Ocupando a futuridade, por Giovanni Alves

Do blog da Boitempo

Ocupando a futuridade

Por Giovanni Alves

O movimento de ocupação das escolas públicas do Estado de São Paulo pelos estudantes secundaristas que lutam contra o projeto de reorganização e fechamento de escolas do governo Geraldo Alckmin pode ser considerado o movimento social de maior expressão político-simbólica no Brasil de hoje. Foi um sopro de esperança no Brasil – e principalmente no Estado d São Paulo – assolado pela estupidez da classe média liberal e mediocridade politica e sindical incapaz de canalizar as energias dos movimentos sociais das camadas médias assalariadas indignada e da classe operária insatisfeita numa perspectiva de mudanças social efetiva para além do politicismo vigente. O movimento social da juventude insurgente contém um significado radical: a re-apropriação democrático-radical do espaço escolar. Indo além de sua imediaticidade política, o movimento de ocupação das escolas públicas pelos estudantes secundaristas é efetivamente uma crítica radical dos protocolos estranhados da gestão escolar em suas múltiplas dimensões. A moçada insurgente quer uma nova escola pública que deixer de ser um sistema burocrático e ideológico insensível às demandas dos sujeitos-produtores do processo de ensino-aprendizagem – não apenas professores, mas servidores administrativos e estudantes secundaristas.

O pólo protagonico de luta contra a política de educação pública dos governos do PSDB tem sido historicamente os professores que lutam há décadas por dignidade salarial. Inclusive em 2015 a APEOESP conduziu uma greve de 100 dias reivindicando principalmnte melhores salários e mudança na precarização contratual do professores do Estado de São Pauo. O governo Alckmin se manteve impassível rejeitando a negociação coletiva com a entidade sindical que representa os docentes do ensino público. Não é novidade que a precarização do trabalho docente nas escolas públicas do Estado de São Paulo assumiu hoje dimensões catastróficas. A profissão de professor tornou-se um sina danada pela falta de perspectivas salariais e reconhecimento social e profissional. É claro que não se trata apenas da realidade do Estado mais rico do País – o que é um contrasenso, mas trata-se de uma política nacional de desprezo pela valorização salarial e profissional dos professores no Brasil. Não iremos tratar neste artigo da miséria do trabalho docente das escolas públicas no Brasil. Degrada-se o trabalho de educação de crianças e adolescentes, esteios da futuridade do Paìs. A crise da educação em sua dimensão pública é uma forma crucial da alienação do capital em seu patamar histórico de crise estrutural, expressando em s e ara si, a desvalorização da atividade social, humana e profissional, do professor de educação pública, o produtor da educação entre crianças e filhos adolescentes das famílias das camadas médias baixas e camadas populares da sociedade brasileira, o verdadeiro esteio da barbárie social que avança nas condições do capitalismo catastrófico no Brasil. É um tema candente cuja solução política eencontra-se distante principalmente no cenário de crise orçamentária dos Estados brasieiros.

Entretanto, em 2015, diante do projeto de reorganização escolar do governo Alckmin, surgiu de modo imprevisivel, um novo sujeito protagonico de luta social contra a degradação da educação pública. Provavelmente nem o governo Alckmin, nem a própria APEOESP, a entidade sindical dos professores, acrediatavam que os estudantes secundaristas rebeldes assumiriam com a estratégia de ocupação das escola pública do Estado de São Paulo, o protagnismo contra o projeto de reorganização escolar do governo do PSDB – intitulado eufemisticamente de “reforma dos ciclos”. Por trás da “reforma dos ciclos” temos o fechamento de escolas públicas, o amento de alunos em salas de aula – degradando, deste modo, mais ainda o processo de ensino-aprendizagem – e a constituição de um modo de organização escolar como ante-ala da terceirização da gestão escolar (como ocorreu nos Estados de Goias e ará, administradões politicas do PSDB). Enfim, a uurpação da coisa pública pela lógica privatista.

