“Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”: Brasil

No último mês, o Brasil se juntou ao crescente número de países nos quais a sociedade civil foi às ruas e começou a fazer grandes manifestações. Por que isso aconteceu? Quem são os manifestantes? O que eles querem? Quais foram as principais reações? Essas são algumas das questões importantes abordadas neste pequeno artigo.

A ‘brincadeira’ no título foi elaborada a partir de um sinal criativo em um dos protestos no Rio de Janeiro em junho deste ano. É, provavelmente, a melhor maneira de expressar o que está acontecendo em muitos países do mundo. Essa frase resume de certa forma o crescente descontentamento da população de todos os países que tiveram manifestações populares recentemente.

Olhar mais de perto o que aconteceu (está acontecendo) no Brasil ao longo do último mês [junho] é um bom ponto de partida para entender as diferenças e semelhanças entre essas manifestações. Por cerca de duas semanas, o país quase paralisou. Em mais de 350 cidades, milhões de pessoas foram às ruas para protestar. As exigências eram inúmeras. Na verdade, era muito difícil manter o controle de cada uma delas. Isso levou alguns dos primeiros especialistas a afirmar que as manifestações eram muito difusas (além da questão da passagem de ônibus) e, por consequência disso, não iriam durar muito tempo. Bem, os primeiros “especialistas” se chocaram ao observar os protestos se transformarem em uma das maiores manifestações da história do Brasil.

1. Como começou?

Protestos contra o aumento da tarifa de ônibus são a coisa mais comum no Brasil. Na verdade, todos os anos algumas centenas de pessoas, principalmente estudantes, organizam pequenas manifestações. Qual foi a diferença dessa vez? Se eu tivesse que escolher uma data de partida para essas manifestações, seria o dia 6 de junho. Nessa data, 2.000 manifestantes, organizados pelo Movimento Passe Livre, que visa extinguir as tarifas do transporte público, organizou um protesto pelas mídias sociais e marchou, em São Paulo, contra o recente aumento das tarifas (que normalmente ocorre em janeiro; mas, neste ano, o ministro da Fazenda pediu aos prefeitos para o adiarem, por alguns meses, a fim de conter a inflação). A manifestação terminou em violência de ambos os lados, dos manifestantes e da polícia.

O mesmo protesto foi repetido nos dias que se seguiram. É interessante observar que, no início, o movimento não desfrutava de amplo apoio público, e grande parte da mídia identificava os protestos como distúrbios e seus atores, como delinquentes. Essa avaliação precoce mudou rapidamente depois de dois episódios fundamentais: o protesto do dia 13 de junho, em São Paulo e o do dia 16 de junho, no Rio de Janeiro, durante a abertura do estádio do Maracanã. Ambos foram fortemente reprimidos. O uso indiscriminado de gás lacrimogêneo e de balas de borracha pela polícia contribuiu para imagens parecidas às de uma zona de guerra que, como foi de se esperar, rapidamente se tornou viral na mídia (principalmente nas mídias sociais, como Twitter e Facebook). Em minha opinião, esses eventos foram momentos decisivos, porque depois disso as manifestações ganharam um incrível apoio popular, não só entre as cidades brasileiras, mas também em muitos países estrangeiros.

Deste ponto em diante, a lógica dos protestos mudou drasticamente. A mídia, os especialistas e políticos (embora ainda atordoados) começaram a “acolher” o direito a manifestações livres e populares, e condenaram a violência e o vandalismo promovidos por “alguns”. Os protestos seguintes aumentaram em número e atingiram seu pico no dia 20 de junho, quando cerca de 2 milhões de pessoas (embora eu acredite que esta estimativa seja muito conservadora) foram às ruas. Mais uma vez, o dia acabou em violência – desta vez, de um lado, a polícia reprimiu tão duro quanto podia. Por outro lado, esses “alguns” destruíram cabines policiais, incendiaram carros e caixotes de lixo e quebraram as paredes de vidro dos bancos. No dia seguinte, a presidente Dilma quebrou o silêncio e se dirigiu à população. Seu discurso foi recebido com diferentes sentimentos – alguns acreditam que ela foi inteligente em não se comprometer muito ao pressionar os poderes legislativos para atenderem às demandas públicas; outros criticam o ‘vazio’ de suas palavras.

