O que o legado de Mandela tem a nos dizer?

A Semana Prezado Mandela

No início de novembro (2013), aconteceu a Semana Prezado Mandela no Rio de Janeiro. Tratou-se da exibição do documentário (dirigido por Dara Kell e Cristopher Nizza) que mostrava a luta do movimento de favelados sul-africano Abahlali base Mondjolo, que em zulu quer dizer ‘moradores de barracos’. A Semana contou com a presença de dois membros desse movimento: S’bu Zikode (ex-presidente) e Bandile Mdlalose (secretária-geral), além de Dara Kell.

As exibições eram sempre seguidas de debates sobre as remoções de favelas na África do Sul e Brasil, particularmente no Rio de Janeiro, tendo ocorrido em várias favelas e universidades, com várias organizações participando: Pastoral de Favelas, IBASE, Favela não se Cala, Comitê Popular da Copa e da Olimpíada, etc. (mais informações sobre a Semana Prezado Mandela: aqui e aqui).

A luta das favelas sul-africanas

O ‘Prezado’ do título do filme se deve à petição encaminhada ao líder sul-africano para que interferisse nas políticas de remoção que o governo do CNA (Congresso Nacional Africano, partido de Mandela) executava. O filme trata da luta do Abahlali contra uma lei do estado de Kwazulu-Natal que, grosso modo, permitia a remoção sumária de favelas. O que levou o movimento a pleitear à suprema corte sul-africana a inconstitucionalidade da lei. O movimento foi vitorioso nessa questão, embora as remoções continuem ocorrendo e líderes do Abahlali sendo presos ou perseguidos por forças pára-oficiais.

Ao evocar a figura de Nelson Mandela no título, muitas lideranças das favelas cariocas esperavam que o filme mostrasse um panorama melhor da situação da África do Sul pós-Apartheid, principalmente quanto aos direitos da população mais pobre, e negra, que após décadas de privações, ansiavam pelo acesso aos direitos mais básicos, como à moradia e o direito à cidade.

Vale lembrar que durante o Apartheid, as cidades sul-africanas eram proibidas aos negros. Somente aqueles com o passe de trabalho poderiam entrar. Claro, a mão-de-obra negra era necessária num país onde menos de 20% da população é branca.

Se antes as townships eram a forma permitida pelo governo branco para os negros habitarem próximo às cidades, a mais famosa é Soweto (South Western Townships), com o fim do regime segregacionista e a ascensão do governo do CNA, passa a ocorrer uma grande migração de negros para as cidades. O filme mostra vários jovens que se mudaram para ‘novíssimas’ favelas sul-africanas porque buscavam emprego, estudo, serviços… Enfim, as vantagens da vida urbana.

As favelas cariocas

Vale enfatizar que o termo ‘novíssimas’ aqui não se remete ao ‘novo’ costumeiramente usado em propagandas. Remete, na verdade, à precariedade de assentamentos recentes, sem infraestrutura nem serviços urbanos, com construções feita de materiais precários.

Algo semelhante a que nossas favelas viveram ao longo deste mais de um século de existência. Se ainda temos favelas no Rio em que falta muito a ser feito, e mesmo em tradicionais favelas coexistem áreas melhores e piores, décadas de luta das favelas cariocas dotaram-na de infra-estrutura e serviços urbanos. Ao terem o direito à permanência da moradia reconhecido (não totalmente, como podemos assistir hoje) os moradores das favelas cariocas fizeram um enorme investimento financeiro e humano em suas casas, o que surpreendeu os sul-africanos, dadas as condições muito melhores de conforto das moradias aqui, em comparação aos assentamentos sul-africanos. Tal contraste ficou nítido durante a visita a uma favela, em que uma moradora sob ameaça de remoção gentilmente abriu as porta de sua casa e a mostrou ao grupo.

Por outro lado, houve certa decepção por parte dos sul-africanos ao conhecerem os movimentos sociais das favelas cariocas. Segundo um deles nos contou, eles esperavam que o país que levou milhões às ruas meses antes teria um movimento bem estruturado. E o que encontrou aqui foi uma grande fragmentação deste em pequenas e médias organizações, ainda que algumas sejam tradicionais e importantes na luta política… PAra efeito de comparação, o Abahlali tem 25 mil membros filiados.

