OAnos atrás, em uma lista de música mantive uma polêmica com Walter Garcia. Ele tinha me escrito indignado, pelo fato de ter publicado três colunas tentando discutir a bossa-nova fora dos estereótipos criados pela escola uspiana de monopólio do tema – uma confusão conceitual que mistura princípios de semiótica com o conceito de “entoação”. Por tal entenda-se a tentativa de interpretar a música através dos modos da fala, uma mera curiosidade conceitual, mas que alguns uspianos utilizaram para tentar enquadrar toda a produção musical brasileira.
Aliás, era tanto besteirol que cheguei a combinar um livro com meu amigo Zé Rodrix – profundo conhecedor não apenas de conceitos e de música, mas testemunha ocular privilegiada (porque inteligente) de um período riquissimo da MPB. Infelizmente demoramos demais e o Zé partiu.
O livro “Bim Bom”, de Garcia, chega a preciosismos de analisar a letra do baião composto por João e alertar para nuances que o próprio autor desconhece. Ele mostra como na parte final João Gilberto diz “bim-bom-bim-bim-bom” e “explica” conceitual e uspianamente a repetição do bim.
Depois, disseca a batida de vários clássicos da bossa nova, como a sensibilidade de um contador analisando o balanço de uma empresa. Pega a partitura, o conceito de “entonação” do Luiz Tati, e mostra o balanço da bossa até em músicas que são sambas canções clássicos – como “Manhã de Carnaval”.
Por Edson Joanni
Folha.com
O claro enigma de João Gilberto
WALTER GARCIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O trabalho de João Gilberto exige atenção. Seu jogo sonoro não se estrutura pela oposição dos elementos, ele se constrói por tensões em nuança. Se o ouvinte está desatento, tudo parece semelhante. Se permanece atento, sente que há o máximo contraste entre coisas mais ou menos similares.
Os discos e as apresentações de João sugerem uma sequência de quadros do tipo “branco sobre branco”. Que paisagem resulta desse conjunto que é feito de equilíbrios difíceis de alcançar?
Sabe-se que João Gilberto criou a sua batida de violão estilizando a batida do samba. Resumindo ao extremo as coisas, o polegar de sua mão direita esfria uma virtual marcação de surdo. O polegar bate tal qual um metrônomo. Talvez seja herança da marcação de contrabaixo que já se ouvia no samba-canção. Talvez seja herança do walking bass do jazz, mas com só uma nota por tempo.
Seja como for, enquanto o polegar toca o bordão, os dedos indicador, médio e anelar percutem o acorde. E percutem variando uma figura rítmica: João simplificou o ritmo do tamborim, fixando-lhe três ataques, e criou a base do seu próprio ritmo.
Mas ao variar esta base, o seu violão reencontra o ritmo do tamborim. A sua batida parte do samba para voltar ao samba. É samba e não é. Lembra alguns versos dos jagunços de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa: “Olelerê, baiana…/ eu ia e não vou mais:/ eu faço/ que vou/ lá dentro, oh baiana!/ e volto do meio pra trás…”.
Jogando com o violão, a sua voz passeia livre. Voz e violão nem sempre fazem o mesmo ritmo. Vão-se driblando, e as notas se complementam harmonicamente. O balanço não chama à dança, porém convida à contemplação do movimento. Assim como a sua voz não expressa, porém observa sentimentos que reverberam concentrados. O lirismo é intenso e, desde 1958, bastante melancólico.
Se João Gilberto canta um Brasil moderno e paradisíaco, como tantas vezes se afirmou, que paraíso é esse que se canta com melancolia? O que é que a sua obra lamenta na modernidade, embora sem lamúria? E qual esperança carrega, embora sem efusão?
Um claro enigma. O trabalho de João Gilberto, “branco sobre branco”, exige atenção.
Walter Garcia é músico e professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e autor de “Bim Bom: a contradição sem conflitos de João Gilberto” (Paz e Terra, 1999)
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