O ‘selfie’ dos jornalistas globais, por Luciano Martins Costa

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Observatório da Imprensa

O ‘selfie’ dos jornalistas globais, por Luciano Martins Costa

A TV Globo estendeu as comemorações de seus 50 anos de fundação para a programação geral. O Jornal Nacional de segunda-feira (27/4), quase todo tomado pela tragédia que atingiu o Nepal, foi contaminado pelo espírito da efeméride. Para a principal emissora de televisão do Brasil, mesmo numa situação-limite como os dramas que se abatem sobre o Nepal com o terremoto que deixou, até aqui, mais de 4 mil mortos, ainda sobra tempo e espaço para um pouco de autopromoção.

O tremor que sacudiu o sul da Ásia apresenta, como é natural, uma enorme variedade de abordagens, mas, para a Globo, tudo começa e termina em seu próprio espelho. A cobertura dominou o telejornal de maior audiência, com relatos e imagens sobre o drama de pessoas soterradas, a tragédia de quase um milhão de crianças em situação de emergência, a paciente fila de familiares que esperam para cremar seus mortos num dos templos hindus e, claro, a falta de comida e água e os milhares de desabrigados.

Como sempre ocorre nessas ocasiões, os editores encomendam entrevistas com brasileiros apanhados em meio ao acontecimento, em contraponto com imagens de suas famílias, aliviadas pelo serviço de mensagens da emissora. Mas, desta vez, os principais protagonistas dessas cenas emocionais foram os próprios jornalistas.

Há aspectos interessantes a se destacar, como, por exemplo, o esforço dos repórteres para explicar as diferenças de temperamento entre as vítimas de desastres em geral e a população do Nepal, que protagoniza poucas cenas de gritaria e desespero em público. Mas percebe-se que faltou aos profissionais colocados diante das câmeras aquela medida certa de compaixão e distanciamento que garante a boa narrativa sem cair na pieguice.

Talvez por falta de treinamento, os jornalistas destacados para o trabalho, especializados em aventuras cuidadosamente produzidas, que fazem o programa Planeta Extremo, não souberam enfrentar o verdadeiro drama humano quando se viram diante dele. O que se registrou foi uma patética repetição de lugares comuns e exibicionismo, em nada comparáveis com o desempenho que um dia marcou as carreiras de outros profissionais da emissora, como Pedro Bial e Caco Barcellos.

Tudo a ver

Mas não se pode responsabilizar apenas os repórteres que foram chamados para relatar a tragédia: todas as entradas em cena foram comandadas pelo editor e apresentador William Bonner, que estimulou o protagonismo exagerado. Houve, portanto, uma orientação da emissora para a estratégia de ancorar a dramaticidade do evento nas figuras dos jornalistas, deixando as vítimas principais da tragédia como pano de fundo, no papel de meros figurantes.

Um dos destaques da cobertura foram os mais de cinco minutos em que os dois repórteres doPlaneta Extremo – Carol Barcellos e Clayton Conservani – deram seus depoimentos sobre o que haviam testemunhado.

O risco de colocar ao vivo profissionais habituados ao suporte da produção deu o resultado previsível: Conservani contou que havia comprado cem garrafas de água mineral, ao mesmo tempo em que relatava o sofrimento dos nepaleses com a falta de água para beber. No clima que o próprio tema provoca, muitos telespectadores devem ter ficado com a sensação de que faltou compaixão ao jornalista (ver aqui).

Na hora de expressar sua percepção do sofrimento em torno de si, ele saiu-se com uma platitude ao dizer que “uma característica muito legal do povo nepalês é que eles não ficam se lamentando, não ficam se queixando, eles simplesmente aceitam essa situação e tentam seguir em frente”. Ou seja, relativiza-se a dor do outro por que, afinal, sendo hinduístas ou budistas, certamente os nepaleses são mais resignados.

Diga-se, em favor dos repórteres, que eles estão mais habituados a entrevistar pedras e rios caudalosos, e que os seres humanos que costumam ter diante de si são dessa espécie de super-herói que decide deixar o tédio da vida burguesa para enfrentar montanhas e cachoeiras. Mas não se pode relativizar o empenho da emissora em transformar a tragédia alheia em produto de merchandising de sua programação.

Uma amostra já foi apresentada na segunda-feira, durante o programa Encontro com Fátima Bernardes, quando se criou um enorme suspense para dizer que a filha pequena da repórter Carol Barcellos ainda não sabia que a mãe estava retida no Nepal (ver aqui).

