Boicotes, apartheids e artistas – II, por Walnice Nogueira Galvão

Se os músicos de rock se destacaram no boicote ao apartheid vigente na África do Sul, outras artes também prestaram sua colaboração. Foi o que ocorreu no teatro, no cinema e na literatura – sendo que esta última com pioneirismo.

No teatro, destacou-se o sul-africano Athol Fugard, dramaturgo, diretor e ator, ativo no movimento anti-apartheid. Coordenou o boicote internacional do teatro, decretando que ninguém ligado ao palco, fossem companhias, atores ou diretores,  aceitasse apresentar-se no país. Arrostou perseguição e, além de muitas peças censuradas, teve seu passaporte confiscado pelo governo.

Hoje na Cidade do Cabo ergue-se o Teatro Athol Fugard. Uma de suas peças militantes mais conhecidas foi transformada no filme Tsotsi  – Infância Roubada. No entrecho, menino de rua, habitante de um gueto em Joanesburgo,  vai aos poucos passando à delinquência e à criminalidade. Até que lhe cai nas mãos um bebê, do qual não consegue se livrar por mais que tente, o que o obriga a reconsiderar toda a sua vida, suas potencialidades e seu futuro. Levaria o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2006.

Já antes, outra peça sua tinha virado filme: Boesman e Lena, com Danny Glover e Angela Bassett. Mostra como um casal negro vai de queda em queda, numa degradação progressiva, até se tornar sem-teto.  O entrecho expõe didaticamente o  horror do que o apartheid faz a eles.

Muitos e bons filmes foram feitos sobre o apartheid, engrossando a campanha que visava a seu fim, esclarecendo o espectador sobre suas implicações.  Colaboraram com o boicote generalizado, que, tendo por objetivo imediato ganhar a adesão do eleitorado negro norte-americano, acabou contribuindo para a vitória.

Entre eles, figura a estréia de Morgan Freeman na direção, em Bopha – À flor da pele, novamente com Danny Glover e mais Malcolm McDowell, expondo o conflito entre um chefe de polícia negro sul-africano, portanto servil ao regime, e seu filho ativista do anti-apartheid.

Pede destaque Cry the Beloved Country, baseado no primeiro romance escrito sobre a questão, por Alan Paton, com o mesmo título, em 1948. Dolorosa história de dois pais: o primeiro é um branco cujo filho é assassinado num assalto pelo filho do segundo; este é um pastor protestante negro, cujo filho é condenado à morte  e executado pelo crime. O livro, precursor de toda uma literatura que viria depois, foi banido na África do Sul.

Outro é Assassinato sob Custódia, com Marlon Brando e Susan Sarandon. Donald Sutherland faz um professor que denuncia o assassinato sob tortura de um amigo negro e precisa fugir por ser contra o apartheid. Baseado em livro de André Brink.

Em Nome da Honra fala da trajetória do militante Patrick Chamusso, do Congresso Nacional Africano: tempos de clandestinidade, treinamento em Moçambique, 20 anos de prisão. Hoje toma conta de 80 órfãos do apartheid, em sua casa.

E muitos e muitos outros.

Após o fim do apartheid, instaurou-se a difícil e penosa construção de uma via comum de convivência interétnica. Nessa fase, os militantes criaram algo novo no mundo, a Comissão da Verdade e Reconciliação, que frutificou pelo planeta afora, e até no Brasil.  Dois filmes se salientaram nessa temática: Em minha terra, com Juliette Binoche e Samuel L. Jackson, e Sombras do passado,com Hillary Swank.

Entre os brancos que sempre militaram contra o apartheid, vivendo no país e afrontando o perigo, sobressaem em literatura dois prêmios Nobel, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee, que perquiriram a corrupção moral de toda a sociedade causada pelo racismo. Alan Paton foi  pioneiro com Cry the beloved country e André Brink escreveu vários e bons romances. Muitos dos livros de todos eles tornaram-se filmes.

Três prêmios Nobel da Paz galardoaram militantes: para Albert Luthuli, presidente do Congresso Nacional Africano (partido de Mandela), para o arcebispo Desmond Tutu, para Nelson Mandela.

 A próxima coluna tratará dos filmes a respeito de Nelson Mandela e comparsaria.

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da USP

Walnice Nogueira Galvão

2 Comentários

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  1. Faltou listar o filme baseado

    Faltou listar o filme baseado no livro do jornalista…(?) que denucia o assassinato do ativsita Stive Biko (Denzel Washington) sob custódia da policia. Muito bom filme, que assisti no lançamento, nos anos 80, razão pelas quais não lembro de mais detalhes, pois estou escrevedo de sopetão nem o título me lembro direito. Não sei se era “Um grito de liberdade”, ou se esse era o título de um filme de Clint E. com Morgam freeman. 

  2. A dificil luta contra racismo e segregações

    Tsotsi – Infância Roubada é um filme lindo, em que o contexto social do negro e pobre é muito parecido com o Brasil senão idêntico. E Coetzee é um autor sul-africano a se ler. Seus livros são complexos, dificeis, dolorosos por vezes e nunca terminam em simplismos moralistas. 

     

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