O voto de Dias Toffoli na ADIN sobre classificação indiciativa

30/11/2011 PLENÁRIO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.404 DISTRITO FEDERAL

VOTO

O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI (RELATOR):

Como relatado, busca-se, por meio da presente ação direta, a declaração de inconstitucionalidade da norma de proibição contida no art. 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que tipifica como infração administrativa a transmissão, via rádio ou televisão, de programação em horário diverso do autorizado, com pena de multa e suspensão da programação da emissora por até dois dias, no caso de reincidência.

Como questão prejudicial, a Presidência da República e a Procuradoria Geral da República levantaram preliminar de não conhecimento da ação, por ausência de impugnação de todo o complexo normativo atinente ao tema, em especial dos arts. 74, 75 e 76 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Afirmam que os referidos dispositivos fazem parte de corpo normativo maior, que garante a defesa da criança e do adolescente contra a sua exposição a conteúdo inapropriado.

Contudo, no caso dos autos, não se investe o autor contra esse sistema protetivo,

, o preceito ora impugnado detém autonomia suficiente para figurar isoladamente como objeto de controle, possuindo, inclusive, conteúdo normativo

diverso.
Afasto, portanto, a preliminar arguida.
Feitas essas considerações, passo ao exame de mérito.
Dirige-se o autor contra o preceito que prevê sanção de caráter

administrativo ao ato de transmitir, via rádio ou televisão, espetáculo

mas apenas em face do suposto excesso legislativo

contido no dispositivo sancionatório, mediante o qual se teria conferido

obrigatoriedade a uma classificação constitucionalmente qualificada

como indicativa, regra essa contida exclusivamente no art. 254 da Lei no

8.069/90

. Assim,

apesar do idêntico fim de proteção das crianças e dos

adolescentes, igualmente contido nos arts. 74, 75 e 76 do ECA

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ADI 2.404 / DF

fora do horário autorizado pelo órgão competente. Sustenta que referida penalidade ofenderia os arts. 5o, inciso IX; 21, inciso XVI; e 220, caput e parágrafos, da Carta Magna, os quais traduzem, em suma, preceitos de duas ordens: (i) o direito fundamental à liberdade de expressão, livre de censura ou licença; e (ii) a possibilidade de o Poder Público efetuar a classificação indicativa dos espetáculos e diversões públicas, inclusive as transmitidas por rádio ou televisão, e de informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem e os locais e os horários em que sua apresentação se mostre inadequada.

Senhores Ministros, não há dúvida de que tanto a liberdade de expressão dos meios de comunicação como a proteção da criança e do adolescente são axiomas de envergadura constitucional. Mas, a meu ver, a própria Constituição da República delineou as regras de sopesamento desses dois valores, as quais são suficientes para o deslinde da presente ação, como veremos a seguir.

Com efeito, acerca do tema da liberdade de expressão, e seu consectário relativo à liberdade de imprensa, esta Corte, em momento antológico, quando do julgamento da ADPF no 130, debruçou-se com percuciência sobre a temática, ressaltando, na ocasião, a plenitude do exercício da liberdade de expressão como decorrência imanente da dignidade da pessoa humana, e como meio de reafirmação/potencialização de outras liberdades constitucionais.

Na mesma sede, foi assentada a regulação estritamente constitucional do tema, imunizando o direito de livre expressão contra tentativas de disciplina ou autorização prévias por parte de norma hierarquicamente inferior, a teor do art. 220 da Carta Federal, segundo o qual a “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

Asseverou-se, ainda, a existência de óbice constitucional ao controle prévio pelo Poder Público do conteúdo objeto de expressão, sem, contudo, retirar do emissor a responsabilidade por eventual desrespeito a direitos alheios, imputados à comunicação. Confira-se parte do aresto em

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ADI 2.404 / DF

comento:

“(…)

CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DE SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE QUE SÃO A MAIS DIRETA EMANAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: A LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO E O DIREITO À INFORMAÇÃO E À EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA NATUREZA JURÍDICA DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO CONSTITUCIONAL SOBRE A COMUNICAÇÃO SOCIAL. O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. (…) A expressão constitucional ‘observado o disposto nesta Constituição’ (parte final do art. 220) traduz a incidência dos dispositivos tutelares de outros bens de personalidade, é certo, mas como consequência ou responsabilização pelo desfrute da ‘plena liberdade de informação jornalística’ (§ 1o do mesmo art. 220 da Constituição Federal). Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o

3. O COMUNICAÇÃO

espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica (…).
4. MECANISMO CONSTITUCIONAL DE CALIBRAÇÃO DE PRINCÍPIOS. O art. 220 é de instantânea observância quanto ao desfrute das liberdades de pensamento, criação, expressão e informação que, de alguma forma, se veiculem pelos órgãos de comunicação social. Isto sem prejuízo da aplicabilidade dos seguintes incisos do art. 5o da mesma

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Constituição Federal: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); do direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV). Lógica diretamente constitucional de calibração temporal ou cronológica na empírica incidência desses dois blocos de dispositivos constitucionais (o art. 220 e os mencionados incisos do art. 5o). Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos sobredireitos de personalidade em que se traduz a ‘livre’ e ‘plena’ manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana. Determinação constitucional de momentânea paralisia à inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos fundamentais, porquanto a cabeça do art. 220 da Constituição veda qualquer cerceio ou restrição à concreta manifestação do pensamento (vedado o anonimato), bem assim todo cerceio ou restrição que tenha por objeto a criação, a expressão e a informação, seja qual for a forma, o processo, ou o veículo de comunicação social. Com o que a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa.

(…)

8. NÚCLEO DURO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E A INTERDIÇÃO PARCIAL DE LEGISLAR. A uma atividade que

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já era ‘livre’ (incisos IV e IX do art. 5o), a Constituição Federal acrescentou o qualificativo de ‘plena’ (§ 1o do art. 220). Liberdade plena que, repelente de qualquer censura prévia, diz respeito à essência mesma do jornalismo (o chamado ‘núcleo duro’ da atividade). Assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da informação e da criação lato sensu, sem o que não se tem o desembaraçado trânsito das ideias e opiniões, tanto quanto da informação e da criação. Interdição à lei quanto às matérias nuclearmente de imprensa, retratadas no tempo de início e de duração do concreto exercício da liberdade, assim como de sua extensão ou tamanho do seu conteúdo. Tirante, unicamente, as restrições que a Lei Fundamental de 1988 prevê para o ‘estado de sítio’ (art. 139), o Poder Público somente pode dispor sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, respeitada sempre a ideia-força de que quem quer que seja tem o direito de dizer o que quer que seja. Logo, não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. As matérias reflexamente de imprensa, suscetíveis, portanto, de conformação legislativa, são as indicadas pela própria Constituição, tais como: direitos de resposta e de indenização, proporcionais ao agravo; proteção do sigilo da fonte (‘quando necessário ao exercício profissional’); responsabilidade penal por calúnia, injúria e difamação; diversões e espetáculos públicos; estabelecimento dos ‘meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente’ (inciso II do § 3o do art. 220 da CF); independência e proteção remuneratória dos profissionais de imprensa como elementos de sua própria qualificação técnica (inciso XIII do art. 5o); participação do capital estrangeiro nas empresas de comunicação social (§ 4o do art. 222 da CF); composição e funcionamento do Conselho de Comunicação

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Social (art. 224 da Constituição). Regulações estatais que, sobretudo incidindo no plano das consequências ou responsabilizações, repercutem sobre as causas de ofensas pessoais para inibir o cometimento dos abusos de imprensa. Peculiar fórmula constitucional de proteção de interesses privados em face de eventuais descomedimentos da imprensa (justa preocupação do Ministro Gilmar Mendes), mas sem prejuízo da ordem de precedência a esta conferida, segundo a lógica elementar de que não é pelo temor do abuso que se vai coibir o uso. Ou, nas palavras do Ministro Celso de Mello, ‘a censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público’(…)” (ADPF no 130/DF, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe de 6/11/09).

