Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
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Thomas Payne, a fraude na merenda e mais uma responsabilidade mocozada, por Madrasta do Texto Ruim

Thomas Payne, a fraude na merenda e mais uma responsabilidade mocozada

Thomas Payne é linguista, e dá aulas na universidade do Oregon. Ele mudou minha vida, e da maneira mais inocente possível.

por Madrasta do Texto Ruim

No livro Describing Morphosyntax, ao analisar atores e relações gramaticais (“Bora botar ordem na bagaça! Quem é sujeito, fazfavô de ir pra fila da esquerda; verbos aqui na frente; complementos fazendo fila aqui à direita, e acessórios vão pra trás! Não, aposto, você não é sujeito, vai pra fila de trás. Sim, o vocativo te acompanha, vocês ficam com todos os adjuntos!”, só que explicado de forma mais sofisticada e acadêmica), ele analisa que, pra ocupar o cargo de sujeito, um ator gramatical deve ter um determinado perfil semântico, que vai ser diferente do perfil semântico do cabra que é objeto.

Com essa organização em mente, Payne elaborou uma escala de agentividade. Nessa escala, quanto mais humano, animado e com vontade própria, mais esse ator gramatical vai ter propensão a ocupar a vaga de sujeito/agente. Continuando com esse raciocínio, se o ator gramatical for não humano, inanimado, ideia ou coisa, sem vontade própria, maior será sua propensão a ser objeto/paciente. E, por ser uma escala, animais ficam no meio do caminho, por não serem humanos mas serem animados e com alguma vontade própria.

O parágrafo daí de cima é apenas a sistematização de, por exemplo, “vovó comeu banana” (eu adoro esse exemplo). A vovó é o humano animado com vontade própria. Por isso, só ela consegue acionar o verbo comer. Banana é inanimado, é coisa, não aciona verbo nenhum – pelo contrário, ela só se ferra na qualidade de objeto direto. Começou a frase inteirinha na fruteira e terminou a frase na barriga da vovó.

Mas como eu disse lá em cima, Payne mudou minha vida. Porque quando eu leio uma manchete como a do G1 [print abaixo], eu só consigo me perguntar quem a fraude da merenda pensa que é na escala de Payne para ser capaz de acionar o verbo movimentar? Empoderada ela, hein?

Ou isso ou essa fraude da merenda tá mocozando a responsabilidade de um ator gramatical (e político) humano, animadíssimo e cheio de vontade própria. O mesmo ator gramatical que, no papel de ator político, tá sempre de boas com a justiça.

Outra coisa que me faz pensar à beça: por que não “quadrilha da merenda”, ou “fraudadores da merenda”, pra dar alguma carga humana a esse sujeito? Por que um sujeito tão impessoal insípido e inodoro? O jornalismo traz algumas respostas: “Fraude da merenda”, além de ser o tema da reportagem, é algo que chama atenção, dirão os editores. Concordo. Mas “fraudadores da merenda” também chama a atenção pra notícia. E, ora vejam vocês, a notícia também fala de fraudadores da merenda, né? Por que (pra quê?) esconder as pessoas por trás da quadrilha?

E agora eu me calo, porque eu só vim aqui pra falar de gramática.

(texto inspirado por um post do professor Carlos Emilio Faraco)
 
 
 
Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

12 Comentários

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  1. “Outra coisa que me faz

    “Outra coisa que me faz pensar à beça: por que não “quadrilha da merenda”, ou “fraudadores da merenda”, pra dar alguma carga humana a esse sujeito?”

    Porque TODOS os envolvidos sao de extrema direita.

  2. A denúncia é boa mas a teoria fraca…

    A escala de agentividade é apenas uma tendência, que nao impede sujeitos inanimados, e a força dessa tendência depende do tipo de sintaxe da língua. Nem vou falar em línguas ergativas, mas, mesmo no Português, o dito Português Brasileiro a observa muito menos do que o Português Europeu (onde uma frase como “A porta abriu” nao seria possível, nem “O feijao está cozinhando”, ambas perfeitas em PB.

    1. Qual o seu ponto mesmo?

      1- A escala de agentividade não é uma tendência. É uma teoria de análise. Ela considera sujeitos inanimados como não-prototípicos

      2- Como teoria de análise, ela desconsidera fenômenos como metáforas, metonímias e personificações. O que, para minha análise, também foram desconsiderados. A única coisa que eu levei em consideração foi a escolha deliberada por um sujeito com determinado perfilsemântico, e as consequências discursivas dessa escolha.

      3- Não entendi mesmo pra quê mencionar aqui línguas ergativas. A manchete em questão foi pensada, concebida e escrita no sistema nominativo-acusativo, e as relações gramaticais estabelecidas em ambiente nominativo-acusativo não têm nada a ver com as relações gramaticais estabelecidas em sistemas ergativo-absolutivos.

      4- “a porta abriu” e “o feijão está cozinhando” sãoperfeitamente explicáveis à luz da Pragmática, ainda que sejam consideradas aberrações no português europeu.

      5- Não entendi o propósito do seu comentário.

      1. Qual o meu ponto? Questionar uma teoria fraca…

        Só isso. Concordei com a análise do texto, só pus uma RESSALVA. Isso te incomodou? Por quê?

        Ok para a teoria da agentividade ser uma teoria, e nao uma tendência. É uma teoria que teoriza sobre uma tendência, e achei legal lembrar que é uma tendência apenas, e nao algo muito sólido. Tanto que os linguistas que lidam com esse tipo de teoria já tentaram várias escalas de agentividade (ou escalas semelhantes de hierarquizaçao de argumentos) e nao conseguem se pôr de acordo, e as escalas têm problemas, exceçoes (casos “nao prototípicos”, rs) demais.

