Por que acreditamos em fakes?, por Clarisse Toscano de Araújo Gurgel

'Há mentiras que confortam a alma e outras que incomodam. Fenômeno este que depende mais da alma do que da mentira'

Por Clarisse Toscano de Araújo Gurgel

Lula foi solto. Diríamos que a maior contribuição do ex-presidente, em seu discurso, nesta sexta-feira, 8 de novembro, foi a distinção que estabeleceu entre a política por Twitter e por FakeNews e a política do corpo a corpo, do olho no olho.

Entre o que é fake e o que é fato, porém, há um fosso chamado desejo. Não são poucos os que têm, hoje, uma sensação de que, no fundo, muitos já sabiam, por exemplo, do envolvimento de Bolsonaro na morte de Marielle e da relação de Bolsonaro com milícias. De tal modo que o fato nem sempre desmente o fake. Há algo aí que está no campo da irracionalidade, de uma injustiça no plano da moral, o que chamamos de ideologia: a forma como reconhecemos o mundo e que nos ajuda a ser reconhecidos.

Qualquer olhar mais misericordioso para os que votaram em Bolsonaro não nos permite a afirmação cristã: eles não sabiam o que faziam. Mas não podemos chamar de perversos todos os 57 milhões de eleitores de Bolsonaro: os que sabiam, mas mesmo assim o faziam. Desses, apenas 20% o são- o que já é muito.

O que ocorreu com os 80% restantes que votaram sem saber o que faziam?

Lula atribui a fakenews. Mas, afinal, o que faz com que alguns da classe trabalhadora acreditem em mentiras e outros, não?

Há mentiras que confortam a alma e outras que incomodam. Fenômeno este que depende mais da alma do que da mentira. Se a fantasia está em sintonia com os valores morais de uma pessoa, a verificação sobre a veracidade nem é feita. Se a mentira encontra morada no espírito, ela se torna verdade. Ao ponto de, nem mesmo ver, ser suficiente pra crer. Basta que ela seja repetida. A Globo, no Brasil, e, agora também, as “empresas ponto com” são as que têm cumprido esta tarefa nefasta de repetir mentira.

Dito isto, o que seria capaz de superar a vontade de acreditar em uma mentira? Só o que chamamos de elaboração. Algo que requer também repetição da verdade. Coisa que não se faz apenas por memes, nem por textos como este que agora escrevo, mesmo os mais verdadeiros. Há uma dimensão da política que é face-a-face, olho no olho, e envolve reunião. Mesmo que seja uma reunião para a leitura e a elaboração em torno de um meme e de um texto.

Os memes são céleres e, por isto, não abordam nuances da realidade. Um artigo é longo e denso e, por isto, não instiga aqueles que ainda não despertaram para o desejo emancipador pela verdade. A verdade, no entanto, é algo coletivo. Sua produção envolve um labor que requer uma temporalidade do diálogo. Não um diálogo de negócios e, sim, um diálogo livre de marketing, de juros, de regras de mercado, de valor de troca. Talvez seja a isto que se refira Lula, ao fazer menção a uma Ideia, que de tão cultivada, não pode ser presa. Resta saber a relação entre esta Ideia e a Verdade.

Bolsonaro foi eleito sem participar de qualquer embate teórico, sem qualquer exercício dialógico. E é o diálogo franco que confronta a mentira com a verdade, que instaura, portanto, a diferença. É isto que, somado à realidade diária, impele alguém a admitir a verdade. É a persistência da elaboração antitética, no tempo longo e nos mínimos espaços. Aquilo que alguns chamaram de insistência libertadora.

A esquerda precisa reconciliar-se com esta estética genuína, cuja fonte é a ação direta. Isto passa por reduzirmos, ao máximo, as camadas de mediação que tornam as relações sociais cada vez mais indiretas.  Tudo que requer um meio para ser feito é mediado, é indireto. Assim, quando votamos e escolhemos representantes, esses recursos – o voto, as instituições e alguém que nos represente – são camadas que separam as pessoas, que filtram a sociedade e distanciam os sujeitos. A mídia também é um desses recursos. É uma instituição. Ao mesmo tempo em que expande o alcance da informação, reduz a comunicação face-a-face.

A esquerda tem como histórico a crítica aos instrumentos que filtram a comunicação entre as pessoas, pois limitam a participação nas decisões. O avanço tecnológico não pode ser entendido como democracia direta. Ao menos, por enquanto. Às vezes, ocorre o contrário: as mídias tornam a comunicação mais célere e ampla, ao mesmo tempo em que se perde a cultura dos encontros. Eis o materialismo histórico em seu ápice, quando o avanço das forças produtivas vem com atraso nas relações de produção. De diversas maneiras, o que vemos é o esvaziamento do debate e do diálogo, na medida em que as tecnologias da informação se desenvolvem.

O exercício, que deveria ser habitual, de re-união para tomada de decisões, com vistas a implementação coletiva de soluções para os problemas, é comprometido por relações sociais cada vez mais “midiadas”. E atentem para um fato: quando Lula fala que a política deve estar em cada um de nós, ele mesmo, como instituição que já o é, faz as vezes desta mídia. Sua fala, portanto, pode servir também de armadilha, quando gera uma confusão, ao vir de um representante falando contra a representação. Algo só compreendido se nosso foco passa a estar no que chamamos de trabalho de organização: justamente, aquilo que retira o que está no meio, o que, indevidamente, separa a teoria da prática.