Na presente ação, destaca-se a liberdade de expressão na sua dimensão instrumental, ou seja, a forma como se dará a exteriorização da manifestação do pensamento. Com efeito, para que ocorra a real concretização da liberdade de expressão, consagrada no art. 5o, IX, da Carta Maior, é preciso que haja liberdade de comunicação social, prevista no art. 220 da Carta Maior, garantindo-se a livre circulação de ideias e informações, a comunicação livre e pluralista, protegida da ingerência estatal. Nas palavras de José Afonso da Silva:

“A ‘liberdade de comunicação’ consiste num conjunto de direitos, formas, processos e veículos que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação. É o que se extrai dos incisos IV, V, IX, XII e XIV do art. 5o, combinados com os arts. 220 a 224, da CF. Compreende ela as formas de criação, expressão e manifestação do pensamente e de informação, e a organização dos meios de comunicação, esta sujeita a regime jurídico especial” (Comentário Contextual à Constituição. 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2007. p. 98)

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Canotilho, em obra conjunta com Jónatas Machado, destaca a liberdade de programação como uma das dimensões da liberdade de expressão em sentido amplo, sendo essencial para a construção e consolidação de uma esfera de discurso público qualificada. Segundo explicitam:

“A mesma [liberdade de programação] implica a possibilidade de conformação autônoma, pelo operador, de uma seqüência planeada e ordenada de conteúdos publicísticos de natureza óptica e acústica, com vista à sua difusão dirigida ao público, entendido este como uma grandeza publicística integrando diferentes subpúblicos com interesses, valores, gostos e sensibilidades diferentes.

Sendo as liberdade de comunicação compreendidas com um âmbito normativo alargado, como deve suceder com a generalidade dos direitos, liberdade e garantias, o princípio da liberdade de programação preclude a tentativa de imposição de constrições conceituais à mesma, também aqui valendo o clássico aforismo, tão caro à doutrina e à jurisprudência constitucionais, segundo o qual ‘liberdade definida, é liberdade perdida’ (liberty defined is liberty lost).

A liberdade de programação preclude todas as interferências estaduais, directas eou indirectas, ostensivas e subtis, oficiais e não oficiais, na selecção e conformação do conteúdo da programação em geral ou de um programa em particular. No que diz directamente respeito à programação no seio dos operadores privados de radiodifusão, a doutrina sublinha que a actividade em análise deve permanecer uma tarefa essencialmente autónoma e livre de interferências dos poderes públicos.

Na verdade, a doutrina nota que a liberdade de expressão tem vindo a ser mobilizada para impedir e dificultar qualquer esforço governamental para restringir o conteúdo dos programas de entretenimento, mesmo quando contenham cenas de sexo e violência ou restrições à privacidade e à reputação.

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(…)

De acordo com uma concepção alargada do âmbito normativo dos direitos à liberdade de expressão e de radiodifusão, a liberdade de programação deve abranger a possibilidade de emitir qualquer programa, independentemente do seu conteúdo ou da sua qualidade, sendo essa matéria reserva da empresa de radiodifusão. Subjacente a esta reserva de actividade televisiva, ou reserva de empresa de radiodifusão, está a garantia da liberdade de conformação da programação dos operadores e o princípio da liberdade perante o Estado, em matéria de comunicação social.

(…)

A Administração ou qualquer outro órgão do poder público não pode ‘impedir, condicionar ou impor a difusão de quaisquer programas’, sem prejuízo de decisão judicial nesse sentido em termos legal e constitucionalmente fundamentados” (“Reality Shows” e liberdade de programação. Coimbra: Coimbra Editora, 2003. p. 28/32).

Por outro lado, a criança e o adolescente, pela posição de fragilidade em que se colocam no corpo da sociedade, devem ser destinatários, tanto quanto possível, de normas e ações protetivas voltadas ao seu desenvolvimento humano pleno e à preservação contra situações potencialmente danosas a sua formação física, moral e mental.

Não por outro motivo, a Constituição Federal impôs à família, ao Estado e à sociedade o dever de “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227).

Nesse contexto, o Estatuto da Criança e do Adolescente veio, justamente, dar concretude ao valor de preservação insculpido na Lei Fundamental, estabelecendo incentivos para que se alcancem os objetivos almejados e uma série de vedações às atividades a eles contrários.

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É de se indagar, então: como compatibilizar a defesa da criança e do adolescente contra a exposição a conteúdos inapropriados veiculados em diversões públicas e programas de rádio e de televisão com a garantia constitucional da liberdade de expressão?

Como já salientei, a própria Constituição Federal trouxe a solução para a composição destes valores. E não poderia ser diferente, pois, de acordo com o art. 220, caput, da Carta da República, “[a] manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

Assim sendo, apesar da garantia constitucional da liberdade de expressão, livre de censura ou licença, a própria Carta de 1988 conferiu à União, com exclusividade, no art. 21, inciso XVI, o desempenho da atividade material de “exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão”. De forma mais explícita, no capítulo específico destinado à Comunicação Social, reforçou tal atribuição, asseverando que:

“Art. 220. (…)
(…)
§ 3o – Compete à lei federal:
I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo

ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.”

Como se vê, no preciso ponto da proteção das crianças e dos adolescentes, a Constituição Federal estabeleceu mecanismo apto a oferecer aos telespectadores das diversões públicas e de programas de rádio e televisão as indicações, as informações e as recomendações

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necessárias acerca do conteúdo veiculado.
É o sistema de classificação indicativa esse ponto de equilíbrio

tênue, e ao mesmo tempo tenso, adotado pela Carta da República para compatibilizar esses dois axiomas, velando pela integridade das crianças e dos adolescentes sem deixar de lado a preocupação com a garantia da liberdade de expressão.

Daí a importância do estudo e do aprofundamento desse mecanismo. Afinal, qual o sentido da classificação indicativa? Qual o seu alcance e sua finalidade? Esses questionamentos, imprescindíveis para o deslinde da presente ação direta, são fundamentais para o delineamento desse instituto de índole constitucional, mas que, infelizmente, é pouco conhecido e debatido no mundo jurídico e no meio social.

No meu sentir, buscou a Constituição, em última ratio, conferir aos pais, como reflexo do exercício do poder familiar, o papel de supervisão efetiva sobre o conteúdo acessível aos filhos, enquanto não plenamente aptos a conviver com os influxos prejudiciais do meio social.

Muitos são os fatores que pluralizam as concepções morais e comportamentais das famílias, sejam eles religiosos, econômicos, sociais ou culturais. Firmou-se, porém, como resguardado, o direito dos dirigentes da entidade familiar ao seu livre planejamento, respeitados os postulados da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Vide:

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(…)

§ 7o – Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

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Dessa forma, a classificação dos produtos audiovisuais busca esclarecer, informar, indicar aos pais a existência de conteúdo inadequado para as crianças e os adolescentes. Essa classificação desenvolvida pela União possibilita que os pais, calcados na autoridade do poder familiar, decidam se a criança ou o adolescente pode ou não assistir a determinada programação.

Na teoria jurídica, encontramos, igualmente, as seguintes reflexões:

José Eduardo Elias Romão, que já exerceu o cargo de Diretor do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, em obra coletiva acerca da classificação indicativa no Brasil, explicita:

“De uma vez por todas é preciso esclarecer que a classificação de produtos audiovisuais é uma informação que indica aos pais e aos responsáveis a existência de conteúdo inadequado a crianças e a adolescentes. A classificação indica aos pais e aos responsáveis para que eles possam decidir, calcados na autoridade que lhes concede o poder familiar, se a criança ou o adolescente sob sua guarda poderá assistir a um filme ou jogar um ‘game’ considerado inadequado para sua idade.

