O jornalismo cúmplice, desvendado pela Vazajato, é padrão histórico, por Luis Nassif

Não era o caso de nominar, mas de denunciar uma prática deletéria do jornalismo, o jornalismo-sela, no qual o jornalista se deixa cavalgar pela fonte

A reportagem cuidadosa, e crítica, de Ricardo Balthazar, da Folha, sobre a Vazajato, não mereceu edição impressa, nem chamada de capa. Mas recebeu um bom espaço digital na Ilustríssima. Relata a cumplicidade com as fontes dos jornalistas que cobriam a Lava Jato.

Muita gente queria ver sangue correndo, o nome do editor que alimentava a Lava Jato de denúncias contra Ministros do Supremo, ou os jornalistas que enviavam previamente as entrevistas para que as fontes pudessem corrigir ou acrescentar perguntas. Não era o caso de nominar, mas de denunciar uma prática deletéria do jornalismo, o jornalismo-sela, no qual o jornalista se deixa cavalgar pela fonte.

Infelizmente é uma prática que está na raiz do jornalismo brasileiro, fruto do próprio desenvolvimento do modelo pátrio, com jornais servindo de alavancas para outros negócios ou para o uso político despudorado.

Nos casos mais rumorosos, de denúncias continuadas, o recurso à lisonja historicamente foi elemento de competição na cobertura. Pior, no caso brasileiro houve a institucionalização da lisonja, com grupos jornalísticos criando prêmios para fontes a quem caberia a eles a fiscalização; premiando-as com capas laudatórias.

Especialmente a Globo, sempre utilizou com excepcional competência a lisonja e o uso de suas celebridades artísticas – que causam deslumbramento em cabeças interioranas, especialmente do Judiciário, em um período em que juízes e procuradores não disputavam holofotes. Suas festas de final de ano, historicamente, foram montadas para colocar em contato autoridades e seus artistas mais célebres.

É só lembrar como utilizaram a lisonja para atrair o então Ministro Ayres Britto e a Ministra Carmen Lúcia, quando presidentes do STF. Carmen tinha um guru para frases de impacto. Cada frase dela, depois de empossada presidente do STF, era saudada com manchetes do Globo. A cobertura deixava de lado o caos administrativo em que ela jogou o STF, a falta de coragem de colocar em votação temas polêmicos, a paralisação de iniciativas relevantes, como as audiências de custódia e mesmo as demonstrações de caráter frágil, o jogo de intrigas contra assessores, contra colegas. Bastava a frase de efeito e a manchete de impacto.

O mesmo fizeram com Carlos Britto. Os poemas de “Carlinhos” eram publicados e enaltecidos. Aliás, confira-se a cobertura dos jornais sobre os Ministros do Supremo, logo após o mensalão. Ayres Britto informando que sua preocupação atual era a teoria da relatividade; Fux explorando seu lado roqueiro; Barroso, explodindo nos quatro cantos da Globo como eu me amo porque sou muito bom e desejo apenas o bem.

Com Sérgio Moro foi fácil. Moro é de um círculo provinciano que se deslumbra até quando chamado ao camarim de um Roberto Carlos.

O caso Tieppo

Esse jornalismo sem espinha dorsal não é fruto dos novos tempos: é característica nacional. Lembro-me do escândalo Tieppo, no início dos anos 80, com Estadão e Jornal do Brasil – os dois jornais mais influentes da época – esmerando-se em puxar o saco de um delegado grisalho, titular do caso.

No Jornal da Tarde, resolvemos investir em jornalismo investigativo a sério e descobrimos a grande mutreta entre o delegado, Tieppo e Romeu Tuma, visando esconder o caixa 2 da corretora, que listava os investidores que aplicavam no exterior – em um período em que era proibido.

Preparamos uma reportagem de uma página. Ela foi enviada a Ruy Mesquita, diretor do jornal, que estava em sua fazenda. De lá veio o recado, transmitido pelo diretor de redação Fernando Mitre.

– O doutor Ruy pergunta se tem certeza sobre as informações.

– Certeza absoluta!

E a reportagem foi publicada.

Como seria hoje, ainda mais em um tema em que havia interesse político direto da mídia, em derrubar um governo, como foi o caso da Lava Jato? A saída generalizada, de empresas e empregados, foi o exercício da lisonja, praticado especialmente com Sérgio Moro, o juiz que se tornou Ministro pequeno, minúsculo, sem dimensão intelectual, sem sofisticação, que aceita todos os desaforos de seu chefe.

O marketing pessoal

O que os jornalistas fizeram foi emular os patrões. Alguns investiram no marketing da Lava Jato, escreveram livros, participaram de feiras literárias ao lado de seus personagens. Aplicaram, no campo pessoal, o mesmo modelo aplicado por seus jornais no campo corporativo: pegar carona na onda Lava Jato.

