Luta por terra é essencialmente feminista, diz pesquisadora de Gana

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Foto: Neil Palmer

Por Rute Pina

No Brasil de Fato

A professora da Universidade de Gana, Dzodzi Tsikata, tem se empolgado com a emergência dos movimentos populares na África, mas espera ver, no futuro, mais conexões entre a luta pela terra e pelo direitos das mulheres.

Presidenta do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais na África, ela pesquisa gênero e questões agrárias em Gana, país em que a agropecuária responde por 36% do PIB e 51% da força de trabalho.

Mesmo com uma estrutura agrária baseada na pequena propriedade, o país também sofre com a pressão e a influência de empresas transnacionais no setor, como explica Tsikata em entrevista ao Brasil de Fato.

Confira a entrevista:

Brasil de Fato: Nos últimos dez anos a produção agrária cresceu em diversos países africanos, como Gana e Etiópia. Mesmo assim, a segurança alimentar permanece como tema crítico para o continente. Como você enxerga essa aparente contradição?

Dzodzi Tsikata:​​​​​ Eu acho que você está certa quando diz que a agricultura está crescendo, mas ela não tem abordado algumas das questões mais básicas da segurança alimentar. Em um país como a Gana, há doenças comuns relacionadas à escassez de alimentos e algumas pessoas, em certas épocas do ano, não têm acesso à alimentação. É um problema muito sério, particularmente, para crianças e para mulheres.

A África é um continente de agricultores, de pequenos produtores que não têm uma larga produção. Não que isso seja uma má estratégia, porque eu acho que a pequena agricultura é promissora e quase sempre subestimada. Gana, por exemplo, se transformou na líder mundial de produção de cacau baseado no pequeno produtor. Isso deveria nos mostrar que eles podem produzir para o mercado e podem, na verdade, ser bem-sucedidos.

Mas existe esse equívoco que diz que produzir não é necessário porque, se você produz commodities para exportação, você pode ganhar dinheiro o suficiente para comprar alimentos. Então, muitos agricultores não são encorajados a permanecer produzindo e não estão pesquisando sobre soberania alimentar, em como produzir, estocar, processar e melhorar a segurança alimentar. Foca-se na agricultura como commodities.

Então, há muitos temas complicados que temos que lidar para assegurar a soberania alimentar. O primeiro deles é garantir que, mesmo os pequenos proprietários produzam para o mercado e também temos que garantir que eles tenham acesso à terra para sua produção. Em segundo lugar, precisamos assegurar as questões sobre a posse de terra. Certos grupos de agricultores, especialmente mulheres, não têm condições de adquirir, de forma independente, terras para a agricultura.

Também temos que tocar em questões trabalhistas envolvendo a agricultura. Frequentemente, os trabalhadores recebem mal e veem a agricultura como uma atividade temporária que eles querem se livrar logo. Nós precisamos resolver isso. E também precisamos resolver problemas de crédito no campo. Muitos pequenos proprietários têm dívidas e a gente ouve muito falar em suicídios por causa dessas dívidas.

Mas, mais importante, temos que apoiar as mulheres na agricultura porque, muitas vezes, elas não só produzem os alimentos, mas estão envolvidas em todas as atividades produtivas que asseguram a sobrevivência de toda uma família. 

Qual é a relação entre a luta pela terra e o feminismo?

Eu acho que a terra está conectada com muitas lutas. A razão é que que somos um país agrário: a terra é um recurso crucial. Mas, mais do que isso, a terra é identidade, a terra onde vivemos é parte do que somos. Quem tem terra é capaz de deter controle político.

Um sistema em que algumas pessoas não têm pleno acesso, nem controle ou não podem deter a terra, pode ter certeza, será um sistema desigual. Pela lei, todos podem ter acesso, mas há uma discriminação em como se tem acesso à terra. E essa discriminação afeta as mulheres, jovens e também imigrantes.

Em Gana, as mulheres produzem em suas comunidades até que se casam. E por causa dos parceiros, quando elas saem de suas comunidades, elas se tornam estranhas e o acesso à terra é mediado pelos seus maridos. Em segundo lugar, quando as mulheres envelhecem, se elas não têm filhos homens, elas podem perder o acesso à terra. Se elas se divorciam, elas perdem automaticamente a área.

O problema é que, sem o controle da terra, mulheres se tornam cidadãs de segunda classe. E, assim, elas também não são relevadas como agricultoras, porque é inconcebível pensar em um agricultor que não tenha acesso à terra.

E não temos muitas políticas que pensam nas mulheres como agricultoras. Então, elas são negligenciadas nesta questão e perpetua-se um ciclo de desvantagens. Isso é uma questão econômica, mas é também uma questão de cidadania e de direitos. Então, qualquer pessoa que seja feminista não pode falhar em ver essa conexão entre os direitos das mulheres e o direito à terra.

Existe um vácuo de políticas públicas voltadas para as mulheres em Gana?

Curiosamente, por um período longo, houve uma atenção às desigualdades da gênero. Muitos governos, ao longo dos anos, fizeram um esforço para abordar a agenda da desigualdade com algum sucesso. Na luta anti-colonial em Gana, as mulheres foram muito ativas.

