Caminhos do sertão: por uma geo-poética para um juazeiro

Por Aderaldo Luciano

A Escola de Samba Em Cima da Hora foi fundada no ano de 1959 no bairro de Cavalcante, na cidade do Rio de Janeiro. Em 1976 seu samba-enredo seduziria a multidão no carnaval carioca: Os Sertões, de Edeor de Paula, inspirado no livro homônimo de Euclides da Cunha. Cantava sua letra:

Marcado pela própria natureza
O Nordeste do meu Brasil
Oh! solitário sertão
De sofrimento e solidão
A terra é seca,
Mal se pode cultivar.
Morrem as plantas e foge o ar,
A vida é triste nesse lugar.

Sertanejo é forte
Supera miséria sem fim.
Sertanejo homem forte,
Dizia o Poeta assim.
Ao falar sobre o Nordeste brasileiro, reduzia-o ao pedaço de terra seco, árido, morto, mormacento, sofredor, chamado sertão. Ignorava a região, ignorava a obra literária. Não atinava para o fato de que aquele naco geográfico observado pela luneta euclidiana era um mini-mundo, um teatro cujo cenário não espelhava a totalidade regional. Perdia-se na delimitação do que sejam região, nordeste brasileiro e sertão.

O séc. XX brasileiro testemunhou a construção de uma região político-administrativa que englobava os estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas, conforme o Conselho Nacional de Geografia que, em 1941, elegia a classificação de Fábio de Macedo Soares como aquela que serviria de esteio para estudos e atuação do governo federal.

Com a criação da SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) em 1959, o raio regional extrapolaria os limites anteriores e o que se denominava Nordeste passava a abranger também os estados de Sergipe e Bahia e a alcançar boa parte do norte de Minas Gerais, na região do Vale do Jequitinhonha e, desde 1998, todo o norte do Espírito Santo. Saliente-se, ainda, que os estado do Maranhão e do Piauí acabaram por dar visibilidade a uma meso-região chamada meio-norte.

A complexidade classificatória levou o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a consolidar a Região Nordeste, em 1969, formada entre Maranhão e Bahia, resolvendo, dessa forma, problemas oriundos das várias tentativas anteriores. Mesmo assim, os aspectos geo-climáticos acabariam por determinar microrregiões administrativas que pediam olhares diferenciados do governo central. Uma dessas microrregiões seria chamada de Polígono das Secas e, dentro dela, uma outra conhecida por Sertão.

É esse o sertão visto por Euclides na Guerra de Canudos. É esse o sertão cantado no samba da Em Cima da Hora. Porém, João Duarte, filho, antecipava em 1938, que sertão era tudo que se pudesse encontrar da Bahia para cima:

“O sertão era o sol e a falta d’água! Era a terra para onde se devia mandar camelos ou onde se devia construir um deserto. E esse sertão, no julgamento geral, era o Nordeste inteiro, da Baía para lá, pegando Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte até o Ceará, onde a memória de Pedro Segundo ainda vive fresca e vibrante…”

Em 1965, o Frei J. M. Audrin faz questão de diferençar esse sertão nordestino e seu homem miserável do sertão percorrido por ele em suas missões catequéticas. O seu sertão, percorrido entre 1904 e 1938, é o centro-norte brasileiro, das florestas, dos grandes rios. Suas observações são contundentes:

“… os sertanejos que chamamos ‘nossos’, não vegetam em recantos desolados, onde crescem apenas mandacarus, rasga-gibões e xiquexiques. Não são as vítimas de secas periódicas que aniquilam criações, inutilizam lavouras e obrigam-nos a expatriar-se à procura do ‘Inferno Verde’. Não estão sujeitos à lamentável necessidade de disputar ao gado e a outros animais a água escassa das cacimbas. Não pensem os leitores que nossa gente do interior seja a massa de retirantes que temos visto, com compaixão, desembarcar das Estações Roosevelt ou Pedro II, com destino aos cortiços da Pauliceia ou às favelas da Cidade Maravilhosa… São livres; vivem e pelejam num país de florestas, de verdes campinas e várzeas, onde correm águas permanentes, onde o solo é rico e fartas as pastagens, onde nunca faltam caças nas matas, onde rios e lagos são piscosos.”

Se o sertanejo de Euclides é um forte e não veste o raquitismo dos mestiços neurastênicos da praia, os sertanejos do Frei Audrin não são “os jecas-tatus” de Urupês, nem os “párias” nordestinos (talvez os mesmos fortes euclidianos). Os sertanejos que ele conheceu “Aceitam corajosos a luta pela vida, não como condenados a miserável destino.”

Se recuarmos um pouco mais na história nos depararemos com outro sertão. Aquele desbravado pelos bandeirantes, que não o sertão nordestino, que não o sertão nortista, mas todo o Brasil interiorano, para além das cadeias montanhosas do litoral fluminense ou paulista e o sertão das Gerais. E se dermos mais passos para trás, vamos encontrar aquele sertão mítico dos cronistas e viajantes, o sertão do El Dorado, afinal todo o Novo Mundo confundia-se com o sertão.