Aliás, uma das características atuais é o investimento do jornalista no seu marketing pessoal. Em países com opinião pública desenvolvida, as grandes personalidades jornalísticas individuais são guardiões de valores civilizatórios. Não importa para onde o vento sopre, eles operam como bússolas, apontando o caminho dos direitos.

No caso brasileiro, a partir dos anos 90 houve o avanço dos âncoras, o sujeito capaz de dar opinião sobre tudo. Inicialmente restritos ao rádio e TV, nos programas populares, em pouco tempo chegaram na mídia escrita. Criou-se um populismo midiático, com parte dos jornalistas buscando a onda do momento para se encaixar, não pretendendo mais informar o leitor, mas se mostrar solidário à indignação do leitor.

Repito: não é fenômeno de agora. Na onda-esgoto inaugurada em 2005 pela Veja, nem se imagine que os primeiros a aderir foram jovens jornalistas ambiciosos, querendo seu lugar ao sol. Muitos jornalistas com passado embarcaram na onda, aderindo a uma retórica que afrontava todos os princípios do bom jornalismo.  Até cronistas ternura, praticantes do jogo-todo-amor, se tornaram cuspidores de fogo para aproveitar a nova onda que se formava.

Depois, quando a onda Bolsonaro permitiu à imprensa se reposicionar, os mesmos introdutores do jornalismo de esgoto, do discurso de ódio, se tornaram campeões da democracia.

Reciclagem ótima!, mas que demonstra que o jornalismo brasileiro não é anticíclico como deveria ser o bom jornalismo. Se a onda vai na direção do punitivismo, faz-se a defesa das garantias; se na onda da leniência, denunciem-se os crimes. Na terra de Macunaíma princípios são apenas instrumentos utilitários, que são empunhados ou guardados dependendo dos interesses e de cavalgar a onda do momento. E é um jogo tão hipócrita que o sujeito podia estar em um lugar três anos atrás, estar em outro totalmente oposto agora, e nada lhe será cobrado. Porque faz parte do caráter brasileiro. É esse mesmo caráter que transforma um advogado de lideranças sem-terra, como era Luiz Edson Fachin, em um Ministro que nega habeas corpus a líderes camponeses detidos.

Livros e livros serão escritos para explicar esses anos de turbulência, em que o Brasil baixou no inferno de Dante. Alguns personagens desses tempos cinzentos ficarão nos primeiros círculos, o da Luxúria, da Gula e da Ganância. Os seguidores de Bolsonaro serão despejados no 5º,  6º e 7º círculo, da Ira, da Heresia e da Violência.

A esses homens e jornalistas virtuosos serão abertas as portas do 8º e 9º círculo, da Fraude e da Traição dos valores.

Luis Nassif

17 Comentários

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  1. É realmente um padrão histórico – quando li “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto, aí pelo fim dos anos 1990, tive um nó na cabeça: achei que não fora Barreto a escrever o livro, mas alguém do fim do Século XX, que usara a técnica de colocar a situação em outro tempo histórico. É que Lima Barreto desanca o jornalismo feito aqui ao falar de um jornal fictício, onde o protagonista trabalhara no início de sua vida profissional, e que todo mundo identificou como o “Correio da Manhã” (por isso, o nome dele foi banido do jornal até o seu fechamento, em fins dos anos 1960).

    Apesar disso tudo,creio que os nomes dos caras que passaram informações dos advogados de defesa para a gangue da Lava-Jato deveriam ter seus nomes publicados. Isso por que, ao tomarem essa atitude, deixaram de ser jornalistas e passaram a ser espiões ou meros X-9 por abrirem mão da garantia constitucional do sigilo da fonte.

  2. “Reciclagem ótima!, mas que demonstra que o jornalismo brasileiro não é anticíclico como deveria ser o bom jornalismo. Se a onda vai na direção do punitivismo, faz-se a defesa das garantias; se na onda da leniência, denunciem-se os crimes. Na terra de Macunaíma princípios são apenas instrumentos utilitários, que são empunhados ou guardados dependendo dos interesses e de cavalgar a onda do momento.”

    Essa, valeu o ano NASSIF!!!
    Lembro-me de uma antiga discussão com um amigão que entendia que “princípios”eram relativos.
    Paguei muito caro por praticar que princípios não se negociam.