Lá e cá: Brasil e África do Sul

Apressadamente, poderíamos concluir que as favelas da Africa do Sul estão num estágio anterior ao das favelas cariocas, daí o maior grau de mobilização de seus moradores. No entanto, comparar realidades distintas é algo sempre arriscado. O que não nos impede de fazermos algumas reflexões sobre a luta das favelas e a ‘grande política’ lá e cá.

Em primeiro lugar, as favelas cariocas lutaram muito para terem direito a existir. O Estado não se fez ausente, pelo contrário: tolerou, perseguiu, incentivou, combateu, removeu, urbanizou… a luta de décadas dos favelados foi para serem vistos como pessoas dignas e que queriam acesso à cidade, no que ela tinha a oferecer: trabalho, serviços, lazer.

Ao longo dessa trajetória, várias organizações foram criadas, pelos próprios favelados ou por agentes externos, que inclui um rol de forças e personagens como a Igreja Católica, Partido Comunista, Carlos Lacerda, PT, etc. Aliados com seus próprios projetos que precisavam incluir os favelados neles, que em contrapartida, arregimentavam apoio nos diversos setores da sociedade.

O que não significou que os favelados tenham hoje seu direito à cidade reconhecido de forma consensual. Ocasionalmente, as favelas voltam a sofrer com ameaça de remoção, como vemos agora nesta década dos ‘Grandes Eventos’, quando diversas favelas têm sido removidas sob o argumento de ceder o terreno para vias ou equipamentos, mas que alguns desses terrenos, agora meramente vazios no valorizado bairro do Recreio, deixam dúvidas sobre o que motiva de fato as remoções.

Lá e cá, governos dirigidos por partidos historicamente ligados à esquerda e às lutas populares, pelo direito à moradia inclusive, conduzem ou se omitem em processos que levam à remoção de milhares de famílias de suas casas. Corrupção, aplicação de políticas que contrariam o programa histórico do partido, crescimento do partido com arrivistas… os governos do CNA e PT possuem muitas semelhanças. 

Heranças e perspectivas

Em que pese toda a crítica que há por parte do Abahlali ao governo do CNA, e que Prezado Mandela ilustra bem, cabe pensar se o movimento chegaria ao tribunal, com um juiz negro como vice presidente da Suprema Corte que desfere parecer favorável ao Abahlali se não fosse toda a luta e trajetória anterior do CNA.

Apesar disso, lá e cá, as gerações mais novas anseiam por mais do que um histórico de lutas e pelas mudanças que estes partidos já promoveram que, vale dizer, não foram poucas. Ano que vem, eleições na África do Sul, o sul-africano que tiver por volta de 25 anos ou menos não lembra de outro governo que não seja o do CNA. É o caso dos jovens no Brasil que há dez anos só possuem o governo do PT como referência para comparação. ‘Heranças malditas’, ainda que reais, estão cada vez mais distantes para jovens que querem saber do futuro e o que o governo do presente irá fazer por ele.

Entre os membros do Abahalali destaca-se o grande número de jovens (a secretária geral tem 27 anos). Do mesmo modo, no Brasil, durante as Jornadas de Julho, vemos que majoritariamente as manifestações eram de jovens, que confrontaram a política e as estruturas tradicionais.

Num dos debates da Semana, uma liderança perguntou à jovem secretária do Abahlali se, por fim, eles eram contrários a Mandela. O que ouvimos foi uma aula de política. Ao invés de atacar as falhas do mito, Bandile explicou à platéia que a luta deles era a continuidade da luta de Mandela, por tudo que ele lutou. Eram herdeiros de Mandela, a quem são gratos, mas que querem mais do que foi feito até agora…

Enfim, querem que o sonho de Mandela de uma África do Sul livre e para todos se realize. Preciosa lição para nós que ainda nos pautamos genericamente por ‘petistas’ e ‘anti-petistas’.

Mario Brum é doutor em História/UFF e pós doutorando em Planejamento Urbano IPPUR-UFRJ/FAPERJ. Foi um dos organizadores da Semana Prezado Mandela: Abahlali no Brasil.

Redação

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