Poderiamos dizer que os estudantes secundaristas que ocuparam o território das escolas públicas, conseguiram elaborar, em si, uma crítica radical da escola pública tal como existe hoje, indo além das demandas econômico-corporativas do movimento sindical de professores. O sindicalismo dos professores nunca conseguiu efetivamente elaborar na prática sindical, uma crítica da gestão escolar autocrática na escola e na sala de aula. A crítica dos conteúdos curriculares sem sentido que contribuem para que o desinteresse pelo processo de ensino-aprendizagem nunca assumiu um carater sistematico capaz de mobilizar o conjunto de professores, muitos deles imbuidos da cultura de autoritarismo que caracterzou as relações sociais nas instituições disciplinares como a escola pública. Talvez muitos professores e funcionários das escolas não tenham a perspectiva da dimensão política e histórica radical do ato de rebeldia dos meninos e meninas que decidiram ocupar aquilo que estava efetvamente alienado deles – não apenas o espaço escolar em si, mas o próprio sentido da educação e do espaço coletivo da escola pública degradado pela lógica neoliberal (a violência endêmica nas salas de aula de alunos contra porfessores, çor exemplo, representa uma escola pública cerceada pela lógica alienado do capital).

De certo modo, a ocupação organizada e auto-gerida das escolas públicas pelos coletivos de estudantes secundaristas conseguiu, nesse pouco tempo de movimento social, crescer, cativar a sociedade paulista e ir além, no plano do imaginário da juventude rebelde mais avançada politicamente, das demandas político-corporativas da mera luta contra a reorganização escolar do governo Alckminn. É isto que as midias hegemonicas querem – reduzir o movimento de ocupação estudantil a luta contra a reestruturação escolar do governo do PSDB. Após o recuo do governador Alckmin, revogando o decreto-lei da reorganização escolar, os poderes constituidos do Estado burguês, querem que as escolas públicas sejam desocupadas e que tudo volte a ser como antes. Entretanto, por um curto lapso de tempo histórico, reconfigurou-se o espaço escolar nas escolas públicas ocupadas. Percebeu-se que uma nova escola pública é possivel. A escola ocupada tornou-se não mais um aparelho burocrático de ensino-aprendizagem ou aparelho ideológico do Estado propriamente dito (como diria Louis Althusser). De repente, os estudantes secundaristas tornaram-se produtores associados da educação como formação humana, elabrando pautas de atividades culturais e parecrias com a comunidade local e a sociedade capazes de dar sentido pleno à atividade educacional.

Na verdade, o ato da ocupação no sentido territorial – um espaço como relação de poder – significou a afirmação da democracia direta dos estudantes secundaristas que participam da ocupação num primeiro momento, contra a lógica tecnocrática de reorganização das escolas públicas sem promover a discussão pública ampla e irrestrita com a sociedade civil organzadas do Estado de São Paulo, principalmete APEOESP e entdades de representação estudantil. Por trás da lógica tecnocrática existem interesses ocultos e escusos que movem a intencionalidade política do governador Geraldo Alckminn. Como não poderia deixar de ser assim, governos de direita odeiam a discussão democrática e a consulta popular, adotando práticas autocráticas de administração da coisa pública à margem dos produtores sociais, como ocorria, por exemplo, na ditadura civil-militar. Na verdade, o Estado brasileiro de cariz neoliberal apesar do fim da ditadura civil-militar preserva a cultura autocratica da gestão da coisa pública persistem que convive ao lado de seus aparelhos de repressão, como a Policia Militar. Enfim, ocupar o território da coisa pública tornou-se o ato supremo de afirmação da democratização da res pública. No fundo, reside um carecimento radical que se manifesta com vigor na juventude proletária: o anseio de re-apropriar-se dos espaços de vida alienada pela pseudo-concreticidade da vida cotidiana.