É importante reconhecer que praticamente todas as cidades restituíram as tarifas dos ônibus ao seu preço original. Mas, a essa altura, o estrago já estava feito. Os protestos continuaram, embora em menor número. Foi possível ver manifestações, pela TV, cada dia em uma cidade diferente, sempre com milhares de pessoas e, em certas ocasiões, reprimidas pela polícia. A resistência do movimento forçou a presidente Dilma fazer um segundo pronunciamento no dia 24 de junho. Desta vez, a presidente veio com uma proposta de plebiscito com cinco pontos, que foi recebido novamente com um elevado grau de ceticismo. Enquanto isso, o Congresso correu em uma velocidade incrível para tomar decisões a respeito das principais reivindicações das manifestações. Eles cortaram os impostos de combustível, rejeitaram as legislações controversas sobre “cura gay” e rejeitaram uma tentativa de limitar o poder dos procuradores federais sobre investigações criminais. Eles também aprovaram um projeto de lei que classifica a corrupção como crime hediondo.

Todas essas medidas, de alguma forma apaziguaram o humor de alguns dos manifestantes, apesar de ainda ser possível ver algumas manifestações em diferentes partes do país. Um bom exemplo disso é um grupo de estudantes que acampou do lado de fora da residência do governador do Rio de Janeiro.

2. Quem são os manifestantes?

Uma das perguntas mais interessantes feitas nesse processo foi: quem são eles? Eles não são politicamente afiliados e não pertencem a nenhum sindicato ou associação. Bem, os atores originais eram estudantes mobilizados pelo grupo “Movimento Passe Livre”. Mas, como já mencionado, eles rapidamente ganharam o apoio de muitos setores da sociedade que tornaram as manifestações mais diversificadas, mas a vanguarda ainda era composta por estudantes, principalmente das classes médias.

Por que eles? Há muitas teorias diferentes. A minha reside em dois fatos. O primeiro tem a ver com o fator da idade. Essa geração tem ouvido muito sobre como as duas últimas gerações mudaram o país, primeiro lutando contra a ditadura militar, participando em manifestações como os “Diretas Já”, em 1982 (manifestação que exigia eleições presidenciais diretas);  depois com os “Caras Pintadas”, movimento criado em 1992 (manifestação que terminou com o impeachment do presidente Collor). A nova ‘geração Y’ foi rotulada repetidamente como acomodada e passiva. Se esse for o caso, é difícil dizer, mas o que está claro é que essa geração sofre de uma descrença no sistema político e de um ceticismo generalizado na ação popular. No entanto, era possível ver centenas de cartazes dizendo “o gigante acordou”.

O segundo fato reside em estratos sociais. O Brasil tornou-se internacionalmente famoso por sua política de inclusão social – cerca de 35 milhões de pessoas ascenderam ao status de classe média. Por si só, esse fato é verdadeiramente notável e merece ser elogiado. O problema é que, tão logo que esses 35 milhões de pessoas ascenderam, receberam a “conta da classe média”. Atualmente, o Brasil tem um dos impostos mais altos do mundo, maior do que muitos países desenvolvidos, mas os serviços públicos são, definitivamente, comparáveis ​​aos de países subdesenvolvidos. Ligada às questões do serviço público, há a questão do custo de vida. O recente aumento do custo de vida no Brasil, onde a habitação e alimentação são os maiores vilões da história, é uma das maiores causas de insatisfação. Apenas para ilustrar, os preços dos imóveis aumentaram mais de 150% nos últimos 5 anos.

Outra característica do corpo principal dos manifestantes é a sua autonomia, como já havia mencionado acima. Eles (todos nós) vêm sendo sofrendo de uma crise de representação e descontentamento generalizado nos partidos políticos. A maioria dos manifestantes não se sente representada e tentou a todo custo evitar a participação dos partidos políticos no movimento. Houveram até mesmo relatos de que pessoas carregando bandeiras do partido foram espancadas.

3. O que eles querem?

Como havida dito antes, tudo “começou” com o aumento das tarifas de ônibus mas, logo depois, houve um aumento significativo no número de demandas. Elas eram tão diversas que muitos especialistas diziam que era impossível o movimento se sustentar. Eu dividiria as demandas em dois grupos principais (embora eu esteja ciente de que irei cometer alguma injustiça fazendo isso): primeiro são aquelas demandas que são mais tangíveis, tais como o aumento passagem de ônibus, a aprovação / rejeição de algumas das legislações controversas. O segundo grupo é mais complexo, cujas demandas requerem grande esforço para ser colocado em prática. Aqui, gostaria de agrupar todas as demandas de investimentos em serviços sociais (educação e saúde são os mais populares), mais transparência na política e nos gastos do governo, mais ética e até mesmo a remoção de algumas figuras políticas importantes, como o presidente da do Senado, alguns governadores, prefeitos e até mesmo a Dilma.