Para nós valerá não o sertão de Euclides, nem o sertão do Frei Audrin, tampouco o sertão bandeirante ou dos cronistas e viajantes. Nosso sertão, embora circunscrito no Nordeste brasileiro (dentro da região Sertão, determinada pelo IBGE, em 1969), será uma linha real-imaginária, traçada no pó calcário, entre as cidades de Patos e Pombal, na Paraíba, e Crato, no Ceará. O verdadeiro caminho das pedras, de um monólito a outro, como metaforiza Arievaldo Viana:

Três monólitos de pedra 
De assombrosa semelhança 
Ocultaram os três castelos 
Dos quais só resta a lembrança 
No verso dos trovadores 
Do reino da Esperança.

A cidade de Pombal é uma das mais antigas da Paraíba. Segundo Irinêo Joffily sua instalação deu-se pela ocupação dos sertões feita pelo capitão-mor Theodósio de Oliveira Ledo que estabeleceu o arraial de Piranhas (1696), que mais tarde seria elevada a vila, com o nome do ministro de D. José I de Portugal, o Marquês de Pombal (1719). E mais: fundou-se a vila sobre uma das oito aldeias cariris existentes na época: a aldeia dos Pegas, do ramo Tapuia. 

A história da cidade de Patos confunde-se com a de Pombal, visto que aquela foi desmembrada desta em 1832 com o nome de Vila de Patos. Só em 1903 foi elevada à categoria de cidade, mas tem a sua fundação com a doação de terras feita pelo capitão Paulo Mendes de Figueiredo a Nossa Senhora da Guia. Nesses arredores cresceu uma pequena povoação, incorporada à Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Pombal.

Já a cidade do Crato, no Ceará, também fundada sobre aldeamento dos Cariris, foi estabelecida com o nome de Miranda para, em 1762, ser elevada à categoria de Vila, instalando-se como Vila Real do Crato em 1764. Entre o Crato, Pombal e Patos são 310 km (aproximados) de clima semi-árido, poucas chuvas, muito sol, rios sazonais, vegetação rara e uma espécie vegetal nominada de Ziziphus joazeiro, o conhecido juazeiro, única planta a permanecer verde o ano todo e a oferecer guarida e proteção do sol aos que perambulam pelo sertão:

Quem já passou no sertão
E viu o solo rachado,
A caatinga cor de cinza,
Duvido não ter parado
Pra ficar olhando o verde
Do juazeiro copado.

Utilizando essa árvore frondosa, verde e copada, elegendo as cidades como o nosso Reino dos Três Monólitos, encontraremos os fundamentos para este texto que a muito custo pretendemos escrever. A cidade de Pombal é pano de fundo para nós por dois motivos: em 1865 nascera lá aquele imortalizado como pai da poética do cordel, Leandro Gomes de Barros. Foi lá, também, que se deu o assassinato, a facadas, de Francisca Barroso, a Xica Barrosa, em 1916, primeira mulher repentista do sertão.

Sobre Leandro sempre é bom reinventá-lo. Levado por um tio padre para a cidade do Teixeira em 1880, com 15 anos, é provável que, na biblioteca do tio, travou conhecimento com as letras, alfabetizou-se. O encontro com os livros deu-se ao mesmo tempo em que esbarrava na poética dos cantadores repentistas, pois a cidade foi o berço de nomes fundadores do repente sertanejo, como Nicandro e Hugolino Nunes da Costa, irmãos e vates dos mais respeitados. Daí segue para o Recife, em Pernambuco, com a cabeça recheada de poesia para fundar por lá o cordel brasileiro. Câmara Cascudo o encontrará de passagem por João Pessoa, capital da Paraíba:

“Conheci-o na capital paraibana. Baixo, grosso, de olhos claros, bigodão espesso, cabeça redonda, meio corcovado, risonho contador de anedotas, tendo a fala cantada e lenta do nortista, parecia mais um fazendeiro que um poeta, pleno de alegria, de graça, de oportunidade.” 

A nova geração de cordelistas rende-lhe todas as glórias. Espalham-se as biografias sobre ele e os folhetos de cordel sobre sua vida e obra. No cordel, foi primeiro sem segundo. Enquanto Leandro é endeusado pelos cordelistas, Xica Barrosa é esquecida pelos cantadores repentistas, mesmo sendo ela (e talvez por isso) a primeira mulher a cantar repente de “homem” para “homem” e ter sido assassinada em um samba, depois de uma cantoria: “alta, robusta, mulata simpática, bebia e jogava como qualquer boêmio, e tinha voz regular.” 