        Eu DISSE que nem falei sobre línguas ergativas, porque para essas é claro que a teoria nao se aplica. E a questao com as frases do PB que citei, que nao seriam aceitas em PE, nao é pragmática nao. A pragmática é a mesma nas duas línguas, mas a GRAMÁTICA da primeira admite essas frases, e a da segunda nao (nao a gramática escolar; a gramática real da língua)

        1. Insisto: não entendo

          Continuo sem entender como voc~]e pode avaliar a pertinência de uma teoria a partir da aplicação em UM aspecto de UMA manchete a ser analisada – e ainda com efeito discursivo, e não sintáico.

          No mais, adoraria saber quais outros autores propuseram “teorias” de agentividade. Lembre-se: Payne propôs uma ESCALA de agentividade.

          Mas, então, se a teoria de Payne não presta, a doutora teria outra ideia melhor?

          1. Eu é que nao entendo por que essa questao te afeta tanto…

            Esse nível de belicosidade por uma questao de Linguística? Céus!

            Claro que NAO avaliei a pertinência da teoria a partir da aplicaçao à manchete. Apenas achei nao pertinente a própria aplicaçao da teoria a esse caso, nao porque nao se aplique, mas porque o efeito discursivo visado podia ser perfeitamente explicado sem o recurso a ela, e aí, num blog cuja grande maioria de leitores nao é formada por linguistas, acaba se produzindo um outro efeito discursivo, o do “apelo à Ciência”. Como considero a teoria fraca, a critiquei, sobretudo para desmistificar um pouco esse apelo.

            Há sim outras escalas de hierarquizaçao de argumentos quanto à ocupaçao da posiçao sintática de sujeito. Nao vou procurar a bibliografia agora, mas Jackendoff se refere a uma, nao sei se dele ou nao, e há outras. Aliás, de um modo mais incipiente, isso vem desde Fillmore em O Caso do Caso, que ainda é dos anos 60. E a agentividade é apenas UM dos fatores que influencia na escolha do sujeito. Outros fatores, relacionados entre si, têm a ver com informaçao velha X informaçao nova, tema X lema, etc.

            E relaxe, moça. Ninguém xingou sua mae nao.

  3. Thomas…

    E o Brasil corre o perigo de ser dominado pelo Crime Organizado? Somos crianças, mesmo !! Somos a Terra da Fantasia e da Inocência !! 88 anos do Estado Total. Estado Obrigatório. Quer dizer que Promotor de Justiça de SP, Fernando Capez, é um daqueles ‘redemocratas’ a roubar comida de crianças? Existe algo mais baixo que roubar comida de crianças?!! O que esperar desta Promotoria? Sabemos. Décadas vendo o que sai, ou não sai, do MP / SP ou MP do Tucanistão. Procurador Geral de SP, assim, que divulgadas as delações contra Picolé de Chuchu, retirou o processo de Promotor original e trouxe para sua alçada. Proteger ao Chefe? Coincidência. E todas as dezenas de casos criminais contra o MP / SP? “Engavetador Geral da República” já nos mostrou o caminho da Justiça Tucana. Capez envolvido em roubo de merendas, juntamente com Prefeito de cidade de SP, ligado ao Crime Organizado. O tal que liberado foi por então Secretário de Estado do Tucanistão, que hoje é Ministro do STF Alexandre de Moraes. Mas o problema é o ‘Monstro’ do Crime Organizado e não o Crime Organizado do Estado Brasileiro? É SURREAL. Tudo Gente Honesta saida das Catedras de OAB, como Fleury ou Temer. Exemplo Maravilhoso de Lisura, Transparência e Honestidade, não é mesmo? Nascida sob as bençãos de Ditadura Inaugural, para o silêncio conivente sobre o Assassinato de Membros de tal Profissão. Você puxa o fio e vem o ‘rolo’ todo. O Brasil é de muito fácil explicação. Roubar comida de crianças? Coisa mais baixa, até mesmo para O Tucanato.       

  4. Mudando de assunto…

    … às vezes penso que seria melhor que nenhuma notícia sobre o roubo do dinheiro público fosse dada do que dada dessa forma: alienante, indutora de ignorância. É que quem lê absurdos como esse texto e não pensa, não apenas se sente informado – e todo pimpão por esse sentimento – como tende a absolver os crimes de pessoas como os diretores da firma “Globo”, que claramente são convientes com esses ladrões. Se não fossem, declinariam seus nomes, contantes nos autos da investigação. Conivência com crime é crime. Acobertamento de autoria de crime é crime. Talvez se pensarmos bem, essa notícia também é crime, e as pessoas responsáveis por ela não sejam nada diferentes de apenas criminosos.

    Como podem pessoas tão bem arrumadinhas, tomadas de banho, provalelmente cheirosas, como os irmãos Roberto Marinho ou até discretos e finos como Ali Kamel – ele tem responsabilidade sobre o que essa firma fabrica e vende como “notícia”, não tem? – serem apenas criminosos, né? Prá ser criminoso não tinha que ser do povo, da raça preta, pobre, popular sem emprego ou ex-presidente? Como a gente gosta de aparência… né?

  5. A fraude da merenda

    Sempre que numa denuncia houver alguém do pessedebê, vai ser sujeito oculto nas chamadas do pigão. O pig pode morrer à mingua, mas morre atracado com o PSDB.

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