Como movimento social lastreado numa espontaneidade indignada e rebelde, característico da juventude na flor da idade, o ato de ocupação organizado possui múltiplas significações. Como salientamos acima, a intencionalidade direta é barrar o projeto de reorganização escolar do governo Alckminn. Mas para além do ato politico-corporativo, o processo de ocupação estudantil possui um significado imanente de crítica da estrutura escolar pública com sua gestão autocrática por parte de dirigentes de escolas e inclusive, professores e funcionários públicos insensiveis à cultura libertária. Como podemos apreender no video-documentário “Ocupação”, de Giovanni Alves (Projeto CineTrabalho/Práxis vídeo, 2015), o espaço de autonomia constituido pelos estudantes secundaristas que ocuparam de forma organizada e auto-gerida as escolas públicas, fez aflorar carecimentos radicais para além da mera demanda político-corporativa de impedir a reestruturação escolar do governo do PSDB. Na verdade, a ocupação tornou-se um espaço de aprendizagem político-radical da cidadnia ativa, resgate inestimável dos valores fundantes e fundamentais para a formação da consciência de classe: autonomia, solidariedade e união. Aboliu-se num lapso de tempo histírico, a alienaçao escolar que os educava para a subalternidade proletária. A experiencia coletiva da ocupação educa-os – ou cria a possibilidade de educação – para os valores da luta e resistência do precariado em formação. A ocupação está sendo para os estudantes secundaristas rebeldes, muitos deles originariamente não envolvidos com o movimento estudantil, a aula de política mais importante do resto da vida deles. Esta juventude secundarista, de origem proletária, representa o que podriamos denominar de precariado seminal, o precariado em formação, que incorpora e expressa na sua espontaneidade juvenil, aquilo que Karl Marx considerou fundamental na classe social do proletariado: a Selbsttätigkeit, movimento espontâneo e autônomo do proletariado, isto é, a auto-atividade histórica do proletariado.

Deste modo, com a ocupação da escola pública eles vivem a experiencia da nova sociabilidade democraica radical. Um espaço de autonomia inédito que explicita os sonhos imanentes da emancipação social. Energias utópicas restritas à espontaneidade e temporalidade cnstrangedora do tempo histórco social manifestam-se de modo bruto. Por um lapso de tempo histórico rompe-se com a vida alienada do cotidiano burguês (familia, escola, lazer). Pelos depoimentos vistos no documentário “Ocupação”, critica-se na prática, as instâncias repressivas da vida burguesa – não apenas o governo Alckminn, parte compositivas do Estado neoliberal no Brasil, mas também a gestão escolar autocrática de dirigentes e professores das escolas públicas e inclusive, os conteúdos escolares sem sentido para a juventude do século XXI. Crítica-se também a família repressiva, com alguns pais, seduzidos pela mídia neoliberal hegemônica, proibindo filhos de participarem do movimento de ocupação escolar e desqualificando o próprio valor da ação política. Nesse caso, o conflito geracional que permeia as familias expõe a dialética da vida onde os jovens educam efetivamente os mais velhos.

Finalmente, os estudantes secundaristas que participam das ocupações estudantis se auto-criticam como pessoas humanas, contestando não apenas a dominação política do capital e as práticas de exploração do trabalho que contaminam os loci escolares, mas. Por exemplo, a sociabilidade de opressão de gênero. A alteridade do outro é reconhecida e abomina-se as práticas discriminatórias e preconceituosas. O outro-como-concorrente interverte-se em outro-como-próximo. Um detalhe: o protagonismo das mulheres no movimento de ocupação estudantil das escolas públicas é flagrante. Na verdade, no seio do movimento estudantil que ocupa as escolas públicas contesta-se radicalmente o machismo como forma de autocracia sociometabolico do capial. Na verdade, o coletivo das ocupações estudantis anseia – como utopia social – uma sociabilidade humana de novo tipo para além da miséria brasileira. Trata-se de uma tarefa árdua de crítica biopolítica da vida cotidiana. Infelizemnte, não é dentro dos limites do movimento de ocupação escolar que ocorre nas escolas públicas do stado de São Paulo que se efetivará a mudança social necessária se afirmar a utopia da nova socialibilidade libertária.