  3. Será que Dante Alighieri chegou a imaginar como seria o estatuto regente e a figura do síndico, que seria encarregado de aplicá-lo, no condomínio infernal descrito na sua obra prima? Como seria feita a decomposição da alma do condenado a suportar o sofrimento dos nove círculos infernais? Porque os pecados de alguns, como Ayres Britto, Barroso, Fachin e Toffoli, Procuradores et caterva, certamente justificariam aplicação de penas previstas em todos os círculos principais. Sem falar do agravamento da pena pela persistencia na conduta pecaminosa continuada, em que permanecem até hoje, servindo ao Deus Mercado, no seu templo, o Instituto Innovare, reiterando e dando comprovação material aos seus pecados.
    https://www.premioinnovare.com.br/conselho-superior
    Para embasamento das descrições das condutas pecaminosas poderiam ser utilizados os estudos da defesa de tese da pesquisadora Luciana Zafallon.
    https://www.youtube.com/watch?v=U3yzhHdwCsQ

  4. sou daqueles que gostaria de ver o nome dos jornalistas divulgados. acho que foi um caso clássico de corporativismo. certamente,caso os nomes fossem mencionados acredito que não iríamos encontrar nomes de jovens e inexperientes jornalistas em busca de espaço. não divulgar os nomes simplesmente faz que a desconfiança recaia sobre todos, pelo menos os que trabalham nos jornalões e nas redes de tv como repórteres e âncoras de telejornais ou do jornalismo político. foi péssima a opção até porque quando se trata de outros setores da vida pública os nomes não são omitidos. toda a verdade tem de ser revelada, ninguém que ajudou a colocar o país nesta insanidade deve ser poupado.

  5. Deveria nominar sim, temos o direito de saber o que é informação e o que é panfletagem. …..,afinal, essa galerinha do msm são cúmplices do estado em que o país se encontra….nenhuma dózinha com o jornalixo-capacho…..

  6. sim, muitos livros serão escritos sobre isso,
    mas não podemos perder de vista a essencia da questao
    – essas ridículas figuras deixaram de ser
    cidadãs para traírem sua profissão e o país.

    por isso gostei do final do ótimo texto:
    A esses homens e jornalistas virtuosos
    (sic)
    serão abertas as portas do 8º e 9º círculo, da Fraude e da Traição dos valores.
    completo com o ugo : “Cadde come corpo morto cade”.
    como já disse, esses caras deveriam
    ter seus nomes divuigados,sim.
    como símbolos da traição.
    repito: todos os jornalistas da grande mídia
    são inerentemente office-boys
    dos seus patrões,
    queiram ou não queiram.
    sempre estão abrindo mão do que é a verdade completa pra poder emplacar mesmo os melhores textos…
    são como os patrões defensores do dito mercado….enquanto seus patrões vivem da financeirização da economia, eles sofrem horrores para exercerem o carguinho de office-boys do mercado….
    enqunato trabalham moribundos das redações para driblar as exigências nefastas dos patrões, estes bebem uísque e riem da cara de todos, lembrando das benesses(!!!) dadas aos jornalistas,como descontos em restaurantes ou em pasSagens aéreas, etc e tAl e o escambau que os escravizaM para todo o sempre pra não morrerem de fome……;

  7. Já notaram como os telejornais estão vendendo propaganda disfarçada para o governo Bolsonaro? Em vez de denunciar a disparada do preço da carne, por exemplo, repórteres dão a “boa notícia” de que a proteína bovina pode ser substituída por ovos ou asinhas de galinha, que custam mais barato. Dão até receitas. E sempre tem um mané no supermercado pra arrematar alegremente: “fica uma delicia, lá em casa todo o mundo adooora …”, e coisas do gênero. Tá na cara que essa pauta engana-trouxa é acertada entre o departamento comercial e picaretas do comércio como Havan, supermercados Condor etc. Mas nem precisaria, porque – acreditem- muitos “jornalistas” de TV acham que essas são grandes pautas! ? Estava até pensando em, de sacanagem, sugerir uma pauta à Globo sobre as vantagens da viagem de ônibus, em vez de aviões, que os pobres já não podem mais usar. “Vejam as delícias de passar 14 horas ou mais dentro de um ônibus fazendo novas amizades (e, por que não, amores), jogando um baralinho, olhando a paisagem!!!” Digo que estava pensando, porque achei melhor não fazer; os repórteres não iam entender a ironia e já estou até vendo uma tonta como a apresentadora do Mau Dia Brasil chamando a matéria: “os brasileiros estão descobrindo as delícias de viajar de ônibus … E tem gente até que arrumou casamento nas poltronas de um Itapemirim … ”

    1. Mesma pouca vergonha e safadeza do desgoverno do ociologo …todo mundo desempregado e os jornais alardeando que os restaurantes estavam cheios…..como se tivéssemos que deixar de comer…….o frango a um real……a idiotice que pobre começava a comer iogurte…..sempre fui pobre de marédesi…mas meu danoninho nunca faltou…..inclusive, o pote servia pra pendurar uma linha com parafina e imitar o cacarejar da galinha….brinquedo de pobre, aliás…..

  8. Eu desprezo esse “jornalismo” desde a primeira metade dos anos 90.

    Na verdade, nem considero isso jornalismo, o que fazem é propaganda comercial, política e ideológica, nesta ordem; não estão ai pra informar, querem é fazer campanhas…

    Por tras disso existe uma profunda arrogância de se acharem sabichoes, bem informados e donos da verdade, quando não são nada disso. Abusaram do prestígio da profissão e de instituições para desmoralizar ambas.

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