A música de Sérgio Mendes e Carlinhos Brown

Ver e ouvir a abertura do Filme Rio de Carlos Saldanha, cuja trilha é assinada por Sergio Mendes e Carlinhos Brown é uma experiência emocionante. Música e imagens entrelaçadas como num tapete – muitos fios narrativos pedindo nossa atenção ao mesmo tempo.

A batucada começa nos piados dos bichinhos, passa para os apitos e envereda pela rítmica do triângulo, mostrando mais uma vez que forró e samba habitam um mesmo universo…

Estamos em pleno pós-moderno: o arranjo não se diferencia da canção, em alguns momentos já não sabemos quem é fundo e quem é figura – a melodia sem batucada definha, a batucada sem melodia desfoca. Tudo tem função temática, embora a principal estratégia criativa seja a intertextualidade – a criatividade da costura de um tecido formado por significações retiradas de vários momentos e lugares.

Os vetores temáticos: o amor à floresta e tudo que ela representa em nossos dias; na canção, floresta rima com festa e com um batuque do tamanho da imaginação de Carlinhos Brown, ou seja, cultura; aquele festival de acrobacias dos penudinhos, lembrando que as Olimpíadas estão chegando.

Mas todo esse traçado depende fundamentalmente da convocação do imaginário associado ao Rio de Janeiro, como cidade de alegria e coração do Brasil (1) – uma cidade que desenha um futuro diferente da violência que viveu e vive (2). E aí todos os valores – floresta, sustentabilidade, cultura, futuro brilhante, celebração da vida, concerto entre as nações, festa e humor – são reunidos e potencializados, nesse momento de esperança.

Do ponto de vista da trilha houve aí uma decisão composicional fundamental. A sabedoria matreira de Sergio Mendes, entrelaçando a exuberância criativa de Brown (Rio e Bahia, portanto), amarrou todas essas pontas através de um mergulho emocional num ambiente sonoro que evoca a força arquetípica da canção-hino Cidade Maravilhosa (de 1934). A cidade é louvada através de sua própria louvação, a mais famosa delas.

A estratégia de evocação da Cidade Maravilhosa se espalha pela obra de diversas formas: no ambiente de marcha carnavalesca com direito a corinho de ‘la iá laiá’ e traços de samba-enredo (parece que estamos diante daquela fonte jorrando nos filmes da Atlântida), na alternância esperta entre modos menor e maior garantindo uma exaltação extra na transição entre eles.

Porém, sem sombra de dúvida, o gesto mais direto e óbvio é uma citação velada, unindo o final das duas melodias, e permitindo que se emende diretamente do final da abertura de Rio para o início de Cidade Maravilhosa (3), como bem ilustra o exemplo abaixo:

 

Os versos finais das duas canções utilizam praticamente a mesma fórmula conclusiva. Estamos diante de uma técnica composicional sutil que permite a uma canção evocar outra – algo que em música recebe atenção no campo da análise motívica. Mesmo o início da canção, que tem um certo tom modernoso e modal projetando a força uníssona de um coletivo, pode também ser entendido como uma rearrumação das notas iniciais de Cidade Maravilhosa.

E o batuque continua unindo pontas que ninguém suspeita, no meio de uma confusão polifônica que vai parecendo cada vez mais uma batucada carioca, onde a cuíca de boca e os gestos meios doidos de ‘elabatuca elabatuca elabatuca’ (batucada feminista?) fazem todo sentido e acabam trazendo para roda um hilário ‘Chá Chá Chá…’ (o discurso se amplia até o Caribe) e tudo isso caminha na direção de convenções ou paradinhas típicas da Timbalada. Ou seja: uma paleta de sons tão colorida quanto as plumas e as gentes brasileiras

A criatividade de Brown traz aquela liberdade da livre associação, aquela sensação de que tudo pode dialogar com tudo, que me parece o traço mais requintado e característico da herança cultural baiana. Se a Bahia ensinou alguma coisa, foi isso, e vale de Gregório a Glauber, Caymmi Tom Zé e Brown.

A maturidade de Sergio Mendes – aluno de Moacir Santos nos 60, e este, grande admirador de Pixinguinha (4) – interage com a exuberância de Brown, mostrando como esse traçado entre Rio e Bahia é importante na história de nossa canção (na linha de Tia Ciata, Caymmi, Carmen Miranda, Assis Valente, Caetano, Gil, Novos Baianos, todos com muito a dizer sobre o assunto)(5).

A ararinha está voando, e certamente ganhamos um outro símbolo em forma de canção para acalentar nossos anos vindouros. Com ou sem Oscar.

Abstract:
The song Rio in Real is a post-modern feast of intertextuality. The city is celebrated through a very shrewd evocation of its traditional symbol, the hymn-song ‘Cidade Maravilhosa’, from 1934, and there is no real distinction between melody and its arrangement, they melt together in a single whole. Sergio Mendes and Carlinhos Brown responded with great creativity to the challenge of providing music for these incredible images of flying and dancing birds that bring about values such as ‘the forest and its importance’, culture and its diversity, the dialogue between nations (Olympiads) and the celebration of life.

 

Notas de rodapé:
1.Esqueço por hoje todos os problemas causados pelo nosso modelo centralizador e desigual…
2. Por exemplo, sem as UPPs o filme e sua euforia dificilmente fariam sentido, pois logo imaginaríamos aves se esvoaçando em meio a balas perdidas.
3. Soube que os autores já cantaram uma vez fazendo essa referência, e fiquei muito contente, porque a análise precedeu essa informação, ou seja, foi possível ouvir a evocação sem nenhuma dica.
4. São informações que estão no precioso livro sobre Moacir Santos escrito pro Andrea Ernst Dias, a ser lançado muito breve.
5. Para não dizer que tudo são flores deixo aqui a crítica a algumas concessões bizarras ao olhar reducionista do norte, gritos bizarros de ‘Pinga, Pinga’, e ‘I love Samba’ – parece fazer parte do negócio.

Paulo Costa Lima é compositor. Bacharel e Mestre (University of Illinois), Doutor (USP e UFBA). Professor de Composição e Análise – UFBA. Pesquisador-CNPq. Membro da Academia de Letras da Bahia. Apresentações de sua obra musical (em 2010) incluiram festivais no Brasil, China, Suécia, Estados Unidos e França. Outras informações: www.paulocostalima.wordpress.com

Luis Nassif

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