Fernando Faro, o senhor MPB

Azar o dele que não conhece ESTE HOMEM.

Nassif, uma entrevista muito legal do Faro no site Gafieiras.

http://www.gafieiras.com.br/Display.php?Area=InterviewsParts&Action=Read&InterviewsPartNo=1&IDInterview=6&IDArtist=6

São 15 partes, mando 1/3…rsrs

Entrevista realizada em 2002 na casa de Fernando Faro, em São Paulo.

Parte 01

Quem vai ser meu pai agora?

Gafieiras – …
Faro – Bom, eu acho que a primeira lembrança, a primeira imagem que tenho do mundo é de Laranjeiras. Ali na Rua Direita, número 8, onde ficava o sobrado, sobrado que tinha aquela janela que dava para o Morro do Cruzeiro, um morro assombrado! Lembro que minha mãe chegava e dizia assim, “Menino, está na hora de dormir! Se você não for dormir agora, a Maria das Mantas vem te pegar!” Não sei quem é a Maria das Mantas, mas sei que é uma figura encantada, uma feiticeira que aparecia por trás do Cruzeiro do morro. Então, vamos dormir. Lembro também dessa janela. Lembro que uma vez, na festa de São João, bem pequeno, fui acender uma estrelinha – conhecem estrelinha? – e uma gota da estrelinha caiu no bolso do paletó do meu pijama, que estava cheio de fogos. Aí, de repente, aquela fogueira, aquela labareda. [risos] Minha mãe correu, me abraçou e apagou o fogo com o corpo dela. Você se lembra da rua em frente ao sobrado, que dá para o Cruzeiro?

GafiGafieiras – …Faro – Não, é uma rua na direção do Cruzeiro, saindo da rua Direita. Lembro que uma vez tinha um monte de gente lá e eu desci pra ver – tudo isso é coisa que não sei se tem importância, mas pra mim, tem. Cheguei lá. Rapaz, era uma casinha que não tinha nem quarto e nem sala. Era uma sala que era quarto! E havia uma mulher deitada, passando mal. Você sabe o que é arupemba? Aquele cesto que usam para coar coisas. Eu me lembro de duas mulheres que ficavam em volta abanando-a com a arupemba e aquilo me deixou aflito à beça. Voltei correndo para o sobrado. De noite me disseram que a mulher havia morrido. Mas foi uma coisa… e eu estava lá.
Gafieiras – …
Faro – Não, a primeira vez foi a do meu pai.
Gafieiras – …
Faro – Ah… Eu já tinha 2 anos.
Gafieiras – …
Faro – Eu me lembro que cheguei no quarto da minha tia e havia um pessoal. Olhei. Estava a cama e o corpo do meu pai. E perguntei: “Quem vai ser meu pai agora?”
Gafieiras – …
Faro – Tenho. Por exemplo, ali naquela foto [n.e. Aponta para um quadro com a imagem de um time de futebol de Laranjeiras, integrado por seu pai], eu lembro dele no posto de pesagem. Chovia, ele me agarrando – esse calor – e me levando para a casa do engenho. O cavalo que desembestou… Você conhece cavalo-passarinheiro, aquele que se assusta com o nada? O cavalo desembestou e ele se atirou comigo no colo. Lembro disso, desse calor. Não lembro como era a mão dele, como era o rosto. Não me lembro. Quer dizer, agora lembro-me mais ou menos. Acho que ele devia ser um pouquinho mais alto, talvez.