Alguém duvida de que os dois repórteres estarão na próxima edição do Domingão do Faustão ou do Fantástico, para relatar suas intensas emoções?

Globo e seu próprio umbigo: tudo a ver.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

8 Comentários

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  1. Verdade por trás das palavras…

    “uma característica muito legal do povo nepalês é que eles não ficam se lamentando, não ficam se queixando, eles simplesmente aceitam essa situação e tentam seguir em frente”.

    Mais uma vertente do famigerado “complexo de vira-latas”. No fundo os ilustres repórteres da rede b… querem afirmar com isso que o povo brasileiro reclama de barriga cheia, ou que nós temos muito mais do que merecemos. Típico de Rede Globo imbecil. Isso é que está por trás desse comentário ingênuo.

    Será que o William Bonner sabe onde fica o Nepal? Porque a Glória Maria quando foi lá falou um monte de asneiras, confundiu locais e misturou budistas e hinduístas no mesmo saco, a ponto de falar que a Kumari de Kathmandu era escolhida pelos budistas entre as castas mais altas… Prá quem não sabe a Kumari é um culto local e mais ligado ao Hinduísmo, e uma das principais causas humanistas de Buda e de todos os budistas que o seguiram é lutar contra o sistema de castas no subcontinente indiano, porque este sistema contradiz um dos pilares da fé budista que é equanimidade (todos os seres são iguais).

  2. Qual a técnica de preparação?

    Num caso desses o que merece ser registrado e reconhecido é o esforço e a coragem do autor que se submete a assistir ao lixo global para depois poder comentá-lo. E fica a curiosidade de saber qual o tratamento ele faz para resistir durante o sacrifício.

  3. Boa a análise. Boa porque a

    Boa a análise. Boa porque a percepção que temos é essa: a Globo exagera nas autorreferências. Um misto de vaidade com prepotência. Essas comemorações dos 50 anos então……..Parece até que mundo surgiu, o Sol começou a brilhar, quando foi criada naquele fatídico ano de 1965 a TV Globo. 

    Bem, de certa maneira eles estão certos nessas hiperbólicas louvações a si próprias. Pelo andar da carruagem é bem provável que não cheguem aos sessenta. 

  4. O sentimento de superioridade que impera no jornalismo

    E desde quando a TV brasileira, puxada pela Globo, demonstrou respeito, dignidade e compaixão pelos outros ? O que sempre vi, foi isso ai que Luciano Martins Costa descreve : distância do objeto, frieza,  foco no sentimentalismo e sentimento de superioridade. 

  5. E não parou por aí. Os

    E não parou por aí. Os repórteres sempre reforçando que a Globo era a única emissora a transmitir ao vivo do Nepal, como se isso nao tivesse sido obra do acaso. A primeira pessoa sempre foi a estrela. A velha tecnica de perguntar “o que vc está sentindo” ao invês do “o que aconteceu” foi utilizado entre os p´roprios jornalistas como se eles tivessem construido a própria tragédia. 

    É o tautismo em forma pura. 

    Para ser usado em faculdades. 

  6. Quem vê a GloboNews sabe que

    Quem vê a GloboNews sabe que sua autopropaganda é feita sobre a imagem de seus “maravilhosos” jornalistas. Alguém deveria fazer uma pesquisa de comunicação sobre como se atualizou uma velha imagem romântica do jornalista como super-herói, aventureiro, etc. A TV, em particular a Globo cria uma imagem de jornalista que se equipara à do “artista” bacana. Provavelmente, de um tempo pra cá e doravante jornalistas de TV são escolhidos mais por sua aparência (e subserviência aos patrões, claro) do que por qualquer talento com as palavras, ou amor à verdade. Notaram como os jovens apresentadores de notícias de repetidoras da Globo, pelo Brasil afora, são clones do William Bonner? Quanto ao tipo de jornalismo, há muito ele se pauta pela pieguice e exploração das emoções alheias, como em qualquer telenovela. Mas tá piorando. Vão se apagando as fronteiras entre realidade e ficção.

     

  7. Creio que poucas notaram, mas

    Creio que poucas notaram, mas depois desta noticia, entrou em um dos blocos, reportagem sobre a dengue no Estado de São Paulo, e o reporter Burnie entrou ao vivo no dito telão,cercado por três recrutas da PE portando fuzis que o Exército iria ajudar a combater a dengue. Será que é para matar os mosquitos a tiros de fuzil 7.65?????

  8. Não acho que faltou compaixão

    Não acho que faltou compaixão apenas aos jornalistas, mas também de algumas pessoas que foram praticar turismo de aventura e podiam ajudar, mas vieram embora.

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