O “guarda da esquina” da ditadura na prisão de Boulos, por Paulo Moreira Leite

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Jornal GGN – Um “guarda da esquina” de 2017 deu ordem de prisão para Guilherme Boulos, líder do MTST, na reintegração de posse em São Matheus, em São Paulo. A referência entre aspas foi à manifestação do vice-presidente da República, Pedro Aleixo, na noite do AI-5: “Não tenho nenhum receio em relação ao presidente. Tenho medo do guarda da esquina.”
 
“Trinta e nove anos depois de um período em que o país enfrentou uma sequencia de barbaridades que não é preciso recordar, a profecia voltou a se materializar na manhã de hoje”, concluiu o jornalista Paulo Moreira Leite, que completa que a criminalização de movimentos sociais e populares “é um das primeiras estratégias para a construção de toda ditadura”.
 
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Por Paulo Moreira Leite
 
Boulos e o guarda da esquina do AI-5
 

Em dezembro de 1968, quando o Brasil  ingressava na noite do AI-5, que abriu a fase de terror da ditadura militar, o vice-presidente da República Pedro Aleixo produziu uma frase insubstituível sobre a capacidade dos regimes de exceção transformarem a vida do país numa baderna institucional. Justificando seu voto, o único contrário ao AI-5, Pedro Aleixo explicou com a elegância possível na hora que a partir daquele instante a vida política iria se transformar num vale-tudo de atos violentos, sem qualquer amparo constitucional:

— Não tenho nenhum receio em relação ao presidente. Tenho medo do guarda da esquina.

 Trinta e nove anos depois de um período em que o país enfrentou uma sequencia de barbaridades que não é preciso recordar, a profecia voltou a se materializar na manhã de hoje. Vestindo uniformes cinzentos da PM paulista, um guarda da esquina de 2017 — o termo  não tem caráter ofensivo, apenas se refere a um grau na hierarquia das forças responsáveis pela segurança pública — deu ordem de prisão para Guilherme Boulos, líder do MTST, que tentava negociar a retirada de 700 famílias que ocupavam um terreno em São Matheus, na periferia de São Paulo. Então está combinado.

Num país onde a moradia popular é uma tragédia,  agravada pela decisão do governo Michel Temer em esvaziar o Minha Casa, Minha Vida,  a única providência que ocorre às autoridades do governo Geraldo Alckmin, o estado com o maior PIB do país, é prender uma  liderança que procurava uma saída negociada para o futuro de alguns milhares de pessoas sem casa e sem amparo. “Cometem a violência de despejar 700 famílias e eu é que sou preso por incitar a violência,” reagiu Boulos.

A criminalização de movimentos populares é uma das primeiras estratégias para a construção  de toda ditadura. Rebaixando o debate de assuntos obviamente políticos, procura-se retirar a legitimidade de de quem está submetido a uma situação de absoluta destituição de direitos, sem outro argumento real além da mobilização. A saída oferecida é se submeter ou se submeter.

No país de hoje, a prisão de Boulos é uma forma de intimidar e demonstrar força, semelhante a invasão exibicionista da Escola Florestan Fernandes, do MST. Guarda uma relação evidente com a pressão contra Lula, ainda que este caso se desenrole em outro patamar.

Representa, de qualquer forma, uma tentativa de substituir a democracia pelo porrete, numa repetição do velho sonho de transformar a questão social num caso de polícia — realidade que os brasileiros começaram a abolir após 1930.

O guarda da esquina do AI-5 tinha função de perseguir — com métodos que chegaram à tortura e execuções de prisioneiros —  aquelas lideranças de organizações de massa que, como a UNE e movimentos de trabalhadores, ousavam enfrentar o regime militar.

Era capaz de agir sem receber ordens, às vezes, apenas porque era capaz de sentir o “espírito do tempo” — dar porrada. Também podia servir como bode expiatório, responsável por “excessos incontroláveis” — eufemismo sempre útil para generais que queriam transferir a própria responsabilidade para sargentos.

Em 2017, suas ações pretendem criar um ambiente favorável a um retrocesso brutal, que implica numa retirada de direitos e conquistas . A prisão de Boulos mostra que a simples simples tentativa de debater e negociar interesses divergentes pode ser vista como ameaça à ordem legal — o que é inaceitável num país onde a Constituição diz que a erradicação da miséria e da desigualdade são objetivos nacionais.

A frase de Pedro Aleixo foi a lição positiva de uma catástrofe absoluta em dezembro de 1968. A ressalva ( “não tenho receio do presidente”) mostrou-se um absurdo, que traía um viés elitista. Mas era uma rejeição e um voto contra o AI-5, o que não era pouco.

Mas outro personagem, o ministro Jarbas Passarinho, deixou uma lição oposta. Ao votar a favor do AI-5, Passarinho explicou aos presentes que decidira “mandar às favas os escrúpulos de consciência.”

Quatro décadas depois, a prisão de Boulos coloca os brasileiros na posição de optar. Podem denunciar um ato contra a democracia.  