Também é importante tomar um momento para avaliar o caso da Fifa. Entre as demandas mais populares estão aquelas que afirmam que os serviços públicos devem ser “no padrão FIFA” e criticam a falta de transparência nos gastos públicos com a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A questão aqui é que quase ninguém, na verdade, é contra esses eventos que ocorrerão no Brasil / Rio de Janeiro. O problema é a percepção generalizada de que há má gestão e planejamento (e até mesmo corrupção). Originalmente, a Copa do Mundo foi planejada para ser totalmente financiado pelo setor privado, mas, no final, o dinheiro público cobriu a maior parte do orçamento, que foi revisado várias vezes (o orçamento dos estádios apenas passou de U$ 2,7 bilhões, originalmente, para cerca de U$ 3,5 bilhões). Há muita raiva equivocada nesse caso.

4. O que os manifestantes alcançaram até agora?

Em primeiro lugar, grande parte da classe política estava atordoada com os protestos. Eles não estavam esperando por isso. Na verdade, muitos acreditavam que a maioria dos políticos se “fingiram de morto”, esperando que a tempestade fosse passar em breve. Bem, ficou pior. A primeira demanda atendida foi a restituição das tarifas de ônibus ao seu preço original. Mas, agora, isso não foi suficiente. Após as manifestações varrerem o país (e se espalharem para outras cidades da Europa e dos Estados Unidos), o Congresso Nacional se apressou para atender as demandas mais tangíveis. A “cura gay”, a PEC 37 e a lei contra a corrupção são exemplos notáveis ​​disso. Outro “ganho” foi o pacto de 5 pontos criado pela Dilma, na qual o principal objetivo é a reforma política prometida para o próximo ano (o que está sendo realizado, na minha opinião, da forma mais irresponsável – mas isso é um assunto a ser discutido em outra ocasião) .

5. Breves reações

a. Mídia

Assim como em outros protestos em volta do mundo, as mídias sociais desempenharam um papel fundamental. A maneira com que ela consegue reunir um número incrível de pessoas sem vínculo institucional para o mesmo lugar, é extraordinário! Os mídia tradicional, por outro lado, teve um registro menos positivo. No início, eles estavam claramente condenando as manifestações. Assim que elas aumentaram, eles correram para saudá-los e foram muito cautelosos em dizer que os vândalos eram “um pequeno número de pessoas.” Muitos manifestantes direcionaram sua raiva aos principais canais de mídia (especialmente O Globo, o maior canal de notícias do Brasil). Eles afirmam que os canais tradicionais de mídia não relatavam as manifestações de uma forma neutra e que eles estavam se aliando com o governo (consequentemente ignorando alguns dos abusos por parte da polícia e sendo seletivo com a cobertura de escândalos). É difícil dizer até que ponto essas afirmações são verdadeiras, mas ninguém é completamente inocente aqui.

b. Polícia

Eu gostaria de poder dizer que a reação da polícia foi a pior surpresa, mas não foi. Na verdade, a única surpresa reside no fato de que ela reprimiu as manifestações (de estudantes de classe média) com a mesma brutalidade que vemos todos os dias nas “favelas”. O que vimos (eu vi), foram cenas de uma ocupação em um território inimigo. A polícia perseguiu os manifestantes nas ruas durante a noite, jogando bombas de gás lacrimogêneo em qualquer aglomeração de pessoas, em bares e até mesmo em um hospital. O único lado bom disso tudo foi que as ações da polícia reacenderam uma discussão sobre a reforma da polícia (desmilitarização e unificação das forças policiais). De qualquer forma, até essa data, eu não ouvi falar de um único policial que foi responsabilizado pelo “uso excessivo da força”. Agora, na minha opinião, esta questão deve ser colocada no topo da lista de prioridades.