Enfim, o precariado seminal constituído pelos estudantes secundaristas que ocupam as escolas públicas expõem de modo dilacerante as contradições radicais do capitalismo global. Contestam a função ideológica da escola pública como instância de formação e reprodução das relações de exploração da força de trabalho. A escola capitalista é uma pequena fábrica onde se cultiva a disciplina e o assujeitamento de classe. Os estudantes são pequenos operários submetidos aos rudimentos de relações sociais de exploração. Eles são trabalhadores assalariados em formação, isto é, individualidades pessoais de classe que compõem o precariado do amanhã – o precariado seminal. Na medida em que aprendem a rebelar-se, re-apropriam-se da humanidade que está sendo alienado de si – ou melhor, ocupam a futuridade que está lhes sendo roubada. Na verdade, abre-se uma fratura na subjetividade burguesa hegemonica, sendo, deste modo, o movimento de ocupação dos espaços públicos pelos próprios cidadãos proletários, um elemento compositivo daquilo que John Holloway denomina de fissurar o capitalismo (provcar fissuras na estrutura de poder do capital). Talvez o velho Herbert Marcuse – e mesmo Ernst Bloch – tenham conseguido vislumbrar, na década de 1960, caracterizada pelas manifestações estudantis nos EUA e Europa Ocidental, a pulsão proletária – no sentido deSelbsttätigkeit, – da juventude rebelde. Os “trinta anos perversos” do capitalismo global (1980-2010) procurou enquadrar e manipular a juventude proletária, castrando seus sonhos concretos de contestação social, reduzindo-os aos sonhos, valores e expectativas de mercado. Entretanto, a crise do capitalismo neoliberal abriu fraturas na subjetividade reificado do precariado – a juventude altamente escolarizada inserida em condições de trabalho e vida precária. Aliás, o fenômeno do precariado indicou a irrupção de carecimentos radicais incapazes de serem efetivados pelo capitalismo catastrófico – capitalismo neoliberal na etapa de crise estrutural do capital.

Portanto, o elemento essencial da estratégia de ocupação de espaços públicos pelos cidadãos proletários – como ocorre hoje com a ocupação estudantil das escolas públicas no Estado de São Paulo – é o sentido de re-apropriação da coisa pública alienada. Na verdade, trata-se efetivamente de luta contra a alienação n sentido radical. O público torna-se o coletivo auto-gerido. Diríamos mais – hoje, mais do que nunca, a estratégia de ocupação organizada e auto-gerida dos territórios públicos, torna-se a principal estratégia de luta contra a degradação das instâncias de produção de valores civilizatórios que caracteriza o capitalismo global no século XXI.

Na medida em que a prática da ocupação de espaços públicos pelos próprios cidadãos e produtores sociais cria, amplia e envolve a comunidade local e a sociedade em particular, buscando apoio em outras instâncias associativas e sindicais e organizações da sociedade civil, ela cria um fato político hegemonico capaz de conter a degradação dos espaços de produção dos valores civilizatórios. Torna-se um elemento fundante de socialização da política radical e construção da hegemonia social e cultural. De repente, ocupa-se não apenas escolas públicas, mas também, por exemplo, hospitais públicos, terras públicas, etc. A re-apropriacao da coisa pública na era da sociedade neoliberal torna-se um ato de cidadania ativa e momento de formação da consciência de classe necessária, pois o que presenciamos com as ocupações é uma forma complexa de luta de classes que caracteriza hoje a sociedade brasileira, exigindo, sob pena de colapsar sob seus próprios limites estruturais, expandir-se para a processualidade política social e democrático-institucional capaz de transformar – no sentido de sua extinção – o próprio Estado político do capital.

Enfim, a estratégia política de ocupar como modo de fissurar a reificação capitalista é a estratégia essencial de luta não apenas contra a degradação da coisa pública – e inclusive do fundo público, que direciona cada vez recursos do orçamento público para interesses do capital – mas de luta contra a degradação da pessoa humana-que-trabalha, buscando resgatar as individualidades pessoais do estranhamento social que as dilacera.

