O jornalismo quando repórteres atuam como polícia, por Luis Nassif

Há exemplos extraordinários do que se consegue quando se faz jornalismo. O trabalho do jornal Extra, na reportagem policial, está entre as grandes contribuições ao jornalismo investigativo. Mas é exceção.

Em seu espaço no R7, o jornalista policial Percival de Souza faz uma curiosa interpretação da Escola Base. Só a imprensa tem culpa no escândalo da “escolinha do sexo”? – Prisma – R7 Arquivo Vivo

Por ela, a imprensa agiu corretamente, o delegado titular também. Todo mundo agiu corretamente, a vida é que estava errada. Diz ele que o 6o DP, onde houve a denúncia, é uma das unidades da 1a Seccional de Polícia. A investigação começou por lá, tocada por um delegado inexperiente. Quando a 1a Seccional do seu “considerado” delegado Gerson de Carvalho, avocou o caso, concluiu que a denúncia era furada.  Depois dessa constatação, o bravo Percival de Souza publicou reportagem no Jornal da Tarde, inocentando os donos da escola. E eles, ingratos, entraram com ações contra os jornais.

Diz ele:

“Num inquérito policial, idem: de início, aparências e indícios rumam numa direção e, no curso das chamadas diligências, descobre-se a verdadeira face da realidade. Na comparação, ressalte-se: o jornalista não tem poder de polícia, necessita das fontes jurídicas e, se tiver competência na área, poderá questionar, fazer cobranças e, diligente, chegar às suas próprias descobertas”.

Em um parágrafo, os vícios históricos do jornalismo policial, do qual Percival sempre foi a expressão máxima: no erro ou no acerto, subordinação total à polícia, sua fonte. E isso me trouxe lembranças antigas.

O caso Tieppo

Eu tinha poucos meses de Jornal da Tarde, 1979 ou 1980. Percival já era o repórter policial consagrado porque era porta-voz do alto comando da polícia. Repórteres escarafunchavam delegacias; as fontes de Percival eram a cúpula.

Na ocasião, a polícia de São Paulo lançou um disque-denúncia. Pessoas poderiam ligar para determinado número de telefone e fazer a denúncia, sem serem  identificadas.

Uma manhã, depois da reunião de pauta do jornal, comecei a ler a edição do dia. Havia uma reportagem policial, assinada pelo jovem repórter Fausto Macedo, recém-chegado de Santos, com denúncia anônima contra um professor do Colégio Equipe.

Minha esposa da época era professora do Equipe. Liguei para ela, com o colégio em polvorosa. O professor em questão era homossexual. Quando os professores saiam para algum bar, depois das aulas, o professor sequer bebia. A denúncia tinha clara conotação homofóbica. 

Perdi a cabeça, atravessei o salão da redação até o fundo, onde ficava a editoria de polícia e fui de dedo em riste bradando para a irresponsabilidade de Fausto. Percival saiu em defesa do discípulo:

  • Você não sabe de nada. Isso é informação oficial.

Indaguei-lhe se a polícia dissesse que Carmen Miranda assaltou um banco, se a notícia seria dada.

Pouco tempo depois, entendi na prática o jogo do tipo de jornalismo policial que se desenvolveu na chamada imprensa séria.

A Corretora Tieppo, de São Paulo, foi a primeira a se aventurar no mercado internacional, em um período em que era proibido tirar dinheiro do país. Arriscou, quebrou e estourou o escândalo. Começaram as investigações, conduzida por Romeu Tuma e um delegado grisalho.

Teve início uma enorme competição entre os veículos, especialmente JT, Estadão, O Globo e o Jornal do Brasil. Era uma competição indecente, com todos indo beber nas mesmas fontes e disparando um campeonato de lisonja vergonhoso. Os delegados eram tratados como heróis da Távola Redonda.