(…) A classificação indicativa produzida pelo Ministério da Justiça é uma orientação geral que deve ser ‘aplicada’ pelos pais nos casos em concreto, isto é, consideradas as características de seus filhos e o contexto onde vivem.” (A nova classificação indicativa: construção democrática de um modelo. In: Classificação Indicativa no Brasil: desafios e perspectivas. CHAGAS, Cláudia Maria de Freitas e et al. (Org.) Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, 2006. p. 37/38).

José Cretella Júnior, por sua vez, leciona:

“(…) O constituinte de 1988, preocupado com o problema da censura, no regime anterior, cai em outro extremo e, com

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prudência, emprega ‘a União tem competência para exercer a classificação PARA EFEITO INDICATIVO’. A União, agora, não veda, não proíbe, não censura. Indica, tão-só. Recomenda. Classifica os filmes, espetáculos, as exibições. Às vezes, nem classifica. Enumera apenas (…).

As diversões públicas podem ser classificadas ‘para efeito indicativo’, ou seja, ‘sem censura’, ‘sem vedação’, ‘sem proibição’, apontando o classificador, nos grupos aglutinados, alguns aspectos, como, por exemplo, ‘aconselhável’ ou ‘não- aconselhável’ para menores ou maiores de certa idade; ‘drama’, ‘comédia’, ‘tragédia’. Relembre-se que diversão pública é expressão que designa toda atividade recreativa proporcionada, publicamente, ao público” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2. ed., v. III, Rio de Janeiro: Forense. p. 1410).

Vejamos, ainda, os esclarecimentos de Luís Roberto Barroso:

“(…) a União poderá, por algum meio, atribuir aos programas de rádio e televisão classificação ou adjetivação indicativa sobre o seu conteúdo. Por analogia às diversões e espetáculos públicos, das quais se trata no art. 220, § 3o, I, a indicação se refere, normalmente, a faixas etárias e/ou horários recomendados. Note-se que a finalidade da norma é apenas oferecer informação ao telespectador, e não determinar a conduta das emissoras, caso contrário a classificação não seria indicativa, mas cogente, obrigatória.” (Liberdade de expressão, censura e controle da programação de televisão na Constituição de 1988. Revista dos Tribunais. São Paulo, ano 90, v. 790, p. 129-152, ago 2001. p. 147).

É inequívoca, portanto, a percepção de que o modelo de classificação indicativa é o instrumento de defesa que a Constituição ofereceu aos pais e aos responsáveis contra programações de conteúdo inadequado, garantindo-lhes o acesso às informações necessárias à proteção das crianças e dos adolescentes, mas sem deixar de lado a preocupação com a garantia da liberdade de expressão, pois não surge

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com o caráter de imposição.

Vejamos então os contornos legais e infralegais do sistema de classificação indicativa contido no art. 21, inciso XVI, e no art. 220, § 3o, da Constituição Federal.

Com efeito, assumindo a reserva legal contida no art. 220, § 3o, da Constituição Federal, a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente – regulou o tema. Nesse sentido, determinou, in verbis:

“Art. 74. O poder público, através do órgão competente, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.

Parágrafo único. Os responsáveis pelas diversões e espetáculos públicos deverão afixar, em lugar visível e de fácil acesso, à entrada do local de exibição, informação destacada sobre a natureza do espetáculo e a faixa etária especificada no certificado de classificação.

Art. 75. Toda criança ou adolescente terá acesso às diversões e espetáculos públicos classificados como adequados à sua faixa etária.

Parágrafo único. As crianças menores de dez anos somente poderão ingressar e permanecer nos locais de apresentação ou exibição quando acompanhadas dos pais ou responsável.

Art. 76. As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.

Parágrafo único. Nenhum espetáculo será apresentado ou anunciado sem aviso de sua classificação, antes de sua transmissão, apresentação ou exibição.

Art. 77. Os proprietários, diretores, gerentes e funcionários de empresas que explorem a venda ou aluguel de fitas de

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programação em vídeo cuidarão para que não haja venda ou locação em desacordo com a classificação atribuída pelo órgão competente.

Parágrafo único. As fitas a que alude este artigo deverão exibir, no invólucro, informação sobre a natureza da obra e a faixa etária a que se destinam.”

O Estatuto previu, ainda, sanção administrativa para o caso de descumprimento da classificação efetuada pelo Poder Público por meio do seu art. 254, ora parcialmente impugnado:

“Art. 254. Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação:

Pena – multa de vinte a cem salários de referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias.”

Pelo sistema construído na legislação infraconstitucional e nas demais normas regulamentares, a classificação indicativa é efetuada por órgão do Ministério da Justiça, o Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, para o qual foi delegada a competência de:

“II – instruir e analisar pedidos relacionados à classificação indicativa de programas de rádio e televisão, produtos audiovisuais considerados diversões públicas e RPG (jogos de interpretação);

III – monitorar programas de televisão e recomendar as faixas etárias e os seus horários;” (art. 10 do Decreto no 6.061, de 15 de março de 2007).

Ademais, segundo o art. 3o da Lei no 10.359/01, a atividade de classificação indicativa é exercida com a participação das entidades representativas das emissoras, in verbis:

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“Art. 3o Competirá ao Poder Executivo, ouvidas as entidades representativas das emissoras especificadas no art. 1o, proceder à classificação indicativa dos programas de televisão.

Parágrafo único. A classificação indicativa de que trata o caput abrangerá, obrigatoriamente, a identificação dos programas que contenham cenas de sexo ou violência.”

Atualmente, a Portaria no 1.220/07 do Ministério da Justiça regulamenta o procedimento administrativo de classificação. De início, esclarece a referida portaria que: “A classificação indicativa possui natureza informativa e pedagógica, voltada para a promoção dos interesses de crianças e adolescentes, devendo ser exercida de forma democrática, possibilitando que todos os destinatários da recomendação possam participar do processo, e de modo objetivo, ensejando que a contradição de interesses e argumentos promovam a correção e o controle social dos atos praticados” (art. 3o).

Acrescenta, ainda: “A atividade de Classificação Indicativa exercida pelo Ministério da Justiça é meio legal capaz de garantir à pessoa e à família a possibilidade de receber as informações necessárias para se defender de diversões públicas inadequadas à criança e ao adolescente, nos termos da Constituição Federal e da Lei no 8.069, de 1990 (Estatuto da Criança e Adolescente – ECA)” (art. 16). Em seguida, expõe que:

“Art. 18. A informação sobre a natureza e o conteúdo de obras audiovisuais, suas respectivas faixas etárias e horárias é meramente indicativa aos pais e responsáveis, que, no regular exercício do poder familiar, podem decidir sobre o acesso de seus filhos, tutelados ou curatelados a quaisquer programas de televisão classificados.

Parágrafo único. O exercício do poder familiar pressupõe:

I – o conhecimento prévio da classificação indicativa atribuída aos programas de televisão;

II – a possibilidade do controle eficaz de acesso por meio da existência de dispositivos eletrônicos de bloqueio de recepção de programas ou mediante a contratação de serviço de

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comunicação eletrônica de massa por assinatura que garantam a escolha da programação.”

Como se vê, inclusive sob a óptica da regulamentação infralegal, a classificação é dirigida aos pais ou responsáveis, e não às emissoras de radiodifusão. Trata-se de uma orientação aos pais e responsáveis, os quais a aplicarão, nos casos concretos, de acordo com as características e o desenvolvimento de seus filhos, bem como de acordo com o contexto e os costumes de cada família.