O capital hoje é uma máquina de dilacerar a subjetividade, a sociabilidade e a individualidade das pessoas humanas que trabalham. A prática social de reapropriacao coletiva e auto-gerida da coisa pública é uma prática de luta contra a “captura” da subjetividade; de resgate da alteridade do Outro-como-proximo contra o mundo social do individualismo possessivo, concorrência e machismo; e também reapropriacao dos valores culturais das objetivações civilizatórias alienados pela máquina de imbecilização cultural e miséria espiritual da indústria cultural burguesa. Enfim, a estratégia de ocupação dos espaços públicos – mesmo na sua dimensão contingente – é um aviso de alerta que precisamos resgatar (e ocupar) com urgência, a futuridade condenada pela barbárie social e o extermínio civilizatório do capital.

Finalmente, é importante salientar que a ocupação organizada e auto-gerida pelos estudantes secundaristas é um acontecimento transcotidiano, isto é, um lapso radical, luminoso e diruptivo, que fratura a pseudo-concreticudade da vida escolar cotidiana. Entretanto, posui limites estruturais candentes – principalmente numa conjuntura de reação histórica do capital. Caso não se altere a correlação política das forças sociais no Brasil e não se extinga efetivamente o Estado capitalista neoliberal – o que obviamente improvável nas condições históricas do Brasil hoje, tendo em vista a hegemonia burguesa no País –, o ato de ocupação como prática de luta e contestação social, não se tornará efetivamente sustentável no sentido de instaurar uma nova materialidade social. Ao invés do delírio esquerdista de lideranças da extrema-esquerda que incitam as ocupações, não vivemos numa conjuntura revolucionária como por exemplo, a Rússia de 1917 ou o Chile de 1972. A experiência das ocupações estudantis é um delicada flor da utopia social do precariado seminal, um aviso de alerta para as forças sociais demcráticas, ppulares e socialistas que almejam mudar a sociedade brasileira. Entretanto, o valor da ocupação estudantil das escolas públicas reside na sua própria dinâmica contingente de reconfigurar as subjetivudades do precariado seminal.

A experiência do precariado seminal, o precariado em formação, é a experiência social de resgatar a futuridade alienada. Os estudantes secundaristas serão o precariado do amanhã. Talvez seja importante refletirmos sobre a luta candente do precariado contra a futuridade alienada. Por isso, o que o precariado seminal expõe com a ocupação da coisa pública é a luta pela futuridade no sistema do capital que consome o futuro. Luta pela democracia radical, luta pelo fundo público e luta contra a degradação da pessoa humana. Estes são os indícios radicias do movimento social contingente da ocupação estudantil das escolas públicas do stado de São Paulo que assistimos em 2015. No fundo, é uma reação contingente à lógica neoliberal que impulsiona o capital como contradição viva. Na ótica liberal, não existe nada para além do capitalismo e sua lógica do mercado, a não ser o próprio capital em sua forma arcaica (as experiências pós-capitalistas do século XX). No princípio, era o homem burguês – eis o que diz o livro dos “Genesis” do capital. Esta é a perspectiva epistemológica e moral da economia política tão criticada por Marx. A presentificação histórica do capitalismo tal como operava a economia politica é a versão clássica (e elegante) da presentificação crônica que entorpece o precariato sob o capitalismo manipulatório. Como observou o filósofo Henri Bérgson no começo do século XX, “nós praticamente só percebemos o passado”, com o “presente puro sendo o avanço invisível do passado consumindo o futuro”. O que significa que o “presente puro” não existe; ele é apenas “o passado consumindo o futuro”. O que Bergson descreve, sem o saber, é a ontologia da temporalidade do capital, onde o passado, com sua inércia amortecedora, domina o presente, eliminando as chances de uma ordem futura qualitativamente diferente. Na verdade, para I. Mészáros a temporalidade do capital é uma “temporalidade decapitada”, isto é, temporalidade restauradora, “a paralisante temporalidade restauradora do capital”, tendente a construir um “futuro” como uma espécie de versão do status quo ante. Deste modo, a temporalidade do capital que hoje se afirma não é uma temporalidade aberta, mas sim uma temporalidade fechada que não liga o presente a um futuro de verdade que já se abre à frente.