Parte 02

Quero montar uma televisão, respondi ao Boni

Gafieiras – …
Faro – Fui para a Globo em 76, 77, e foi um negócio assim: saí da Cultura e o pessoal da Tupi foi em cima de mim. Saí da Cultura de manhã e à tarde o pessoal da Tupi já estava lá. Aí eu disse: “Tudo bem, vamos acertar o negócio de dinheiro!” Mas me disseram, “Tem um problema jurídico, porque você era da Tupi e saiu.” Esqueci o nome do cara – era o genro do Oliveira que estava no Guarujá de férias. “Baixo, hoje é segunda, quarta-feira ele está de volta.” Quarta me procuraram e, “Não, ele vai estar de volta na sexta.” Na sexta me procuraram, “Não vai ser hoje, ele volta na segunda.” “Tudo bem!” Na sexta à noite ligou para mim um cara chamado Luiz Guimarães. Alguém sabe quem é? Era o diretor da Globo aqui em São Paulo [n.e. Nos anos 50, Luiz Guimarães foi locutor de futebol e apresentador de programas na TV Pautista, canal 5]. “Baixinho, é o seguinte: o Boni queria conversar com você. Você pode ir lá?” “Posso. Quando?” “Segunda-feira. Vou marcar com ele às 11 horas.” Fui lá e o Boni disse assim, “Pô, Baixinho, você saiu da Cultura! O que você quer da vida?” “Quero montar uma televisão!” “Estou com você nisso!” Aí, Baixo, eu disse assim, “Já andei pensando em Taubaté, Aparecida, esses lugares assim.” “Deixa! Aqui tem um cara de marketing que vai cuidar disso! É o Amazonas!” Não é o Amazonas da Cultura, acho que era o pai do Marcos Amazonas. “Tudo bem, Boni!” “Não se preocupe com esse negócio de dinheiro, porque a Globo financia tudo. Financia, não, ela dá tudo! Dá a construção, dá o equipamento, dá tudo!” No dia seguinte, chego à minha sala, e em cima da mesa está uma espécie de mapa. Tudo do Boni é assim, um estudo. E ele chegou, “Poxa, Baixo, isso que você pensou de Aparecida é o cocô do cavalo do bandido. O negócio é Guarujá, Santos! Foi feito um estudo aqui. Aí ficamos em cima desse negócio de Santos.” Ele continuou. “Escuta, enquanto a gente não resolve esse negócio da televisão, você não quer vir trabalhar comigo?” “Eu? Mas como é?” “Quanto você quer?” Fiz as contas: o dinheiro da Cultura, multipliquei por dois. Pedi hotel, pedi passagem. [risos] “Boni, é tanto!” E o pessoal da Tupi me esperando. Ele me disse, “Está valendo a partir de agora!” Aí comecei a trabalhar na Globo. “Dê uma olhada por aí, depois a gente vê o que você vai fazer.” Aí eu fui… Uma reunião do Fantástico que presenciei me doeu à beça, Baixo, porque encontrei um cara que era um ídolo, um deus para mim, o Costa Lima, Demerval Costa Lima, todo-poderoso, que fundou a Nacional, a Globo em São Paulo (TV Paulista). E o Costa Lima, magro, “Ô figura!” – ele chamava todo mundo de “figura”. “Ô figura, como é que é?” “Tô bem, Costinha.” E fiquei assistindo a reunião meio de fora. E, Baixo, qualquer palpite que o Costinha dava, os caras, “Não Costinha, deixa pra lá, não dá palpite aqui!” Aquilo me deixou… O que é a vida, o cara coberto de glória, e de repente, não é ninguém. Aí fiquei vendo o Fantástico. Quatro meses depois, o Boni chegou e disse, “Baixo, e aí?” “O que você quiser!” [risos] “Não, mas você pensou em alguma coisa?” “Pensei. Pensei em fazer um negócio chamado Levanta poeira!” “Pô, Baixinho, me dá este título! Você vai fazer a Sexta Super!” O Sexta Super [n.e. Programa semanal apresentado por atores da Globo e que tentava mostrar os diferentes ritmos regionais da música brasileira] era um programa que o Vanucci [n.e. Augusto César Vanucci, morto em 1991] fazia, não sei se vocês lembram. Eu disse, “Tudo bem, o título é seu!” Aí ele chamou a Clara Nunes para fazer o programa. Ela disse, “Eu faço somente se o Faro dirigir!” “O Faro não pode, porque ele vai cuidar da Sexta Super”. No final ele pôs a Alcione. Lembram disso? A Alcione apresentando um programa da Globo? E com o Boni fiquei fazendo a Sexta Super e dois programas chamados Caso Especial. Aí fiz dois discos ótimos

Parte 03

O Marçal tlocava a letla!