Por isso, nos primeiros anos de independência, houve muitas políticas públicas sociais e econômicas para apoiar as mulheres. O governo apostou na educação universal, por exemplo, que assegurou que muitas meninas fossem para a escola.

Isso foi uma iniciativa importante porque abriu espaço para as mulheres participarem da vida pública. Por volta de 1960, nós tivemos muitas iniciativas afirmativas para assegurar que elas fossem representadas no Parlamento.

No entanto, algumas dessas políticas eram limitadas, porque elas se debatiam contra a desigualdade de gênero, mas os direitos das mulheres afetam tantas esferas que são conectadas que não se pode separar. Se você foca em um aspecto apenas e ignora o restante, você não concretiza o direito das mulheres da maneira que deveria.

Não há, por exemplo, um sistema que faça com que a terra seja registrada no nome das mulheres. Mas se a gente faz só isso, sem atenção devida à questão do crédito e tecnologia, as mulheres vão ter o direito à terra apenas nominalmente, mas não vão ter substancialmente. Então é muito importante ver que não é apenas um ato pontual, mas é uma séria questão interconectada.

Qual o papel das corporações transnacionais na agricultura em Gana?

É uma pergunta muito interessante para um país que é baseado na pequena propriedade. As corporações transnacionais atuam em diferentes níveis no setor da agricultura.

Em um primeiro patamar, elas se envolvem na produção comercial em grande escala. Existem plantações de grandes corporações transnacionais em cooperação com parceiros de Gana. Elas precisam ter alguns ganenses em parceria porque é muito difícil adquirir grandes áreas e latifúndios. A terra é dividida em pequenas propriedades produtivas. Para adquirir 100 hectares de terra você teria que expropriar 100 camponeses. Então, geralmente, as empresas se aliam com parceiros ganenses detentores de capital e acabam expropriando os mais pobres.

Uma segunda abordagem, que está crescendo e sendo encorajada, é o contract farming. Neste tipo de acordo, as corporações não precisam de uma grande área de terra. Eles incorporam os camponeses em uma cadeia global e eles passam a produzir para mercados externos em sua própria terra, de acordo com as instruções das empresas transnacionais. As corporações os abastecem de insumos, dão suporte técnico e os padrões que eles têm que seguir.

Outro modo de ação das empresas é criando insumos, como agroquímicos, pesticidas, sementes, todos controlados pelo capital transnacional.

E, obviamente, elas estão envolvidas também na venda das safras, como do cacau ou qualquer outra commodities de exportação. Eles vendem, ficam com a maior parte dos lucros e agricultores ficam com uma pequena parte do que é produzido.

Mas também há outra importante maneira como as transnacionais estão envolvidas no setor agrário, que é pela criação de políticas públicas. O que eles fazem é trabalhar com os governos, por exemplo, os EUA, que é muito influenciador nas criação de políticas para a agricultora. Eles pagam para a criação de políticas, eles apoiam escritórios no Ministério da Agricultura e, assim, eles conseguem criar leis através do apoio de corporações transnacionais.

Através destes três níveis — produção, distribuição de insumos para a agricultura e de criação de leis — todo o setor da agricultura acaba nas mãos das corporações transnacionais.

Em sua opinião, quais são as iniciativas mais interessantes de resistência na região?

Há muitas iniciativa interessantes em desenvolvimento. Há um movimento em países africanos para combater a apropriação de terras. Em muitos países, há uma retomada de terras que foram tomadas em grande escala. Estão sabotando suas atividades, recusando trabalhos e até mesmo, às vezes, destruindo safras. Isso está relacionado ao fato de que os governos não estão prestando atenção nos meios de subsistência dessas pessoas. Então eles têm que basicamente cuidar de si mesmos.

Por exemplo, recentemente em Gana, mineradores artesanais de sal tem lutado contra uma empresa que ganhou o direito de minerar o sal industrialmente em uma grande lagoa sem prestar a atenção nas pessoas que, por milhares de anos, ganhavam a vida com a mineração artesanal em uma pequena escala lá.

Essa é mais uma das iniciativas recentes interessantes. Por causa de todos esses anos de privação, os pequenos proprietários estão começando a ser organizar melhor em movimentos populares e estão sendo mais efetivos do que eram.

Também temos exemplos de movimento de sem-terra, particularmente na África do Sul, que também é um grupo muito vibrante, lidando com anos de expropriação e integrando também movimentos globais como o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] e a Via Campesina. É um um período animador em que os movimentos populares estão encontrando suas vozes na África e também estão se conectando com os os movimentos globais pelo direito à terra.

Grupos pelo direitos das mulheres também fazem coisas semelhantes. E o meu pesar é que não haja uma interconexão forte entre os grupos de mulheres e os movimentos do direito à terra. Eu gostaria de ver isso. Gostaria de ver sinergias mais fortes entre estes grupos porque eu acho que a luta deles é muito similar; eles parecem que são diferentes e às vezes os movimentos que lutam pela terra não consideram isso para enfrentar as questões envolvendo os direitos das mulheres.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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