no programa Dossiê da Globo News, Boni admitiu a manipulação em favor de Collor durante o debate presidencial com Lula em 1989: “conseguimos tirar a gravata de Collor, botar um pouco de suor e colocamos pastas com supostas denúncias contra Lula em pastas vazias”. Em novembro de 2017, Boni assumiu que não afastaria William Waack, após o vazamento de um vídeo com comportamento racista. E não voltou atrás.
Essas são situações e frases do próprio Boni, que por anos dirigiu uma das principais emissoras do país, a Rede Globo, e que alicerçou as bases para a operação Lava Jato, para o golpe ao mandato da presidente Dilma Rousseff, para as reformas trabalhista e previdenciária e até hoje faz campanhas em favor do agronegócio que dizima as nossas florestas, rios, fauna e flora (o agro não é nada pop) e em favor do empreendedorismo que precariza e não oferece direitos trabalhistas. Boni é responsável por construir um imaginário racista, colonizado, heterocisnormativo do povo brasileiro, no qual o próprio povo não se vê representado.
É importante lembrar que a missão da EBC é “criar e difundir conteúdos que contribuam para o desenvolvimento da consciência crítica das pessoas”. No entanto, o que vimos no “Sem Censura” foi o contrário disso. E foi também uma violação ao Código de Ética dos Jornalistas, que versa: “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Em um dos momentos do programa, a apresentadora questiona Boni sobre o “politicamente correto” e ele diz que “seria preso” hoje em dia. Todos da bancada riem diante de uma resposta que atenta contra os direitos humanos. Afinal, o chamado “politicamente correto” é a luta contra o racismo, contra o machismo, contra a LGBTQIAPfobia.
Boni chega a afirmar que a comunicação pública é “dispensável” e nenhum entrevistador é capaz de indagar ou apresentar os princípios da EBC que é de afirmar a comunicação como um direito de todas as pessoas, e não como lucro e mercadoria como a Globo faz.
Como sociedade, precisamos reunir os movimentos sociais, sindicatos, universidades, parlamentares e intelectuais para pressionar pela retomada do Conselho Curador da EBC, como instância de participação popular e também de zelo pelos princípios da empresa. O Sem Censura tem refletido a tônica do que não queremos na TV pública. Não foi para isso que a sociedade civil está organizada desde a Constituinte.
Iniciamos o texto marcando a cronologia deste fato, e é fundamental assinalar que essa entrevista com Boni aconteceu no mesmo dia de uma paralisação de jornalistas da EBC por um Plano de Cargos e Remuneração com isonomia. Na proposta da empresa enviada ao governo, os jornalistas, entre todas as categorias de nível superior, são os que vão ganhar menos. Na porta da empresa, uma faixa reivindica “valorização de todas as categorias”. Como se observa, a empresa precisa mesmo respeitar seus jornalistas e retomar seu rumo. A subserviência ao modelo de comunicação privada traduzido na figura de Boni não pode prosperar.
A abertura do “Sem Censura”, um programa criado logo depois da ditadura civil-militar para discutir os principais temas do país, irrompe: “está começando o programa mais democrático da televisão brasileira. Aliás, televisão que hoje existe graças a um paulista de Osasco (…) até virar o todo poderoso do padrão Globo de qualidade”. Encerramos esse texto proclamando que este programa infringiu todos os princípios da comunicação pública brasileira e precisa ser revisto.
***
Camila Marins é jornalista, mestre em políticas públicas em direitos humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro.
Isabela Vieira é jornalista, mestranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro e empregada da EBC. Integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-Rio) do SJPMRJ.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “
Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.
Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.
Não por acaso os governos petistas são fracassos na comunicação social desde sempre.
Da mesma forma indicam ministros aos tribunais superiores que votam contra o governo mesmo forçando situações legais – vide os mensalões tucano e petista.
É o que chamo de “o peso da canga”, que curvou a espinha dorsal de uns que não conseguem mais andar eretos ou, fracassados, que se contentam em bajular os “sinhozinhos” e “sinhás”.
Do outro lado o uso continuado do chicote criou “modus operandi” de figuras menores mas com pretensões a grandezas e dos chefetes de sempre.
Por isso seguimos sendo colônia de uns e quintal de outros.
No seu direito de resposta contra Datena, o Marçal vai retribuir a cadeirada recebida com mesadas polpudas para os ricaços.
O nosso ethos colonial é o problema – da direita e da esquerda. E a Globo e globais, os oportunistas, estão só pungando no nosso colonialismo.
O insuspeito Silvio Romero escreveu, em 1908, que “É um facto positivo, claro, evidentíssimo por todos reconhecido e proclamado, que as três classes que têm mais de perto dirigido a vida mental e pública do povo brasileiro – os políticos, os jornalistas e os literatos, levaram a um tal gráo de confusão, pessimismo e desanimo, que nem elles mesmos tomam mais pé no meio dos desatinos que accumularam.”
Pensamos conforme a metrópole quer que pensemos. É preciso descolonializar o Brasil. Quem tem coragem para por a mão na massa?
O entulho é muito grande para nosso pequeno caminhãozinho e a pá carregadeira lembra formiguinha, aquela(s) que não para.
Importante texto. O governo do Presidente Lula precisa retomar o projeto de democratização dos meios de comunicação fortalecer as empresas públicas de comunicação,como a EBC, rádios etc.