Juiz de direito, guitarrista. E criador de um festival internacional de música, por Carlos Motta

Juiz de direito, guitarrista. E criador de um festival internacional de música

por Carlos Motta

A vida de músico não é fácil no Brasil. Da mesma forma, não é para os fracos a tarefa de promover a música num ambiente dominado por uma indústria que odeia a qualidade. Mesmo assim há pessoas que se dedicam simultaneamente à vida artística e à extenuante missão de levar cultura ao público. 

Haja fôlego, haja coragem, haja vontade.

A situação se complica ainda mais quando essa pessoa exerce uma profissão que exige uma atenção constante, quase como um sacerdócio.

Esse é o caso o doutor José Fernando Seifarth de Freitas, juiz da Vara da Família em Piracicaba, importante cidade do interior paulista, que também é Fernando Seifarth, violonista dos mais respeitados entre o pessoal que toca o jazz manouche, ou cigano, gênero que nasceu da genialidade do belga Django Reinhardt, lá nos anos 30 do século passado e rapidamente se espalhou pelo mundo todo.

O juiz de direito e o músico, provando que muitas vezes querer é poder, se fundiram há alguns anos para criar um dos mais interessantes eventos artísticos do país, o Festival de Jazz Manouche de Piracicaba, que em sua última edição, no mês de outubro, mostrou, a um público entusiasmado, o trabalho de aclamados músicos brasileiros e estrangeiros.

Não à toa, Piracicaba é hoje considerada a “capital” do jazz manouche no Brasil.

Fernando Seifarth, na entrevista que deu a este blog, conta que não cabe somente a ele organizar o festival. Essa tarefa hercúlea, afirma, é realizada por uma equipe de abnegados. Diz ainda que esse trabalho é praticamente ininterrupto – nem bem o festival termina, começam os preparativos para o próximo.

“Concluímos este ciclo de cinco anos com o jazz cigano brasileiro definitivamente inserido no cenário mundial”, opina. Mas apesar do sucesso do festival, ele não sabe se “e quando” haverá uma próxima edição.

“Começamos uma integração entre os países da América Latina, Chile, Argentina, Colômbia, México e Peru, com participação recíproca em festivais”, informa. “Gostaria de apoiar essa integração e tentar a aprovação de algum projeto cultural para viabilizar a vinda de artistas desses países, bem como de músicos tradicionais e emblemáticos do jazz manouche europeu, como os Rosenbergs, e para tanto, o festival necessita de maior estrutura e suporte financeiro”, completa.

O público que vibrou com as apresentações dos artistas neste ano certamente ficaria extasiado em ver e ouvir lendas do jazz manouche como o Rosenberg Trio.

Isso pode parecer um sonho, mas não impossível, a julgar pelo que já esse músico/juiz realizou em prol da difusão da música de qualidade no Brasil.

A seguir, a entrevista que Fernando Seifarth deu a este blog:

Como surgiu a ideia de organizar um festival de jazz manouche em Piracicaba?

Fernando Seifarth – Em 2008, fundei o grupo Hot Club de Piracicaba para tocar, dentre outros estilos musicais, o jazz do violonista belga Django Reinhardt. Na época, lançamos um CD e passei a ter contatos com alguns músicos brasileiros que tocavam o jazz cigano (jazz manouche ou gypsy jazz) pela rede social “myspace”, dentre eles Benoit Decharneux e Ernani Teixeira. Em 2010, por todo o mundo celebrava-se o centenário do nascimento do Django. Resolvi fazer o mesmo em Piracicaba e convidei a banda de Benoit, o Hot Club do Brasil, o  Ernani Teixeira, que é o violinista do Hot Jazz Club de Campinas, e o grupo Traditional Jazz Band Brasil, que, apesar de não tocar o jazz manouche, é o padrinho do Hot Club de Piracicaba, para participar de um show chamado “100 anos de Django”, que ocorreu no Teatro Municipal Dr. Losso Netto. Muito animado com o sucesso daquele evento e após uma conversa com Benoit e Ernani, surgiu a ideia de fazer um encontro anual e permanente em Piracicaba, com a proposta inicial de reunir artistas brasileiros dedicados ao jazz cigano. E assim ocorreu, em 2013, com a primeira edição do Festival de Jazz Manouche de Piracicaba, realizada no Teatro Municipal Erotides de Campos, com a presença do Mauro Albert Quarteto, Hot Club do Brasil, Hot Club de Piracicaba e Hot Jazz Club. Em 2014, o festival transformou-se em um evento internacional.