Gafieiras – …
Faro – Os discos que fiz nessa época? Um foi com o Marçalzinho, você o conhece? O Marçal cantando as coisas do pai e do padrinho dele, o Bide [n.e. Marçal interpreta Bide e Marçal, EMI-Odeon, 1978].
Gafieiras – …
Faro – Não. Gravei na Odeon. Foi uma história engraçada! Como se chamava o diretor da Odeon? Milton Miranda. “Quero fazer um disco com o Marçal!” Eu estava impressionado com aqueles discos de fim de ano, que você põe na vitrola e o pessoal fica dançando e tocando junto. Aí ele disse assim, “Eu não estou preocupado com isso! É o seguinte: terminou o contrato do Paulinho da Viola. Quero saber se ele vai continuar na Odeon.” E eu disse, “Milton, vamos fazer o disco do Marçal!” “Deixe-me resolver isso, esse negócio está na minha cabeça.” Aí, de noite… “Paulo [Paulinho da Viola], você vai sair da Odeon? Diga sim ou não.” “Ah, Baixo, não vou sair, não. Dá muito trabalho, papelada! [risos] Não vou sair!” No dia seguinte fui na Odeon. “Milton, o Paulo não vai sair da gravadora. Vamos fazer o disco do Marçal?” “Vamos, Baixo! O que você quer?” “Quero o Nelsinho do Trombone, quero o Regional do Canhoto”, estavam todos vivos. Aí comecei a fazer o disco com o Marçal. Lembro-me que tinha uma coisa engraçada. O Marçal “tlocava letla”. [risos] Ele começava a cantar e eu dizia para o Dino. “Temos que consertar!” Aí fazíamos ele gravar só a partezinha em que ele “tlocava a letla”. “A Plimeira…”. “A primeira, a primeira, Marçal!” [risos] Ele ficava, “Prrrrrrri, prrrrrrri”. Gravávamos somente a palavra e substituíamos. Gravamos o disco e fomos para o coro. Cheguei para o Milton e disse, “Milton, tenho uma idéia para o coro. Vou chamar os caras que o Marçal acompanhou durante a vida toda. Por exemplo, Milton [Nascimento], Chico [Buarque], Paulinho [da Viola], Martinho [da Vila], João Nogueira, Clara [Nunes]. Todo mundo!” “Pô, Baixo, você está louco? A gente não vai ter dinheiro pra pagar isso!” Eu disse, “Não, eles vão receber cachê de coro, de músico normal!” “Ah, é?!” Era uma segunda-feira. Eu saí dali e liguei para todos. Quarta-feira, nove horas da noite começa a chegar o pessoal no estúdio da Odeon – como se chama a rua de Botafogo onde fica a EMI? Nunca vi tanto diretor da Odeon junto! [risos] Não tinha nem fotógrafo para registrar isso! Então, foi esse pessoal que cantou. Eu ia abrir o disco com uma música chamada “Agora é cinza”. Aí, de cara, pintou um grilo que o Chico levantou. “Baixo, é ””””agora é cinza”””” ou ””””agora é cinzas””””?” Cinzas de Quarta-feira de Cinzas. Eu disse, “Não, Baixo, é cinza, mesmo!” Depois, mais para a frente, o Paulinho levantou outra dúvida a respeito de um samba do Marçal – você conhece esse samba? [canta] “Você partiu, saudade me deixou” – que era “Barão das Cabrochas”. [segue cantando] “””””Contlolo”””” a escola no surdo do Bola / lá em cima o rei pequeno sou eu…” [risos] Aí, o Paulinho chega, “Baixo, acho que a letra está errada. Não é ””””rei pequeno””””, é repiqueiro!” Que até faz mais sentido. “Lá em cima o repiqueiro sou eu / Barão das cabrochas luminoso.” “Paulo, não posso ter errado! Vou ter que refazer o disco!” “Não, mas eu estive com um amigo do Bide que cantava assim!” Fui pegar a gravação original que é dos Quatro Ases e um Curinga. Cheguei para o Paulo e disse, “Ouça, pô!” [risos] Era “Lá em cima o rei pequeno sou eu”. Nove horas da noite começa a chegar o pessoal.
Gafieiras – …
Faro – Fiz um com a Célia, a Célia gorda.”Mangueira, onde é que estão os tamborins, ó nega”. Fiz um disco com ela [n.e. Célia, álbum lançado pela Continental em 1977 com obras de ilustres sambistas, como Bide & Marçal, Wilson Batista, Ataulfo Alves, entre outros], e aconteceu uma coisa curiosa. Pela primeira vez o Cristóvão Bastos comandou musicalmente o disco. “Cristóvão, é com você!” “Mas, Baixo, nunca fiz isso!” “Mas é você, não me interessa. Amanhã no estúdio é você! [risos] Aí ele foi fazendo. Eu chegava e falava para ele, “Não, Baixo, não faz harmonia no piano. Quero percussão no piano, faça percussão como o Nono fazia, como os caras antigos faziam. Percussão!” E ele fazia. Tem uma música daquele cara que se atirou do morro – Assis Valente – em que aparece bem esse piano, que é a última do disco [n.e. “Minha embaixada chegou”]. Ficou legal, porque misturou com tamborim. Uma coisa percussiva!