Dando sequência, de acordo com a portaria regulamentadora, grosso modo, este é o procedimento adotado para a classificação: o titular ou o representante legal da obra audiovisual apresenta requerimento ao órgão ministerial responsável, com descrição fundamentada sobre o conteúdo e o tema do programa que pretende veicular, contendo, ainda, a “autoclassificação” pretendida. Nesse caso, o produto audiovisual estará dispensado de análise prévia (art. 7o). Ainda assim, o pedido de classificação fica submetido à análise, podendo ser deferido ou indeferido pela autoridade no prazo máximo de sessenta dias após o início da exibição da obra audiovisual, a qual, conforme a situação, pode ser reclassificada para outra faixa de público (arts. 8o, 9o e 10), decisão essa passível de recurso (art. 11).

Os programas jornalísticos ou noticiosos, os programas esportivos, os programas ou propagandas eleitorais e as obras publicitárias em geral não estão sujeitos à classificação indicativa (art. 5o). Já os programas exibidos ao vivo submetem-se à atividade de monitoramento, podendo ser classificados quando constatada a presença reiterada de inadequações (art. 5o, § 1o).

Dispõe, ainda, a portaria do Ministério da Justiça sobre a classificação dos programas de televisão conforme as faixas etárias para as quais não se recomendam e os horários em que sua apresentação se mostra inadequada:

“Art. 17. Com base nos critérios de sexo e violência, as obras audiovisuais destinadas à exibição em programas de

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televisão são classificadas como: I – livre;

II – não recomendada para menores de 10 (dez) anos;
III – não recomendada para menores de 12 (doze) anos;
IV – não recomendada para menores de 14 (quatorze)

anos;
V – não recomendada para menores de 16 (dezesseis)

anos; e
VI – não recomendada para menores de 18 (dezoito)

anos.”

“Art. 19. A vinculação entre categorias de classificação e faixas horárias de exibição, estabelecida por força da Lei no 8.069, de 1990, dar-se-á nos termos seguintes:

I – obra audiovisual classificada de acordo com os incisos I e II do artigo 17: exibição em qualquer horário;

II – obra audiovisual classificada como não recomendada para menores de 12 (doze) anos: inadequada para exibição antes das 20 (vinte) horas;

III – obra audiovisual classificada como não recomendada para menores de 14 (catorze) anos: inadequada para exibição antes das 21 (vinte e uma) horas;

IV – obras audiovisual classificada como não recomendada para menores de 16 (dezesseis) anos: inadequada para exibição antes das 22 (vinte e duas) horas; e

V – obras audiovisual classificada como não recomendada para menores de 18 (dezoito) anos: inadequada para exibição antes das 23 (vinte e três) horas.

Parágrafo único. A vinculação entre categorias de classificação e faixas horárias de exibição implica a observância dos diferentes fusos horários vigentes no país.”

Essa é, portanto, em síntese, a sistemática atualmente adotada pela União (Ministério da Justiça) para a realização da atividade de classificação das diversões públicas e de programas de rádio e televisão.

Trata-se de sistema de classificação eminentemente estatal, de 17

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regulação exclusivamente pública. Cabe ao Estado estabelecer as normas e critérios gerais a serem seguidos na classificação, exercer a atividade classificatória e também monitorar e fiscalizar o cumprimento das regras estabelecidas.

Não há dúvida de que estamos diante de modelo passível de críticas contundentes, sobretudo à luz de um passado não muito distante de censura institucionalizada. Afinal, é o Estado, por meio de agentes burocratas, quem deve estabelecer e executar diretamente a classificação dos programas de rádio e televisão em nome da sociedade?

Exatamente para evitar esse tipo de intervenção por parte do Estado e promover formas mais avançadas de participação e de exercício da cidadania no exercício desse sistema de classificação, tem sido cada vez mais adotada no direito comparado a sistemática de classificação indicativa calcada na autorregulação e no autocontrole pelas próprias emissoras ou mediante corregulação, a qual combina elementos de autorregulação com os da regulação pública.

A título de exemplo, nos Estados Unidos, no âmbito da indústria cinematográfica, a Motion Pictures Association of America, associação composta pelos maiores estúdios de cinema do país, estabelece, por intermédio de um conselho de classificação formado por pais com mandato definitivo, a classificação dos filmes, visando fornecer informações sobre a faixa etária adequada do filme analisado. Como o instituto é criação da própria indústria cinematográfica, tem-se, no caso, um sistema de autorregulamentação, de forma que os próprios estúdios impõem seus critérios de classificação. Embora a indicação do Conselho não seja vinculativa, podendo o filme ser veiculado sem constar a classificação indicada, há, no caso, um controle desenvolvido pela sociedade e pelo mercado, evitando-se a comercialização e a exibição de filmes unrated (não classificados).

Quanto à classificação no âmbito da televisão, nos Estados Unidos, ela é exercida pelas próprias emissoras, sob a fiscalização de uma agência reguladora independente, a Federal Communication Commission (FCC), que tem a competência de regulamentar as comunicações por rádio,

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televisão, internet, satélite e cabo. A partir de 1997, foi desenvolvido o sistema de TV Parental Guidelines, como um sistema de participação voluntária, que surgiu a partir de iniciativa da própria indústria de entretenimento – em resposta às preocupações dos telespectadores quanto ao conteúdo de programas de televisão -, com o objetivo de estabelecer normas de autorregulamentação no campo da classificação indicativa para a televisão, semelhante ao sistema já adotado pelas indústria de cinema, inclusive contando com uma comissão formada por pais. Desde 2000, passou a ser obrigatório, nos Estados Unidos, o uso da tecnologia V-chip, que permite o bloqueio de canais em todos os equipamentos de televisão.

No Canadá, a Canadian Radio-Television and Telecommunication Comission (CRTC) é a entidade estatal independente responsável por estabelecer medidas para a proteção das crianças e dos adolescentes relativamente aos programas de televisão. As empresas, no entanto, são incentivadas a exercer a autorregulamentação, no que tange aos critérios de classificação dos programas de televisão, por meio de códigos de conduta. Na década de 90, em razão de mobilização e pressão da sociedade, a Canadian Association of Broadcasters (CAB) – instituição que defende os interesses dos radiodifusores privados – criou um código a ser seguido pelas emissoras na classificação dos seus programas. Embora seja voluntário, o respeito às normas desse código é critério para a concessão/manutenção da licença por parte da CRTC. Assim como no modelo norte-americano, há o uso associado da tecnologia V-chip nos aparelhos de televisão.

Sistema interessante é adotado na Espanha, na região da Catalunha. Lá o Conselho Audiovisual da Catalunha (CAC), agência independente criada em 2000, estabelece somente os parâmetros para a classificação indicativa, a qual é desenvolvida diretamente pelas emissoras, de acordo com os critérios previamente estabelecidos pelo Conselho.

Em Portugal, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social é responsável pela regulação e pela supervisão dos meios de comunicação social e, igualmente, incentiva a elaboração pelas emissoras de televisão

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de um sistema comum de classificação dos programas de televisão.

Como se vê, o modelo de classificação eminentemente estatal, como o brasileiro, está distante das tendências dos marcos regulatórios de muitas democracias ocidentais. Esses modelos internacionais são exemplos de sistemas que estimulam as emissoras de radiodifusão a se envolverem de forma mais responsável na proteção do público infanto- juvenil, em face da sua programação, apresentando e tornando pública suas posições – o que é monitorado pela sociedade e pelos próprios telespectadores -, de forma que o Estado não participa diretamente da atividade de classificação, oferecendo apenas os parâmetros gerais e incentivando o exercício da autorregulamentação, por intermédio de seus órgãos regulatórios, os quais somente atuam caso haja falhas ou abusos no sistema.

