A noite de Copacabana: a dupla história do samba-canção, por Cesar Monatti

Lombadas de “Copacabana” e “A noite do meu bem”

Dois livros de fôlego que aprofundam-se na história do gênero musical brasileiro: A noite do meu bem e Copacabana 

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Por Cesar Monatti

Há quem diga que os livros escolhem seus leitores.

Pode-se compreender a frase de efeito como uma forma de valorizar a força do acaso no acesso a este ou aquele título e a curiosa presença de lombadas intocadas na estante por muito tempo até que sejam lidas, ou mesmo que jamais passem da condição de imagem de fundo de alguma foto ocasional do leitor que as adquiriu.

No entanto, a coincidência (?) de que, por meios totalmente distintos, duas obras sobre o mesmo tema chegaram ao alcance com diferença de alguns dias nesse final de ano, não deixa de, alguma forma, levantar pelo menos uma dúvida sobre a procedência da sibilina afirmação de que os livros têm vontade própria.

Dois livros de fôlego, resultante de extensivas pesquisas, cujas primeiras edições se deram com a diferença de dois anos, o que indica a contemporaneidade de suas concepções e feituras, aprofundam-se na história do gênero musical brasileiro do samba-canção: A noite do meu bem, de Ruy Castro, de 2015; e Copacabana, de Zuza Homem de Mello, de 2017.

Ao todo, são cerca de mil páginas de excelência construídas com textos escorreitos e que mantém o interesse sobre o tema em alto giro e sem trechos de pouco envolvimento do leitor, copiosas referências e citações, variadas ilustrações e imagens de época, bem como, um roteiro especialmente prazeroso de leitura, nestes tempos de acesso quase irrestrito a bases de música como os aplicativos de audição ou os repositórios de vídeos on-line na internet.

Ao final da leitura, fica clara a coincidência de abordagem e “plano de voo” das duas histórias do samba-canção, isto é, o tributo ao cenário onde surgiu e floresceu o samba-canção, a ordem cronológica de seu desenvolvimento e a transição até passar o bastão ao gênero seguinte da música popular no país, e de certa forma seu sucedâneo, a bossa nova.

Transparece também a ênfase diferenciada entre uma e outra versão. Embora ambas valorizem as histórias do samba-canção e seus personagens, curiosamente, aquela que presta tributo no título ao empíreo dos seus criadores e intérpretes – Copacabana – conta mais a respeito da música propriamente dita, do que sobre o lugar e seus personagens; ao contrário, aquela que, por sua vez, presta tributo à música no título – A noite do meu bem – se debruça com muita mais diligência sobre os locais e as vidas íntimas daqueles que constituíram este espetáculo musical brasileiro de mais ou menos três décadas de duração.

É preciso admitir, no entanto, que é desnecessária a leitura do cartapácio de centenas de páginas para chegar a essa conclusão. Ocorre que, os leitores, raramente dedicamos alguns segundos para conhecer a ficha catalográfica daquilo que lemos, mas, neste caso, está lá, claramente avisado nas primeiras páginas pares de cada obra:

A noite do meu bem: a história e as histórias

1.       Experiências de vida 2. Histórias de vida 3. Literatura brasileira 4. Memórias 5. Música

Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958)

1.       Samba-canção 2. Música popular – Brasil – História e crítica

Os leitores diletantes, com conhecimentos básicos de teoria musical, saborearão as partes descritivas sobre composição, arranjos e intérpretes de Copacabana, considerado o currículo ligado à música de seu autor. Àqueles que apreciam a crônica de costumes, a crônica social e a análise iconológica, não faltará satisfação na leitura de A noite do meu bem.

Para não dizer que só se falou de flores, naturalmente em obras dessa envergadura há várias ressalvas possíveis de se fazer. Todas são menores diante do portento de investigação e dedicação necessárias para alcançar o objetivo a que os autores se propuseram.

Para apontar dois exemplos de possíveis reparos, pode-se citar a dificuldade de compreender o que é mesmo que têm a ver com o samba-canção as sequelas de uma doença venérea do presidente João Goulart, pormenorizadas em A noite do meu bem.

Por outro lado, é difícil concordar com a afirmação de que “um dos mais inspirados versos da canção brasileira”, embora seja baseado numa rima rara, é verdade, use a expressão “fundo das redes” fora do seu contexto mais consagrado no país, que são as locuções de futebol, aliás representadas por dois dos maiores protagonistas do samba-canção: Ary Barroso e Antonio Maria.

Com a devida vênia do autor e, in memoriam, do inconteste Herivelto Martins, uma alternativa seria, por exemplo, recorrer indiretamente à expressão clichê “sede de amor” e, sem perder a métrica e o ritmo, escrever:

Desejo é unir duas sedes

Segredo é pra quatro paredes

 

Por fim, vale registrar uma notória diferença entre as duas obras.

Uma delas não apenas elege o maior compositor da história do samba-canção, como argumenta por mais de vinte páginas para sustentar sua escolha, ao passo que, na outra versão do gênio criativo dos grandes personagens desse gênero musical, o mesmo autor é citado nominalmente nove vezes e, em apenas duas, a citação se complementa com notas de forma indiretamente elogiosas.

 

Redação

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