No caso dos “precários”, eles tem a percepção clara da temporalidade fechada do capital, percepção estranhada de perda do futuro que os projeta, no plano da contingencia, na “presentificação crônica” do metabolismo social do capital. Ideologicamente, na sua consciência contingente, incorporam a presentificação histórica do capitalismo posta pela consciência liberal. Na verdade, a consciência liberal só traduz, no plano ideológico, o modo de ser da “paralisante temporalidade restauradora do capital”.

Nas condições do poder da ideologia e da constituição da “multidão” do precariado, coloca-se hoje, mais do que nunca, a necessidade radical da luta ideológica que, num mundo social do trabalho precário, torna-se mais candente tendo em vista a exacerbação da manipulação como modo de afirmação do capital como sociometabolismo estranhado. A ansiedade perante o futuro não se trata apenas de um problema social (vínculos laborais precários, baixos salários, falta de direitos laborais), mas sim, trata-se de um problema existencial que corrói a individualidade pessoal. Na verdade, a precariedade interdita a vida pessoal do sujeito de classe. É a alienação/estranhamento na sua dimensão radical.

Para a camada social do precariado, trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados que não conseguem se inserir na cidadania salarial construída pelo Estado de Bem-estar social, o principal problema da precariedade é “esse futuro que nos estão a tirar”. Esta percepção de futuro hipotecado é um traço recorrente no discurso de indignação de jovens adultos-adultos que construíram sua individualidade pessoal de classe baseada na perspectiva da carreira e perspectiva de consumo. Educação, emprego/carreira e consumo foi a implicação subjetiva da juventude construída pelo capitalismo europeu de bem-estar social e reproduzida nas últimas décadas pelo discurso social-democrata.

Na verdade, o capitalismo manipulatório que se constituiu nos “trinta anos perversos” se baseou na seguinte implicação paradoxal:

Por um lado, o discurso de compatilização entre capitalismo liberal, democracia representativa e Estado de bem-estar social. Construiu-se, a partir daí, a utopia educacional da juventude baseada na idéia do capital humano onde a alta escolaridade seria o lastro do emprego-padrão por tempo indeterminado, perspectiva de carreira profissional e o ethos do consumismo. É o ideal da boa vida no interior da ordem burguesa, onde se renuncia a utopia da emancipação social pela utopia dos pequenos sonhos individuais de carreira e consumo. A cultura neoliberal disseminou nos “trinta anos perversos” de capitalismo global os valores-fetiche do individualismo possessivo. Esta perspectiva ideológica do capitalismo mais desenvolvido, envolveu em sua larga maioria, a “classe média” assalariada, lastro político dos partidos socialistas e sociais-democratas.

Por outro lado, ao lado do discurso ideológico social-democrata, a partir da década de 1980, ocorreu, sob pressão da acumulação capitalista predominantemente financeirizada, a corrosão persistente do Estado-Providência. Desde a década de 1980, no núcleo orgânico do capitalismo global (EUA e União Europeia), governos conservadores e neoliberais (e inclusive, governos socialistas e sociais-democratas) passaram a adotar políticas de cariz neoliberal que contribuíram para a corrosão do Estado social.

De modo lento e persistente, amplia-se a mancha de precariedade laboral sob a vigencia da flexibilidade laboral. Instaurou-se a era da precarização estrutural do trabalho, com a disseminação de várias modalidades do trabalho precário ao lado do desemprego de massa que atinge principalmente a juventude trabalhadora europeia. Nos “trinta anos perversos” de crises financeiras persistentes do capitalismo global, aprofundou-se, principalmente entre a geração nascida na década de 1980 e que na década de 2000 busca realizar seu sonho de cidadania salarial, a frustração com as promessas sociais-democratas.