Em verdade, por envolver mecanismo de atuação administrativa que interfere na liberdade de expressão, a competência da União para exercer a classificação indicativa dos espetáculos somente se legitima por expressa disposição constitucional. Afirma José Afonso da Silva, trata-se de “espécie de censura classificatória, para efeitos indicativos, prevista no art. 21, XVI” (op. cit. p. 826). Como tal, deve ser exercida nos limites constitucionalmente previstos, afinal, como adverte Luís Roberto Barroso, o controle administrativo “é aquele que, dentre todos, deve ser visto com maior reserva. De fato, exercido por órgão do Poder Executivo, convive com a perene suspeita de censura, com sujeição da liberdade de expressão a servidores públicos que atuam discricionariamente e se encontram submetidos ao poder hierárquico de agentes políticos” (op. cit., p. 133).

Essa matéria foi objeto das ADIs no 392 (Rel. Min. Marco Aurélio), no 2.398 (Rel. Min. Cezar Peluso) e no 3.927 (Rel. Min. Ellen Gracie), nas quais se impugnavam, respectivamente, as Portarias no 773/90 e no 796/2000 (já revogadas) e a Portaria no 1.220/07 (atualmente em vigor), todas do Ministério da Justiça, que versavam a respeito da classificação indicativa da programação de televisão. Conquanto as ações não tenham sido conhecidas, pois questionavam atos de caráter regulamentar,

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serviram de oportunidade para a Corte tecer algumas considerações acerca do tema. Nesse sentido, vide trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello durante o julgamento da ADI 392:

“(…) a nova Lei Fundamental, preocupada com a tutela dos valores éticos (art. 220, § 3o, II), e a intangibilidade de certos princípios (art. 221), aquiesceu, inobstante banindo, de vez, como já ressaltado, a censura político-ideológica, na adoção de um sistema de classificação meramente indicativa por faixas etárias, muito embora instituído no âmbito do Estado, o que, nesse ponto, o faz distinguir-se do sistema norte-americano, que atribui à esfera não-governamental a coordenação dos sistemas de classificação dos diversos espetáculos públicos (‘rating process’ e ‘advisory classification’).

A Constituição do Brasil, portanto, ao repudiar a solução autoritária da censura prévia, institucionalizou mecanismos de tutela destinados a tornar efetivos ‘o respeito aos valores éticos e sociais da pessoas e da família’ (art. 221, IV, garantindo-lhes ‘a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão’ eventualmente ofensivos daqueles padrões axiológicos (art. 220, § 3o, II).

O ordenamento constitucional deixou, assim, positivada uma fórmula transacional, capaz de operar, num plano em que se projetam relações em situação de permanente tensão dialética – de um lado, o Estado, pretendendo expandir o alcance de seu poder, e, de outro, o indivíduo, na permanente busca da liberdade – a harmonia entre interesses e pretensões que, ordinariamente, se antagonizam.

A solução preconizada pelo legislador constituinte, consistente no referido sistema classificatório por faixa de idade, não deve traduzir uma imposição coativa de critérios forjados pelo Estado, que paralisem o processo de criação artística ou que inibam o exercício de sua livre expressão. A classificação indicativa representa, no plano das relações dialógicas entre o Poder Público e os mass media, um sistema de mera recomendação que tem, nos veículos de comunicação,

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o seu instrumento de realização. Desse sistema classificatório não podem derivar situações que, globalmente analisadas, tornem inacessíveis ao público os espetáculos públicos em geral. Se a liberdade de expressão do pensamento pode induzir, quando abusivamente exercida, a responsabilidade civil ou penal daquele que assim a pratica, não é menos certo que o Poder Público não dispõe de competência constitucional para estabelecer, exceto quando legalmente fixados, critérios de classificação temática e de seleção horária dos programas de rádio e/ou televisão.

A imposição unilateral, por via administrativa, desses critérios, sobre tornar veemente os sinais de usurpação legislativa, descaracterizaria, por completo – é a consequência a que esse gesto parece conduzir – o livre exercício da manifestação do pensamento, além de representar uma inobservância explícita – por seus efeitos igualmente nocivos – da ‘fórmula proibitiva da censura’.”

Nesse contexto, questão maior que se põe é saber se referida atribuição da União, na conjuntura constitucional, confunde-se com um ato de autorização, ou pode servir de anteparo para a aplicação de sanção de natureza administrativa às emissoras de radiodifusão em caso de transmissão do programa em horário diverso.

Para tanto, confira-se, mais uma vez, o teor do dispositivo legal ora questionado:

“Art. 254. Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação:

Pena – multa de vinte a cem salários de referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias.”

Como se vê, somente a utilização do verbo “autorizar” já revela, no 22

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meu sentir, a ilegitimidade da expressão impugnada.
Há de se ressaltar uma diferença que a meu ver é fundamental: a

submissão do programa ao órgão do Ministério da Justiça não pode consistir em condição para que possa ser exibido, não se trata de licença ou autorização estatal para sua exibição, o que é terminantemente vedado pela Constituição Federal. O exercício da liberdade de programação pelas emissoras impede que a exibição de determinado espetáculo dependa de ação estatal prévia.

A submissão ocorre, exclusivamente, para que a União exerça sua competência administrativa prevista no inciso XVI do art. 21 da Constituição, qual seja, classificar, para efeito indicativo, as diversões públicas e os programas de rádio e televisão, o que não se confunde com autorização.

Com efeito, para que a União indique as faixas etárias, os locais e os horários de exibição não recomendados, faz-se necessário que determinado programa seja submetido à classificação, não à autorização, do Poder Público. Isso porque, obrigatoriamente, deverá a classificação ser informada aos telespectadores pelas emissoras de rádio e de televisão.

Entretanto, essa atividade não pode ser confundida com um ato de licença, nem confere poder à União para determinar que a exibição da programação somente se dê nos horários determinados pelo Ministério da Justiça, de forma a caracterizar uma imposição, e não uma recomendação.

Por outro lado, não há dúvida de que a expressão ora questionada, além de transformar a classificação indicativa em ato de autorização, de licença estatal – o que, conforme explicitado, se mostra inconstitucional -, converteu a classificação, qualificada constitucionalmente como indicativa, em classificação obrigatória, cogente.

Ora, do conteúdo semântico do termo “indicativo”, contido no art. 21, inciso XVI, e da natureza “informativa” da atividade do Poder Público referida no § 3o do art. 220, ambos da Constituição, não se extrai essa possibilidade.

Havendo a Constituição Federal se utilizado da expressão “para 23

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efeito indicativo”, e autorizado o legislador federal a regular as diversões e espetáculos públicos, esclarecendo, no entanto, que, ao Poder Público, caberia “informar” sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada, verifica-se que não é compatível com o desígnio constitucional conferir caráter vinculante e obrigatório a tal classificação, de modo a criar hipótese de proibição ou a impor penalidade de caráter administrativo.

Esse sentido, inclusive, faz-se presente nos debates ocorridos durante a Assembleia Nacional Constituinte. A expressão “para efeito indicativo” contida no inciso XVI do art. 21 da Constituição, resultou de emenda aditiva apresentada pelo Deputado constituinte José Genoíno exatamente para deixar clara e inquestionável a finalidade apenas indicativa, não proibitiva, da classificação. Como se verifica na justificativa da emenda apresentada:

“Não deve existir censura, sob nenhuma forma ou graduação. Cabe apenas o funcionamento de um serviço classificatório indicativo para os espetáculos públicos e programas de telecomunicações, visando aos expectadores menores de idade. Trata-se de romper a mentalidade tutelar e preconceituosa da censura, em favor da liberdade de expressão e de opção individual. Não cabe ao Estado proibir o que os menores podem assistir sendo admitido apenas um serviço de caráter indicativo, ficando a opção, em última instância, a critério das pessoas.”