c. Políticos

No início era quase engraçado (e triste) ver o quanto atordoado os políticos estavam com os protestos. Eles simplesmente não os entendiam. Eles demoraram vários dias para começarem a se posicionar. Depois de um tempo, todos eles começaram com o mesmo discurso: “A população está dentro de seu direito democrático de realizar manifestações, mas temos que condenar todos os tipos de violência”. Além disso, após o primeiro discurso da presidente Dilma, o Congresso começou a se reunir para atender todas as principais demandas das ruas. Muitos acusaram os políticos de agir de forma oportunista, uma vez que eles já estão com os olhos nas eleições do próximo ano. Exemplos desse argumento são as recentes acusações de vários deputados e senadores que usaram dinheiro público e recursos, como helicópteros e aviões da Força Aérea (ainda no pique dos protestos) para assistir os jogos da Copa das Confederações e outros eventos sociais privados, com seus familiares e amigos.

6. Consequências, Desafios e o Futuro

Algumas conclusões que podem ser tiradas sobre o que aconteceu no Brasil são:

I. A polícia tem de passar por uma reforma profunda e abrangente. A falta de responsabilidade, a violência e a certeza da impunidade não podem ser parte de seu modus operandi;
 
II. A polícia tem de passar por uma reforma profunda e abrangente (isto é sério!);
 
III. Foi excepcional ver o poder das mídias sociais. Elas conseguiram realizar que poderosos sindicatos e partidos políticos nunca conseguiram: a capacidade de mobilizar as pessoas (todos os tipos de pessoas) e compartilhar informações em tempo real. Esta foi a verdadeira revolução!
IV. Há uma profunda e enraizada crise de representação na sociedade brasileira. Ela é tão grave que fez com que as pessoas reagissem violentamente contra todos aqueles que levantaram qualquer bandeira partidária nas manifestações. Esta é uma situação muito perigosa.
V. A classe política no Brasil é uma entidade interessante. Eles agem como políticos profissionais, com uma lógica interna, uma ética própria e seus interesses não necessariamente coincidem com aqueles da sociedade em geral. Por isso, eu acredito que eles reagiram de forma oportunista, no caso das legislações controversas. De alguma forma, algumas das ações tomadas (e aqui incluo a presidente também) foram realizadas com o único propósito de apaziguar a “multidão”, e não com uma visão sustentável e de longo prazo. Aqui, vou trazer apenas um exemplo, e o mais perigoso: a reforma política. Diante de uma forte queda em sua popularidade, a presidente Dilma está convencida de que apressar a reforma política para o próximo ano a todo custos é de suprema importância, a fim destas poderiam ser aplicadas nas próximas eleições (em que ela vai tentar a reeleição). As ferramentas e os meios que ela propõe não são apenas inconstitucionais, mas também podem resultar em uma reforma fraca e / ou mal sucedida.
 
É difícil prever o que vai acontecer. As manifestações, embora ainda em curso e espalhadas por todo o país, estão perdendo força. As promessas do governo e a aprovação / rejeição de algumas legislações controversas, de alguma forma apaziguaram a maioria dos manifestantes. E é improvável que o que vimos no último mês será repetido tão cedo, pelo menos não até o próximo ano. A Copa do Mundo e as eleições presidenciais oferecem uma excelente oportunidade para uma nova rodada de protestos.
No que concerne à comparação com outros países: dezenas de analistas estão tentando desenhar uma linha conectando essas manifestações. Os mais criativos até tentaram definir a origem de tudo que está acontecendo este ano na Primavera Árabe. Os mais óbvios são comparando o Brasil à Turquia e até mesmo o Egito. Eu não vou resolver este problema ou desenvolver uma relação profunda entre elas – exceto para dizer que há, de fato, muitas semelhanças, mas as diferenças são mais importantes, e só vou fazer referencia a alguns deles. A primeira diferença é a falta de um elemento religioso (o que torna-se muito menos complexo). A segunda é a resposta política e a forma com que as manifestações foram tratadas pelas forças de segurança, embora houvesse violência, sinto que não é comparável com o que está acontecendo na Turquia e no Egito.
Curiosidade: para aqueles que querem se divertir um pouco, tentar rastrear alguns dos sinais dos manifestantes. Trata-se de criatividade inigualável. É incrível como os brasileiros são capazes de tirar sarro de seu próprio infortúnio.
 

Leonardo Paz Neves é coordenador de Estudos e Debates do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri)

Tradução: Sophie Crockett-Chaves

Este artigo foi publicado originalmente no Open Democracy, em 10 de julho

Redação

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