Enquanto Pombal simboliza esse encontro de vida (Leandro e o cordel) e morte (Xica e a cantoria), simbolizando dois galhos daquela árvore, o juazeiro poético nordestino, de um lado a poesia oral e todo seu arcabouço sintático (o repente e a cantoria) e o outro a poesia escrita (o cordel e sua morfologia), Patos ilustrará aquele galho da poesia oral “polifurcado” em outros galhos dos quais o coco de embolada, cantado ao som do pandeiro constitui-se em uma forte presença. Foi em Patos, aproximadamente no ano de 1874, que se deu a primeira e, talvez, a mais famosa peleja (desafio de cantadores) do sertão: o encontro entre Inácio da Catingueira e Romano de Mãe d’Água:

Pelo que nos diz a história, Inácio era escravo e obteve autorização de seu senhor para poder enfrentar Romano. O teor da peleja foi passado de geração em geração pelos que assistiram a peleja, sendo o seu mais importante colheitador o padre Manuel Otaviano:

“O que vou narrar aqui bebi em informações seguras de pessoas velhas, como meu amigo capitão Crisanto Aires, octogenário, que, também nascido no povoado de Catingueira, conheceu bem Inácio e lhe assistiu a essa e várias outras contendas. Ao lado dele, cito José Pires Lustosa, também meu velho compadre e amigo; o preto João do Curtume, escravo do tempo de Inácio que com ele conviveu; Xico Coxo, casado com uma sobrinha de Inácio, e uma infinidade de outros velhos que testemunharam esse primeiro encontro de Romano com o escravo de Manuel Luís.” 

Inácio tocava com o pandeiro, sendo um dos primeiros a enveredar pelas melodias do coco. Além de tudo era escravo e venceu a porfia. A importância dessa peleja é atestada pela sua dupla condição: preto e escravo. Só isso já bastaria para adornar de propriedade social esse mítico encontro. Assim vamos desenhando o caminho pétreo aventado antes e traçando os galhos verdejantes do juazeiro poético sob o qual armamos nossa rede, como nos diz Marcus Accioly, em Nordestinados:

Inácio da Catingueira
Foi cantor, não violeiro,
Porque, em vez de viola,
Cantava com seu pandeiro.

Nas suas mãos compassadas
Dançava o pandeiro, rosa
De fogo, que incendiava
Os guizos dentro da glosa.

Na sua pele de escravo
Espinhos viravam flores
E a flor-de-couro, em coroa
Do reino dos cantadores.

A voz de Inácio morreu
Na lenda e nasceu de novo,
Andor de santo, cantada
Na boca livre do povo.

Nossa visita à cidade do Crato será norteada também pela mesma busca conceitual sobre o juazeiro poético nordestino. É por lá que encontraremos outra lenda dessa poética: o Cego Aderaldo, imortalizado pelo poeta Firmino Teixeira do Amaral no cordel A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum. Essa peleja, apesar de fictícia, deixa para todo o sempre uma amostra do que seja o teatro da cantoria no Nordeste. Se Inácio da Catingueira pelejava usando do seu pandeiro, o Cego Aderaldo tomava mão da rabeca.

No Crato encontraremos também a herdeira dessa poética de cantadores, repentistas e cordelistas: Josenir Lacerda, cuja obra serve de cacimba onde beberemos um pouco da água, vezes clara, vezes turva, mas sempre viva e explicamos: o caminho dos três monólitos que queremos percorrer resume a árvore poética nordestina, suas flores, seus frutos, sua sombra.

Observando essa árvore é bem fácil entender o porquê, nesse país brasileiro onde os homens que estudam a poesia e a literatura não o conhecem como deveriam, vestidos de cérebros elitistas que pensam mais a Europa, é bem fácil entender pois, porque chamam os poetas dessa árvore de analfabetos, de populares, de miseráveis, de retirantes. Como pudemos ver nessa breve introdução: o sertão é a antítese e seu povo, o espantalho.

Foram negros e escravos, como Inácio da Catingueira e Zé Pretinho do Tucum, mulheres como Xica Barrosa e Josenir Lacerda, cegos como o Cego Aderaldo, todos marcados pelo preconceito social, racial ou de gênero que deram forma à poética tradicional do Nordeste, acolhidos sob o juazeiro esperançoso, viventes do suposto sertão tristonho, onde mal se pode respirar. Pois bem, o reino dos três monólitos Patos-Pombal-Crato resiste ao tempo e à segregação, descortina-se paradoxalmente alegre e criativo, resistente e vanguardista, como retrata-nos Antonio Batista Guedes, no poema “matuto” (outro galho da árvore poética) A vida sertaneja:

Quando o inverno é perene
O sertão é terra santa;
Quem vive de agricultura
Tem muito tudo que planta.
Há fartura e boa safra
Todo pobre pinta a manta.

Dá milho e feijão,
Tem fruta, tem cana,
Melão e banana,
Arroz, algodão,
As melancias dão
Tantas como areia,
O jerimum campeia,
Nas roças faz lodo…
Vive o povo todo
De barriga cheia!

Quando finda o mês das festas,
E entra o mês de janeiro,
Quem tem roçado, destoca
E encoivara, ligeiro,
Cada um quer ter a glória
De ouvir o trovão primeiro.

Redação

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