Levada para votação em destaque, durante os debates, o Deputado autor da emenda novamente defendeu sua proposição, nos seguintes termos:

“Que pretende minha emenda ao inciso XV? Procura estabelecer uma cautela em relação ao inciso XV, que diz: ‘exercer a classificação de diversões públicas’. Qual o sentido desta classificação? Qual o seu alcance? A que conduz esta

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classificação? (…) Por conseguinte, se não estiver acrescida do que propõe esta emenda aditiva, a classificação pode ser proibitiva, pode transformar-se em censura, pode exercer, enfim, uma ação coercitiva junto às pessoas, em relação às diversões públicas. Por isso, apelo a V. Exas para que, coerentemente com o voto anterior desta Comissão, relativamente à censura, no Título I, aprovem este destaque, que estabelece uma cautela essencial, ao precisar esse caráter classificatório. O destaque define o sentido da classificação, que, a nosso ver, deve ser claramente indicativa.”

Apoiando a emenda aditiva, o Deputado Artur da Távola ressaltou a importância de se esclarecer o papel da União no trabalho de classificação, para que essa atividade não envolvesse censura:

“(…) me parece, apesar da redundância, que a Emenda Genoíno tem absoluta procedência, já que não institui a censura nas diversões públicas e nos meios de telecomunicação, ao referir-se ao caráter indicativo, para efeito indicativo, mas elimina a possibilidade de a classificação vir a ter uma interpretação restritiva. Então, caberá ao órgão encarregado da matéria sugerir as faixas etárias para as quais determinado programa é ou não aconselhável. Por conseguinte, apesar da relativa redundância, a expressão ‘indicativo’, no caso, pretende tornar mais clara a atividade desse órgão.

(…)

Devemos reconhecer ao Estado a plenitude de poderes na indicação sobre o que deve ou não ser visto pelo povo? É o Estado a entidade adequada para a realização desse mister?

(…)

(…) Então, é justo que se tenha um organismo de classificação, não de proibição. E que este organismo não seja policial, pois não cabe à polícia resolver o que, por exemplo o meu filho deve ver. Daí a indicação da emenda, que, sem qualquer trocadilho, ao colocar a palavra ‘indicativo’, defere ao organismo que tem essa tarefa – não necessariamente um

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organismo policial – apenas o poder de indicar quais as faixas etárias para as quais esse ou aquele espetáculo é destinado.”

Ressalte-se, inclusive, que, como bem apontado por Luís Roberto Barroso, a Constituição de 1988 utilizou, igualmente, o termo “indicativo” ao tratar da ordem econômica, dispondo no art. 174, caput, que: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. Nesse ponto, a teoria jurídica é unânime em afirmar que o vocábulo “indicativo” é utilizado no sentido de facultativo, não obrigatório, em contraposição à palavra “determinante” (compulsório, cogente).

Como então defender que o mesmo vocábulo – “indicativo” – empregado no inciso XVI do art. 21 da Constituição poderia ter o sentido de obrigatório ou vinculante para as emissoras de radiodifusão? Não há de se fazer distinção onde a Constituição não o fez.

A Lei Maior conferiu à União e ao legislador federal margem limitada de atuação no campo da classificação dos espetáculos e diversões públicas. A autorização constitucional é para que a União classifique, informe, indique as faixas etárias e/ou horários não recomendados, e não que proíba, vede, ou censure.

Ou seja: tem a União a competência administrativa para desempenhar a atividade de classificação das diversões públicas e de programas de rádio e de televisão? Sim, mas essa classificação é indicativa, não se trata de permissão ou autorização administrativa. Pode o Poder Público informar sobre a natureza dessas diversões e programações e sobre as faixas etárias e horários a que não se recomendem? Sim, mas só pode indicar, informar, recomendar, e não proibir, vincular ou censurar.

Vê-se que embora outorgada ao Poder Público ditas atribuições, com o fito de informar aos usuários os programas midiáticos aos públicos a que melhor se destinam e recomendar sua veiculação em horários mais adequados, a Constituição da República não o fez de modo cogente. A classificação indicativa deve, portanto, ser entendida, nesses termos,

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como um aviso aos usuários acerca do conteúdo da programação, jamais como uma obrigação cogente às emissoras de exibição em horários específicos, ainda mais sob pena de sanção administrativa.

Sendo assim, se a conformação legislativa da liberdade de expressão é condicionada aos limites autorizados pela Constituição Federal, e o texto dela, na questão específica, já traz regramento indicativo, informativo, sem sombra de dúvida, padece de nulidade a legislação infraconstitucional que pretenda amarrar o exercício da referida liberdade, convertendo esse regramento em proibitivo, impositivo e vinculante.

Nas palavras de Paulo Gustavo Gonet Branco:

“A Constituição admitiu que o Poder Público informe a natureza das diversões e dos espetáculos públicos, indicando as faixas horárias em que não se recomendem, além dos locais e horários em que a sua apresentação se mostre inadequada (art. 220, § 3o, I). É interessante observar que não abre margem para que a Administração possa proibir um espetáculo, nem muito menos lhe permite cobrar cortes na programação. Apenas confere às autoridades administrativas competência para indicar a faixa etária adequada e sugerir horários e locais para a sua apresentação” (MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 304).

José Cretella Júnior, igualmente, delimita o campo de atuação do Poder Público na espécie:

“Compete à União exercer, ou melhor, proceder à classificação dos programas de rádio e de televisão. Censura? Nunca. Classificação, pois a ordem se resume em ‘é proibido proibir, é proibido censurar’. O denominado ‘efeito indicativo’ é que foi eleito como critério para a classificação dos programas. Indica-se, aponta-se, mas não se proíbe. A União tem seu poder de polícia limitado ao aspecto programático” (op. cit., p. 1420).

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Diante isso, o dispositivo ora questionado, ao estabelecer punição às empresas de radiodifusão por exibirem programa em horário diverso do “autorizado”, incorre em abuso constitucional. Lembre-se: não há horário autorizado, mas horário recomendado. No mesmo sentido, conclui Luís Roberto Barroso:

“O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA pretende regulamentar os arts. 227 e seguintes da Constituição de 1988, nos quais se propugna por um tratamento especial às crianças e adolescentes. Aliás, foi também no interesse dos menores que a Carta instituiu a classificação indicativa, permitindo que pais e responsáveis pudessem estar advertidos do conteúdo da programação. Sem embargo, o art. 254 do ECA desbordou do limite autorizado pela Lei Maior, ao tipificar como infração a seguinte conduta: ‘Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado (…)’.

É que, como já se viu exaustivamente, a classificação a ser veiculada pelas emissoras é apenas indicativa, isto é, não obrigatória. A União só dispõe de competência para indicar uma classificação que, por isso mesmo, não pode vincular nem proibir. Desse modo, a simples inobservância do horário recomendado na classificação exercida perlo Poder Público não pode, por si só, gerar qualquer espécie de sanção. Caso contrário, a classificação não seria indicativa, mas cogente. Não é possível concluir que indicativo e obrigatório têm o mesmo sentido.

A emissora tem o direito de discordar da classificação imposta pela Administração, embora tenha o dever de informá- la aos seus telespectadores. Desse modo, poderá exibir em horário diverso do recomendado, por entender equivocado o horário sugerido. Isso porque, na verdade, não existe horário autorizado, o que pressuporia a necessidade de uma autorização prévia, vedada de forma expressa pela Constituição (art. 5o, IX).

