Cem anos de música produziram momentos inesquecíveis no Brasil. Nos anos 20, a influência do norte, através dos Turunas da Mauricéia, ajudando a definir a nova música brasileira. No final dos anos 20, o samba se formando com Donga e Sinhô e, especialmente Noel, e o choro explodindo com Pixinguinha e, no plano erudito, com Villa Lobos e o paraguaio Agustin Barrios.
Nos anos 40, o período de internacionalização da música brasileira, com Ary Barroso e Dorival Caymmi, e os violonistas da rádio Nacional, inspirados em Garoto. E ainda uma linha de música nordestina de Luiz Gonzaga, que se desdobra em muitos galhos nas décadas seguintes. Nos anos 60, a bossa nova, em sua plenitude, com Tom Jobim, Carlos Lyra, Roberto Menescal e, logo depois, com Baden Powell. Em meados dos anos 60, a música dos festivais consagrando a geração de ouro, de Chico, Caetano, Gil, Sidnei Miller, Edu Lobo, Vandré, Milton Nascimento. Os anos 70, com João Bosco, Ivan Lins e Djavan. Os anos 80, com a explosão da música do sertão da Bahia e do pantanal, com o gênio de Almir Satter.
Mas nenhuma escola me emociona mais do que a canção brasileira, um gênero semi erudito que se forma ao longo dos anos 20, atravessa os 30 e 40, e ingressa nos 50, inclusive influenciando o Tom Jobim pré-bossa nova. Pode-se gostar de “Garota de Ipanema”, “Desafinado”, “Chega de Saudades”. Mas quem ouviu “Modinha” (“não, não pode mais meu coração / viver assim dilacerado…”), dele e de Vinícius, curtindo uma dor-de-cotovelo, não se esquecerá jamais.
Com o auxilio da “Enciclopédia da Música Brasileira” vou delineando um pouco da vida e obra daqueles músicos talentosos, que ajudaram a formar a canção brasileira, no período em que o Brasil se tornou Brasil.
O grupo central, onde brilha a estrela incomparável de Villa Lobos, era constituído por Hekel Tavares (1896-1969), o paraense Valdemar Henrique (1905-1995), Henrique Vogeler (1888-1964), Marcelo Tupinambá (1889-1953), Jaime Ovalle (1894-1955), todos influenciados pela Semana de 22. Nas letras, sobressaiam Luiz Peixoto (o letrista brasileiro que mais me emocionava, e que vai merecer uma coluna à parte), Manuel Bandeira, Joracy Camargo e Ascenso Ferreira, entre outros.
Obra maiúscula, a Enciclopédia inexplicavelmente deixa de incluir o maestro Sá Pereira, autor de peças para teatros de revista e autor da imortal “Chuá Chuá”. A propósito, numa próxima edição poderia incluir o maestro Portinho (um dos pais do choro moderno, já falecido), Índio Vago (autor de clássicos caipiras), Rosil Cavalcanti (autor das melhores músicas de Jackson do Pandeiro), o violonista José Lanzac (considerado o melhor violonista clássico brasileiro dos anos 20 aos 40) e Atilío Bernardini (professor de Garoto), além do maestro Azevedo, já mencionado pela coluna.
É de 1927 o clássico “Sussuarana” de Hekel Tavares e de Luiz Peixoto (“faz três sumanas / numa festa de Santana / que Zezé Sussuarana me chamou prá conversar”). Hekel é também autor de “Guacira” (“Adeus Guacira / meu pedacinho de terra”), com letra de Joraci Camargo.
Outra figura excepcional foi o paraense Jayme Ovalle cuja biografia meu amigo Humberto Werneck estava levantando. Autodidata em tudo -na música e na profissão de diplomata– , foi nomeado por concurso para a Fazenda Nacional, ocupando cargos em várias capitais do mundo. Era cunhado do diplomata influente Augusto Frederico Schmidt. Na minha limitada opinião, foi autor das duas mais belas canções brasileiras do século, ambas com letra de Manuel Bandeira: “Azulão” (“Vai azulão, companheiro, vai…”), e “Modinha”.
O paraense Valdemar Henrique é outro que marcou a formação musical da minha geração. Curiosamente, em 1958 compôs música tema para “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Mello Netto. Foi premiado, mas sua versão acabou ficando em segundo plano quando, anos depois, o jovem compositor Chico Buarque musicou a peça. Sua música mais conhecida era o “certa vez de montaria / eu desci o Paraná / o caboclo que remava / não parava de falar…”. Mas tinha uma ufanista, que meu tio Léo cantava com paixão: “ó meu Brasil tão grande e amado / é meu país idolatrado…”.
Do grupo fazia parte também Henrique Vogeler autor de um dos clássicos definitivos do século, “Ai ioiô”, letra de Luiz Peixoto (“ai ioiô, eu nasci prá sofrer / fui olhar prá você / meus oinhos fechou”).
Nessa linha fronteiriça entre o erudito e o popular, pendendo mais para o popular, tem o uberabense-carioca Joubert de Carvalho (1900-1977), autor de um clássico conhecidíssimo -“Maringá” (“Foi numa leva / que a cabocla Maringá..), de uma marchinha inesquecível (“Taí, eu fiz tudo prá você gostar de mim”), de um cateretê maravilhoso (“De papo pro ar”), entre centenas de músicas de primeira, mas de uma canção brasileira que minha turma não se cansa de tocar: “Foi num dia de tristeza / que a cidade abandonei / sem saber o que fazer….” .
Ah, música de tanta riqueza, música que desbravou a alma brasileira, e que revelou um Brasil solidário, maduro, sentimental. É essa canção brasileira que me acompanhou no último dia antes do ano 2.000, com os amigos boêmios que reuni em casa, para extrair deles o que de melhor o Brasil produziu no século.
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