Parte 04

Não tenho boa memória. É a qualidade da emoção

Gafieiras – …
Faro – Não, não tenho boa memória, esqueci essa música. [risos]
Gafieiras – …
Faro – Baixo, não é que eu tenha boa memória, tenho sabe o quê? Acho que é a qualidade da emoção. Entende o que eu digo? Que eu não me lembre com precisão, por exemplo, do Chico [n.e. Com Fernando Faro, na foto]. Não me lembro com precisão de datas, mas eu sinto essa coisa.
Gafieiras – …
Faro – É, é assim, uma memória emocional. Quando dou aula, digo, “Não sou professor. Não vou dizer para vocês, ””””Aconteceu nos anos…, Adorno””””. Não vou falar isso para vocês!” Mas acontece o seguinte: fui testemunha e participei das coisas.
Gafieiras – …
Faro – É. Sempre foi, sempre. Os teatros que fiz na Globo… Na Cultura fiz um conto do Luís Jardim – alguém já ouviu falar em Luís Jardim? Um conto chamado “O Homem que galopava”, que era uma história que puxa pelo engenho, pelas coisas de lá. Antes disso fiz na TV Paulista, onde comecei, uma chamada “Inácio Brinquinho”. Inácio Brinquinho foi um bandido que apareceu em Laranjeiras e que tinha uns brincos grandes. Ele chegava nos engenhos e dizia, “Se a senhora não me der tanto de dinheiro, vou matar seu marido e seus filhos!” Chegou num engenho, matou o marido. A mulher – que tinha 16, 17 anos – juntou o pessoal do engenho, os vaqueiros, e saiu atrás dele. Uma semana depois ela voltou e desfilou pelas ruas de Laranjeiras com a cabeça de Inácio Brinquinho. Antigamente se usava muito isso de cortar a cabeça. Vocês sabem como ela se chamava? Jurema Faro! [risos] Isso está na história de Laranjeiras!

Parte 05

Meu primeiro emprego foi no Notícias de Hoje, um jornal comunista

Gafieiras – …
Faro – Baixo, não tem. A relação da televisão com Laranjeiras é a seguinte: eu lia muito lá, lia mesmo. Lia Tarzan, lia um cara chamado Carl May, aquelas histórias… Li todo José de Alencar. Quando saí de lá eu tinha mania de escrever. Depois da escola, fui trabalhar num jornal chamadoNotícias de Hoje, que era um jornal comunista. Depois fui para o Noite, que era outro jornal de São Paulo. Depois em outro jornal e numa porção… Jornal da Tarde,Veja, Istoé. Mas nesse comecinho passei a ser uma espécie de colunista de teatro e cinema. Essa coisa do teatro e do cinema me marcou muito, me encantou muito. Comecei e foi quando começou também esse negócio de televisão.
Gafieiras – …
Faro – Isso foi nos anos 50.
Gafieiras – …
Faro – Em Laranjeiras? Não tinha experiência nenhuma com teatro e cinema! Outro dia eu estava conversando com o Antunes Filho e aí ele disse assim, “Baixo, não me desafie que eu publico aquelas coisas que você escreveu sobre o Claudel! Como você pôde elogiar um cara daquele? Eu ainda vou publicar aquilo!” Paul Claudel! [n.e. Poeta, escritor católico e diplomata do Estado francês, 1868-1955, e irmão caçula da escultora Camille Claudel, amante de Auguste Rodin] Sobre esse negócio de teatro e cinema eu tinha um amigo que me marcou demais chamado Ruggero Jacobbi. Daquela leva do TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] veio o Ruggero Jacobbi. Ele tinha uma cabeça incrível, polifônica, entende? Tudo ele tinha ali. Lembro que uma vez ele foi almoçar em minha casa e ficou na janela. Ele fez o quê? Presença de Anita[n.e. Película de 1951 baseada no romance homônimo de Mario Donato, com Antonieta Morineau, Orlando Vilar, Vera Nunes, Armando Couto, Henriette Morineau, Ana Luz] foi o filme que ele dirigiu. Fez outros também para a Vera Cruz. Por qual companhia que ele fez Presença de Anita?
Gafieiras – …
Faro – Maristela [n.e. Cinematográfica Maristela, companhia paulista que, entre 1950-58, produziu ou co-produziu 24 filmes de diretores como Ruggero Jacobbi e Carlos Hugo Christensen]. Então o Ruggero fazia um teatro na Tupi que se chamava Teatro das Segundas-Feiras e muitas vezes ele me pedia o roteiro. Lembro-me que uma das primeiras coisas que fiz foi um monólogo do Tchékhov chamado “O mal que faz o fumo”, que é de um cara que vai fazer uma conferência e diz, “Não fumem que faz mal”. Vai falando, falando e termina assim, “Eu estou falando isso para vocês, mas eu fumo. Minha mulher não chegou, né? Eu fumo!” [risos] Aquelas coisas do Tchékhov. Tem outra dele que eu adorava, que é de um cara que ia assistir a uma peça de teatro e, de repente, ele espirra. Na frente dele está um casal, cujo senhor era um policial. E ele, “Desculpe, salpiquei no senhor?” “Não, não.” “O senhor está querendo ser delicado, salpicou no senhor.” “Não, não salpicou”. Aí fica aquela discussão terrível! [risos] 

Luis Nassif

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