Ademais, também não é possível imaginar a existência de uma classificação obrigatória como forma de controle prévio

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dos princípios do art. 221 da Constituição. Em primeiro lugar porque – mais de uma vez se repete – a Carta de 1988 baniu qualquer forma de censura prévia, seja qual for o seu fundamento ou motivação. A partir da nova Constituição a censura configura, como registrou o Min. Celso de Mello em seu voto acima transcrito, um ilícito constitucional. As emissoras podem eventualmente estar sujeitas à punição ou restrição por violação dos princípios do art. 221, na forma da lei e assegurado o devido processo legal. Nunca previamente e, menos ainda, pela atuação unilateral do Poder Público.

Mas não é só. A competência da União para exercer a classificação dos programas de televisão está indissociavelmente ligada ao adjetivo indicativo, de modo que não é possível qualquer classificação cogente. Vale lembrar que o objetivo da norma que autoriza a classificação indicativa não é determinar de forma autoritária a conduta das emissoras no que diz respeito à sua programação, mas fornecer informações ao público, de modo que este possa fazer uma opção consciente para si e para seus filhos e dependentes” (op. cit., p. 151/152).

Por outro lado, não há de se acolher o argumento trazido pela Procuradoria-Geral da República no sentido de que “[n]ão se pode falar em censura se o dispositivo em tela não impede a veiculação de ideias, não impõe cortes em obras audiovisuais, mas tão-somente exige que as emissoras veiculem seus programas em horário adequado ao público alvo”.

Segundo Pinto Ferreira, censura “é qualquer exame prévio de uma obra para efeito de verificar se o seu conteúdo corresponde ao respeito a determinados princípios de ordem política e moral. Qualquer verificação prévia caracteriza assim um ato de censura” (Comentários à Constituição Brasileira. 7 v. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 253).

Na precisa definição de Alexandre de Moraes, “[a] censura prévia significa o controle, o exame, a necessidade de permissão a que se submete, previamente e com caráter vinculativo, qualquer texto ou programa que pretende ser exibido ao público em geral. O caráter preventivo e vinculante é o traço marcante da censura prévia, sendo a restrição à livre manifestação de pensamento

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sua finalidade antidemocrática” (Constituição brasileira interpretada e legislação constitucional. 6. ed., São Paulo: Atlas, 2006. p. 224). Ou, nas palavras de José Afonso da Silva, “Censurar’ é opor restrições com caráter de reprimenda” (op. cit., p. 99).

No meu sentir, a expressão impugnada incide, inegavelmente, nas definições acima citadas. Há, sim, censura prévia, já revelada na necessidade de submissão da programação de rádio e de televisão à autoridade administrativa, a qual, por sua vez, não apenas exercerá a classificação indicativa, no sentido de informar a faixa etária e os horários aos quais “não se recomend[a]” (conforme prevê a Constituição), mas de impor e condicionar, prima facie, a veiculação da programação no horário autorizado, sob pena de incorrer em ilícito administrativo.

O que se faz, nesse caso, não é classificação indicativa, mas restrição prévia à liberdade de conformação das emissoras de rádio e de televisão, inclusive acompanhada de elemento repressor, de punição. O que se diz é: “a programação ‘X’ não pode ser transmitida em horário diverso do autorizado pela autoridade administrativa, sob pena de pagamento de multa e até de suspensão temporária da programação da emissora no caso de reincidência”. O que seria isso senão ato de proibição, acompanhado, ainda, da reprimenda?

Esse caráter autorizativo, vinculativo e compulsório conferido pela norma questionada ao sistema de classificação, data venia, não se harmoniza com os arts. 5o, IX; 21, inciso XVI; e 220, § 3o, I, da Constituição da República.

Pode-se questionar, naturalmente, que, na ausência de sanção, de que adiantaria o exercício da classificação indicativa? Não haveria, nesse caso, contumaz desrespeito pelas emissoras com a transmissão de programas fora do horário recomendado?

Ora, não se discorda aqui do direito à programação sadia, reconhecido expressamente pelo art. 221 da Constituição Federal. Mas também não se pode partir do pressuposto de que as emissoras de televisão, na escolha de sua programação, são, a priori, nocivas à

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população infanto-juvenil, merecendo, por isso, ser tuteladas pelo Estado, o qual deve determinar o que é ou não adequado para determinada grade horária da sua programação. Segue-se, assim, lógica inversa: com o receio de abusos, restringe-se a garantia da liberdade de conformação da programação das emissoras, as quais devem seguir os parâmetros e os padrões que o Estado, como oráculo da moralidade, impõe.

Ora, Senhores Ministros, toda a lógica constitucional da liberdade de expressão, da liberdade de comunicação social, volta-se para a mais absoluta vedação dessa atuação estatal.

Como ressaltado pelo Ministro Celso de Mello, em seu voto na ADI no 392/DF, recitando Hugo Lafayette Black:

“Não é difícil, a mentes engenhosas, cogitar e inventar meios de fugir até das categóricas proibições da Primeira Emenda [referindo-se a liberdade de expressão da Constituição norte-americana] (…) A censura, mesmo sob o pretexto de proteger o povo contra livros, peças teatrais e filmes julgados obscenos por outras pessoas, demonstra um receio de que o povo não seja capaz de julgar por si (…) Não nos deveríamos jamais esquecer de que a linguagem clara da Constituição reconhece ser a censura inimiga mortal da liberdade e do progresso, e de que a Constituição a proíbe.”

Como salientam Canotilho e Jónatas Machado, “uma proteção constitucional robusta da liberdade de expressão no seio de uma sociedade democrática não assenta no postulado de que a comunicação é sempre inócua e inofensiva, justificando-se, prima facie, mesmo em casos em que a mesma se reveste de um caráter socialmente provocatório, ofensivo e mesmo danoso” (op. cit., p. 16).

Não há, sequer, como defender a ideia paternalista de que, no caso da televisão aberta, e diante da dificuldade em se ter a presença dos pais o tempo todo ao lado dos filhos, se justificaria a proibição de transmitir a programação em horário diverso do classificado.

Ora, não é esse o sentido constitucional da classificação indicativa,

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e não é esse o papel do Estado, que não deve atuar como protagonista na escolha do que deve ou não ser veiculado em determinado horário na televisão. Não deve o Poder Público, no afã de proteger suposto bem jurídico maior, intervir, censurar, ou dizer aos pais e aos responsáveis se determinada programação alcança ou não padrões de moralidade.

Sem falar que, nesse ponto, os agentes administrativos do Ministério da Justiça que realizam a classificação indicativa são igualmente falíveis, tanto quanto às emissoras. Como já havia indagado Karl Marx, “as deficiências nacionais de uma imprensa livre não são iguais às deficiências nacionais dos censores?” (A liberdade de Imprensa. Porto Alegre: L&PM Editores, 1980. p. 25).

Com efeito, quem não se lembra, por exemplo, do episódio no qual o Ministério da Justiça classificou o programa “Big Brother” da TV Globo como “Livre”, sem restrição a faixas etárias, podendo, por isso, ir ao ar em qualquer horário.

Não deve o Estado substituir os pais na decisão sobre o que podem ou não os filhos assistir na televisão ou ouvir no rádio. Deve, sim, o Estado dotar os pais, as famílias, a sociedade como um todo, dos meios eficazes para o exercício desse controle, para que eles possam, inclusive, se envolver na discussão e na decisão sobre o que veiculado, seja com a informação sobre a programação, seja por meio de mecanismos eletrônicos de seleção ou dos meios legais para que busquem no Poder Judiciário o controle de qualidade dos programas exibidos.

Nesse ponto, é importante salientar que permanece o dever das emissoras de rádio e de televisão de exibir ao público o aviso de classificação etária, de forma antecedente e concomitante com a veiculação do conteúdo, regra essa prevista no parágrafo único do art. 76 do ECA, sendo seu descumprimento tipificado como infração administrativa pelo art. 254, ora questionado (mas nessa parte não objeto de impugnação). Pensar de forma diversa frustraria o próprio objetivo da classificação, qual seja, indicar ao espectador sobre a natureza do conteúdo veiculado e, por conseguinte, da faixa de público a que idealmente se destina.