Ou podem mandar “às favas os escrúpulos de consiciência.”  

Nesta hora, cada um sabe o que fazer.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

10 Comentários

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  1. Lula, depois Boulos

    Depois da efêmera prisão (Conduçaõ coercitiva uma ova) do Lula, a prisão do Boulos é a maior provocação que as esquerdas e os movimentos populares tem diante de sí. A prisão do Lula se deu ainda sob o governo fragilizado de Dilma, agora a do Boulos se dá sob a sombra de uma ditadura civil e ilegitima.

    Engan-se que pensa que a decisão de levar Boulos preso foi uma decisão isolada do guarda da esquina e não um balão de ensaioa para sentir a intensidade de nossa reação, que deve ser energica, unificada, mas sem entrar, ainda, no jogo da violencia física perpetrada pelo aparelho de estado.

    Até agora a reação a sua prisão tem se mostrado bem concatenada. Vamos intensificar as manifestações para reverter essa arbitrariedade. 

  2. Guardas em todas as esquinas

    A classe média brasileira é socialmente atrofiada, composta essencialmente por ignaros, ainda que letrados. Pessoas que não apenas desconhecem, mas optam voluntariamente por desconhecer. Pessoas que não deixam de expressar sua ira contra os “intelectuais sabichões”, vistos por eles como avatar de todas as falhas que eles, gente “do bem”, não possuem. E, claro, transferem esta anti-intelectualidade obtusa para tudo e todos os que possam representar um pensamento mais elaborado e culto. Pensadores, educadores, artistas, ativistas sociais ou culturais, jornalistas. Todos facilmente substituídos por “comentaristas”, pseudo-humoristas de um stand-up apelativo ou por meros porta-vozes televisivos de uma tendência que precisa, ao ver deles, tornar-se hegemônica. Não por acaso, adoram falar de educação mas não hesitam em atirar pedras contra professores e estudantes que pedem melhores condições de ensino. Política? Deve ser substituída por negociantes, pois estes sim sabem o que importa. E, de preferência, os mais ricos, pois estes sabem mais que os outros. São vozes unívocas, negam ao adversário não apenas o direito de vencer uma disputa, mas o de existir. Jamais deixaram de ser massa de manobra, mas colaboram alegremente para o êxito das manobras às quais alimentam. Portanto, são voluntários ao posto de “guarda de esquina”, ou ao de informantes destes. A cujos arbítrios denunciados responderão, sorrindo: “é nóis”. Saudações!

  3. Para evitar essa síndrome do

    Para evitar essa síndrome do guarda de esquina a Constituição limita a competência dos órgãos, ainda que com áreas cinzentas: Ministério Público só denuncia. Policia Civil / Judiciária é que pode investigar; Judiciário é que pode julgar; e, especialmente para a Polícia Militar, a restrita competência do policiamento ostensivo, diga-se do crime em absoluto flagrante.

    Quando o policial militar com síndrome de guarda de esquina diz que está prendendo Boulos por haver diversas gravações mostrando que ele incita crimes e invasões, o PM travestido de guarda de esquina está invadindo a competência do delegado da Policia Civil e promovendo investigação Isso não é um flagrante, com sua necessária imediatidade. Quando prende cautelarmente porque acha que investigou bem, está invadindo a competência do promotor e do Judiciário. Em resumo, a Lei não dá à PM o poder de elaborar raciocínio jurídico complexo. Eles têm de apreender e levar ao delegado.

    A diferença entre o guarda da esquina e o grupo delegado/promotor/juiz é a formação em Direito, em 05 anos, mais 02 anos no mínimo de experiência jurídica.  Para saber separar o que é crime de difícil aferição e o que éum roubo em flagrante.

    É preciso que o estado e a sociedade civil organizada tomem medidas duras não apenas contra o guarda da esquina, mas principalmente contra o tenente que o supervisionou, e o comandante que treinou e cobrou todo mundo a agir assim. Do contrário a Constituição vira letra morta, e ficaremos sujeito ao arbítrio da interpretação de um sujeito que sequer a estudou com profundidade.

  4. Por que tanto protesto.

    Por que tanto protesto. Ninguem está acima da lei. Acabou a impunidade condescendente para o Boulos. Deverá sim responder dentro do devido processo legal.

  5. Narcoestado.
    Assim o Brasil estå se transformando numa grande SP sob dominio do crime organizado. Sö não se enfrenta o PCC, nesse caso negocia-se, como foi feito na histórica mega-rebelião nsquele Estado: o chanceler da Mooca destruiu o Mercosul: agora temos o Narcosul com seus narcoyuppies intermediando o narcocapitalismo…..cruzisss.

  6. Ou podem mandar “às favas os

    Ou podem mandar “às favas os escrúpulos de consiciência.” Es

    Escrúpulos ??? Consciência ??? Os Brasileiros sabem o que é isso ???

    Temer não estaria na presidência se os Brasileiros tivessem escrúpulos. Ja o mandamos as favas hà muito tempo, ou simplesmente, nunca o tivemos.

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