Havia uma caça aos arquivos da Tieppo, que poderia revelar os nomes dos investidores que aplicavam no exterior. Tuma anunciou a descoberta, em uma casa do bairro do Ipiranga. Foi enaltecido por toda imprensa policial, saiu em todos telejornais, foi manchete principal de todos os jornais.

Na época, eu era pauteiro e chefe de reportagem da Economia do JT. E a cobertura não cheirava bem.

Resolvemos investigar por conta própria, partindo de uma norma de bom senso: a fonte sempre é parte interessada na história.

Pedi a um repórter, Silvio Vieira, que fosse até a região do Ipiranga, onde supostamente foi descoberto o arquivo da Tieppo, com uma foto de Tuma, outra de José Mário Tieppo e outra do delegado grisalho. Ele voltou com a informação de que os três estiveram no local dias antes do anúncio da descoberta à imprensa.

Pedi para outro repórter, Celso Horta, que cobria férias, para conversar com as telefonistas da Tieppo. Ele descobriu que, sempre que a ligação era para um cliente do caixa 2, havia uma senha na chamada da telefonista. Em cima disso, identificou vários nomes de investidores ocultos. E nenhum constava da lista divulgada por Tuma. Ficava evidente que se tratava de uma armação de Tuma com os donos da Tieppo, para blindar o nome dos investidores.

Com essas informações convidamos o advogado da Tieppo para ir ao jornal. Fomos a uma sala e o lotamos de questões, um interrogatório pesado. Ele acabou admitindo os acertos de Tieppo com Tuma. Depois, levantamos mais uma série de episódios controversos de Tuma, ligados à importações de automóveis de luxo.

Com a matéria pronta, delicada, o redator-chefe do jornal, Fernando Mitre, foi consultar o diretor Ruy Mesquita. Veio a pergunta:

  • Vocês têm certeza sobre todos os fatos da matéria?

E a resposta:

  • Tenho.

A matéria saiu publicada em uma página inteira do jornal.

Os vícios de origem

Na ditadura, tínhamos uma máxima: jornalista é jornalista, polícia é polícia. Pouco adiantava para a cobertura policial.

Com a redemocratização, permaneceram os vícios de origem, e o caso Escola Base é exemplar. Bastava um acompanhamento da cobertura para, a partir do terceiro ou quarto dia, conferir que tudo se baseava no relato do delegado do caso. Mas só quando a polícia fez a retificação, repórteres policiais como Percival aceitaram repor a verdade. É o que acontece quando um repórter vira polícia.

Recentemente, a Folha publicou matéria de uma delação de executivo da Ecovias envolvendo o ex-governador Geraldo Alckmin e vários parlamentares. O inquérito havia sido trancado semanas antes pelo Tribunal Superior Eleitoral. Mesmo assim, a fonte “vendeu” para o repórter que a delação continuava valendo. Dois dias depois, o repórter admite que o inquérito havia sido trancado, mas o da Odebrecht continua valendo. E aí? Toda a matéria era sobre a Ecovias.

Suponha que o jornal não queira perder o acesso preferencial à fonte. Simples: coloque outros repórteres para correr por fora. O repórter-policial mantém seu acesso à fonte e, inclusive, pode arrancar mais informações provocando com os fatos levantados por outros repórteres.

Mas o jornalismo brasileiro, como um todo, não conseguiu se desenvolver, ficar à altura de seus congêneres internacionais. E a prova definitiva foi a Lava Jato, capítulo mais baixo da história da mídia e ponto de partida para a destruição institucional do país.

Luis Nassif

4 Comentários

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  1. O problema é que a mídia golpista sempre esteve nas mãos de coronéis,assim como parte da política brasileira.
    Talvez somente uma revolução possa amenizar este problema.

  2. Nassif, este mais recente episódio da Escola Infantil da Vila Formosa, aonde criancinhas eram amarradas em carrinhos, e deixadas nos banheiros da escolinha, não está “cheirando” igual àquela denúncia vazia, da Escola Base ?

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