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Essa, sim, é uma importante área de atuação do Estado, o qual deve reforçar a necessidade de exibição destacada da informação sobre a faixa etária especificada, no início e durante a exibição da programação, e em intervalos de tempo não muito distantes (a cada quinze minutos, por exemplo), inclusive, quanto a chamadas da programação, de forma que as crianças e os adolescentes não sejam estimulados a assistir programas inadequados para sua faixa etária.

No meu sentir, a exibição do aviso de classificação indicativa tem um efeito pedagógico. Ao se esclarecer as faixas etárias às quais as atrações não são apropriadas, exige-se reflexão por parte do telespectador e dos responsáveis, os quais são chamados a decidir se assistem ou não a determinada programação ou se permitem, ou não, que seus filhos a ela assistam. É dever do Estado, nesse ponto, conferir maior publicidade aos avisos de classificação, bem como desenvolver programas educativos acerca do sistema de classificação indicativa, divulgando, para toda a sociedade, a importância de se fazer uma escolha refletida acerca da programação ofertada ao público infanto-juvenil. É fundamental que a sociedade atraia para si essa atribuição, cabendo ao Estado incentivá-la nessa tomada de decisão, e não domesticá-la.

Esse controle parental pode ser feito, inclusive, com o auxílio de meios eletrônicos de seleção e de restrição de acesso a determinados programas radiodifundidos, como já é feito em vários países. Trata-se de tecnologia de uso obrigatório no Brasil, mas que, infelizmente, ainda não tem sido adotada entre nós.

Em 2001, o Congresso Nacional editou a Lei no 10.359, estabelecendo que os aparelhos televisores produzidos no território nacional devem dispor, obrigatoriamente, de dispositivo eletrônico que permita ao usuário (pais ou responsáveis) bloquear a recepção de programas com cenas impróprias para menores. Vide:

“Art. 1o Os aparelhos de televisão produzidos no território nacional deverão dispor, obrigatoriamente, de dispositivo eletrônico que permita ao usuário bloquear a recepção de programas transmitidos pelas emissoras, concessionárias e

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permissionárias de serviços de televisão, inclusive por assinatura e a cabo, mediante:

I – a utilização de código alfanumérico, de forma previamente programada; ou

II – o reconhecimento de código ou sinal, transmitido juntamente com os programas que contenham cenas de sexo ou violência.

Art. 2o É vedada a comercialização de aparelhos de televisão fabricados no Brasil após a entrada em vigor desta Lei ou importados a partir da mesma data que não disponham do dispositivo bloqueador referido no artigo anterior.

Parágrafo único. O Poder Executivo estabelecerá as condições e medidas de estímulo para que os atuais televisores existentes no mercado e os que serão comercializados até a entrada em vigor desta Lei venham a dispor do dispositivo eletrônico de bloqueio a que se refere o art. 1o.”

De início, essa lei entraria em vigor um ano após a sua publicação, com o intuito de permitir que os fabricantes de televisão se adaptassem à produção desses aparelhos. Posteriormente, no entanto, a Medida Provisória no 79, de 27 de novembro de 2002, convertida na Lei no 10.672, de 15 de maio de 2003, postergou o início da vigência da Lei no 10.359/01 para 30 de junho de 2004. Não bastante, em junho de 2004, foi editada a Medida Provisória no 195, de 29 de junho de 2004, revogando a Lei no 10.359/01 e estabelecendo nova disciplina acerca do matéria, além de estabelecer que a data de exigência desse sistema não poderia ser posterior a 31 de outubro de 2006 (art. 2o, § 1o). Ocorre que essa medida provisória foi rejeitada pelo Senado Federal, de modo que foram restauradas as disposições da Lei no 10.359, de 2001. Resumindo: o dispositivo eletrônico que permite ao usuário bloquear a recepção de programas transmitidos pelas emissoras, concessionárias e permissionárias de serviços de televisão voltou a ser obrigatório desde 30 de junho de 2004, embora essa obrigatoriedade seja, até hoje, totalmente ignorada.

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Por outro lado, a exibição da classificação indicativa desencadeia importante efeito autorregulador por parte das próprias emissoras de rádio e televisão, pois sujeitas às susceptibilidades dos telespectadores, a elas não interessaria, por exemplo, exibir um programa especificado como “não recomendado para menores de dezesseis anos” às dez horas da manhã. Nem os respectivos patrocinadores e anunciantes se sentiriam confortados.

Isso sem falar que, evidentemente, sempre será possível a responsabilização judicial das emissoras de radiodifusão por abusos ou eventuais danos à integridade das crianças e dos adolescentes, inclusive levando em conta a recomendação do Ministério da Justiça quanto aos horários em que a referida programação se mostre inadequada. Afinal, a Constituição Federal também atribuiu à lei federal a competência para “estabelecer meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221” (art. 220, § 3o, II, CF/88).

Como salientado pelo Ministro Ayres Britto, em seu voto na ADPF 130, “é da lógica perpassante dos mesmíssimos preceitos constitucionais (art. 220 e seus §§ 1o, 2o e 6o) o comando de que os eventuais abusos sejam detectados caso a caso, jurisdicionalmente (…), pois esse modo casuístico de aplicar a Lei Maior é a maneira mais eficaz de proteção dos superiores bens jurídicos da liberdade de manifestação do pensamento e da liberdade de expressão lato sensu”.

Enfim, a liberdade de expressão também exige responsabilidade no seu exercício, devendo as emissoras resguardar na sua programação as cautelas necessárias às peculiaridades do público infanto-juvenil. Não obstante, são as próprias emissoras que devem proceder ao enquadramento horário de sua programação, e não o Estado.

O que não pode persistir, porém, é legislação que, a pretexto de defender valor constitucionalmente consagrado (proteção da criança e do adolescente), acabe por amesquinhar outro tão relevante quanto, como a liberdade de expressão. Não se pode admitir que o instrumento constitucionalmente legítimo da classificação indicativa seja, na prática, concretizado por meio de autorização estatal, mediante a qual se

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determina de forma cogente a conduta das emissoras no que diz respeito ao horário de sua programação, caracterizando-se como mecanismo de censura e de restrição à liberdade de expressão.

Por fim, não há como ser deferido o pedido de declaração de inconstitucionalidade, por arrastamento, da expressão “a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias”, constante do parágrafo único do art. 254 e a inconstitucionalidade parcial sem redução do texto do art. 76, todos da Lei no 8.069/90, conforme requer a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), na qualidade de amica curie.

A expressão “a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias”, constante do parágrafo único do art. 254, também se aplica à conduta contida no caput do dispositivo, de transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo sem aviso de classificação, a qual não foi objeto de impugnação na presente ação direta de inconstitucionalidade que se restringe a questionar a expressão “em horário diverso do autorizado”.

Já em relação ao art. 76 da Lei 9.069/90, entendo que o dispositivo tem vida própria, não se aplicando ao caso o fenômeno da inconstitucionalidade por “arrastamento” ou por “atração”.

Em verdade, o que pretende a associação é ampliar o pedido da ação direta de inconstitucionalidade, prerrogativa essa não deferida aos amici curiae, os quais não têm legitimidade para a prática de ato de emenda à inicial, tendente a inflar a abrangência da impugnação.

Ante o exposto, julgo procedente a ação, para declarar a inconstitucionalidade da expressão “em horário diverso do autorizado” contida no art. 254 da Lei no 8.069/90.

É como voto.

 

Luis Nassif

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