Talvez, o veneno do capital seja nosso elixir: a inelegibilidade de Lula, contraditoriamente, pode auxiliar uma esquerda que precisa forjar-se sem depender de um representante. Lula terá que aprender o que não soube lá atrás: fazer uso de sua potência em nome de algo que não resulta em seu nome. Se os que amam Lula se organizarem politicamente, em partidos, sindicatos e movimentos, o Brasil não precisará mais de Lulas. Era isto que Lula, habilmente, quase dizia. E o que separa o fake dos fatos na fala de Lula é que, entre se organizar e apenas votar, há também um fosso do desejo.

Na ausência de diálogo, o Brasil elegeu um sujeito avesso à diferença. Em um tempo em que a vida é excesso de mediação, aquele menos afeito ao diálogo ganha a disputa democrática apenas por meio de sua mídia particular.

De tudo isto, há uma verdade que precisa ser repetida: o povo brasileiro não escolheu Bolsonaro. A começar pelo fato de seu principal adversário ser impedido de se apresentar como uma alternativa para o povo.

Desta verdade, deriva-se outra: o capital foi que escolheu Bolsonaro.

A vontade do capital encontrou, desta vez, sua imagem e semelhança em Bolsonaro. Porque é ele quem melhor representa, hoje, os ânimos dos conglomerados empresariais, cada vez mais à vontade para se liberar dos constrangimentos democráticos. Por isto, o presidente do Brasil tinha que estar em sintonia com uma face da cultura de seu povo: o espírito brasileiro pragmático e populista – soluções rápidas que não mexem no sistema – e autoritário – crédulo de um grande herói que faça por nós. O capital foi mais hábil ainda, pois ligou sua vontade àquilo que parece ser a senda dos brasileiros: a preferência pelo novo. Este desejo que, ao contrário de estimular o gosto por uma transformação profunda, pode reforçar seu oposto: uma tendência à reação sob a fantasia do “recomeçar do zero”, “explodir com uma bomba e começar de novo”, tal como uma performance de face reacionária.

O que é fato: 1. ouvimos, cada vez mais, nas ruas, pessoas arrependidas da maior besteira que fizeram, ao votarem em Bolsonaro. 2. Sabemos que a Google atuou na campanha de Bolsonaro, espalhando fake-news pelo país. 3. Menos de 12% dos brasileiros seguem fiéis ao Bolsonaro, na medida em que ele mesmo se revela para mais pessoas; 4. A massa de trabalhadores que votaram em Bolsonaro não sabia que, com ele, viriam a perda da aposentadoria, do direito à saúde e à educação gratuitas, o fim do serviço público, o aumento da fome, da miséria, do desemprego e da informalidade, no Brasil.

O capital elegeu Bolsonaro. Nós, do povo, não sabíamos o que fazíamos. Há muito, não sabemos. Portando, tenhamos piedade de nós.

Esta verdade, acima, porém, não basta ser dita. Ela precisa repercutir orgânica, tal como um hábito que vestimos, religando ações apoiadas também em um outro lado da brasilidade, fincada em valores como solidariedade, combatividade e associativismo. Só, assim, transformaremos o gosto brasileiro pelo novo em desejo radical por mudança.

Redação

3 Comentários

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  1. Burrice ou ignorância é uma campanha publicitária massiva e ativa; envolve, além dos vários milhões em interesse com a promessa de retornos bilionários as mais capacitadas mentes especializadas em mentir e enganar. Alguns simplesmente desejam parte do butim (vide alguns juízes e especuladores). Lutar à altura é necessário. Sem inocências de se achar que pode-se negociar algum acordo ou ainda crer que dizer “republicanismo” afasta os males…

  2. O importante é que o despertar já começou…
    muitos estão se ligando no fato de que quando votaram em Bolsonaro estavam apenas obedecendo inconscientemente aos interesses de curto prazo dos investidores de dinheiro

    pobre que ousa ter a mesma ganância dos investidores de dinheiro tem mais é que se estrepar mesmo, perder quase tudo, gerar resultados imediatos para os ricos e esperar que as coisas melhorem daqui há 10, 20 ou 30 anos

    o truque foi apresentar uma ideia com uma sugestão de ação dentro dela. esperar

    sem falar que o indivíduo eleitor de Bolsonaro e de seus abutres da economia precisa ser muito burro para acreditar que esperar é uma ação. É enquanto esperam que perdem tudo

  3. A articulista alerta que para superar uma mentira precisamos ir além de memes ou de fakes. Segundo o artigo: “Dito isto, o que seria capaz de superar a vontade de acreditar em uma mentira? Só o que chamamos de elaboração. Algo que requer também repetição da verdade. Coisa que não se faz apenas por memes, nem por textos como este que agora escrevo…”
    Aí reside o medo destes hoje aboletados no poder e da curriola externa ou interna que gravita no seu entorno: Lula tem o poder da palavra e não teme o corpo-a-corpo.
    Por outro lado, creio ser importante responsabilizar o Congresso como criminoso principal das mazelas implantadas contra o povo e que se encontram descritas no item 4 (antepenultimo parágrafo, fatos). Este congresso bizarro, mais que referendando, vem vibrando e tratando como seus os crimes contra o povo perpetrados por esta infame e virulenta política econômica expelida por este insano do Paulo Guedes.

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