Entretanto, a implicação paradoxal do capitalismo social-democrata agudizou-se na mesma medida em que aumentou a capacidade de manipulação ideológica e ilusionismo político da ordem burguesa hipertardia. Na era de precarização estrutural do trabalho, as jovens gerações de proletários de “classe média” que constituem o precariado, vivem sob o fogo cruzado do capitalismo manipulatório.

No plano da consciência de classe contingente, expõe-se a carência de futuridade Torna-se cada vez mais claro na percepção da consciência de classe contingente que o capitalismo global hipotecou o futuro de jovens-adultos que cumpriram tudo aquilo que a ordem burguesa receitou para obterem o sucesso, mas não encontraram um “lugar ao sol”, com a incapacidade do próprio sistema inclui-los como força de trabalho produtiva. Na verdade, a carência de futuridade do precariado é a projeção no plano da consciência de classe contingente, da carência do comunismo posto hoje, mais do que nunca, como necessidade histórica civilizacional.

No livro Para além do capital, István Meszários, um dos críticos radicais da perspectiva ideologia social-democrata, observou o seguinte: “A inalterável temporalidade histórica do capital é a posteriori e retrospectiva. Não pode haver futuro num sentido significativo da expressão, pois o único ´futuro´ admissível já chegou, na forma dos parâmetros existentes da ordem estabelecida bem antes de ser levantada a questão sobre ‘o que deve ser feito’”. Portanto, é sob as condições da crise estrutural do capital que se explicita com vigor um dos traços candentes da ordem burguesa e uma particularidade radical da nossa época histórica que se distingue de outras épocas do capitalismo histórico: a interdição persistente da futuridade.

Quando o sistema do capital não consegue “incluir” em seus parâmetros sócio-reprodutivos, trabalhadores jovens-adultos altamente escolarizados de acordo com as prescrições e proscrições da ordem burguesa, há algo de podre no reino da Dinamarca. O espectro do precariado, como o espectro de Hamlet, é expressão do apodrecimento da ordem burguesa.

Finalmente, podemos nos interrogar: o que acontecerá com a escola pública no Estado de São Paulo após a dissolução das ocupações estudantis? Ela será a mesma escola pública que existia antes do movimento contra a reorganização escolar do Alckminn? Como serão recompostas (ou não) relações sociais autocráticas e repressivas no interior do espaço escolar público? Esta é uma interessante questão a ser investigada sociologicamente. Mais uma vez a sociedade brasileira nos surpreende em 2015 com a irrupção do precariado seminal no seio do baluarte neoliberal e pólo histórico de reação política do País: o Estado de São Paulo.

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“OCUPAÇÃO” (2015) from Giovanni Alves on Vimeo.

Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011), de Giovanni Alves, já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura. O autor conta com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, à venda em ebook por apenas R$5 na Gato SabidoLivraria da Travessa, dentre outras. Giovanni Alves conta também com o artigo “Trabalhadores precários: o exemplo emblemático de Portugal”, escrito com Dora Fonseca, publicado no Dossiê “Nova era da precarização do trabalho?” da revista Margem Esquerda 18, já à venda em ebook na Gato Sabido.

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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Redação

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  1. A realidade de uma política

    A realidade de uma política transformadora de alguma coisa na vida real para os próximos 20 anos é meia dúzia dessa molecada – que ainda vai ser atropelada pela vida, mas já está aí.

    São muito mais reais do que os 50 ou 100 caquéticos jovens da década de 70 que se congregam e digladiam nos gabinetes do PT, PMDB, PSDB, com seus vetustos métodos de guerrilha verbal e de teorias de condução malandra de assembléias estudantis da UNE em pleno Congresso Nacional. Vide a tabelhinha Renan-Dilma encerrando a votação do PCS do Judiciário antes do tempo, e a tabelinha Cunha-e-a-massa-parlamentar na instalação da comissão do impeachmeant.

    O futuro é aposentar essa gente, e tirá-los do comando da opinião pública junto com seus apoiadores, e passar o bastão para a molecada que vem aí batendo na PM e na oligariquia com o cassetete dos princípios.

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