Conte um pouco de sua trajetória artística e como você a concilia com a sua atividade profissional.

Fernando – Comecei a estudar música e violão aos sete anos de idade, no conservatório musical Frutuoso Viana, em São Paulo. Estudei violão clássico por quatro anos, passando depois para o violão popular, guitarra elétrica e contrabaixo. Integrei o conjunto Bombom em 1983 e 1984, que fez grande sucesso com o hit “Vamos a La Playa”.  Ainda participei, em 1985 e 1986, do grupo Página 1, em São Paulo, que fazia um rock pop autoral. Deixei a música profissional em 1987, quando ingressei na Universidade de São Paulo. Após me graduar na Faculdade de Direito, em 1991, fui aprovado em concurso público para a magistratura paulista em 1993. Paralelamente à minha profissão, assumi a atividade musical como hobby. Fui convidado, em 2007, pelo querido amigo Newman Simões a integrar o conjunto musical piracicabano Falando da Vida, formado por profissionais de várias áreas, com propósito beneficente, e voltei a me apresentar publicamente. Em 2008, juntamente com os músicos Cidão Lima e Marcos Monaco, ambos da Traditional Jazz Band Brasil, fundei o Hot Club de Piracicaba. Com esse grupo, gravei dois CDs – o terceiro será lançado em 2018 – e fiz várias apresentações em teatros e festivais. Participei do CD de 45 anos da Traditional Jazz Band e de dois CDs do grupo campineiro Hot Jazz Club, “Caravane” e “Chama”. Em 2015, lancei o CD solo “The Nashville Sessions”, que foi gravado nos EUA com o Hot Club de Nashville – toda a renda dele é doada à Nupron, uma entidade que atende pessoas com tuberculose e seus familiares. Em 2017, passei a tocar  eventualmente com  o grande músico Bina Coquet, com quem participei de shows no Sesi e Sesc e importantes festivais, como “Django Amsterdam” e “Django Festival Colômbia”. Tive ainda  o privilégio de acompanhar o violonista inglês Robin Nolan em recente turnê no Brasil, incluindo a apresentação no Sesc Consolação, ocasião em que foi gravado um documentário. Dedico-me à música nos fins de semana, no período de férias, e por vezes à noite, após o expediente no fórum. Apesar de ser um hobby, trato a música com seriedade e respeito. Essa atividade artística não atrapalha o exercício de minha profissão. Ao contrário, ela me auxilia a manter o equilíbrio e serenidade como juiz da vara de família. Costumo brincar que a música é a minha terapia.

Como é organizar o festival? Quanto tempo demanda a organização? Como são conseguidos os patrocínios e os apoios? Qual o custo do festival? Quantas pessoas se envolvem nesse trabalho?

Fernando – Demora praticamente um ano para organizar cada edição do Festival. Tão logo se encerra um, já começo a pensar no próximo. O processo é trabalhoso: programação, publicidade, logística… Mas há sempre um produtor e a colaboração de minha esposa Kika e de vários amigos, dentre eles Silvana Benetton, Luis Castel, Bia Antonini e Antônio Trivelin. Ernani Teixeira ajudou bastante nas três primeiras edições na definição dos “set lists” das bandas e dos releases. Também a diretora do Teatro Municipal, Heloísa Guerrini, prestou grande auxílio nestes cinco anos. Já foram produtores, com muita eficiência, Daniela Justi, Newman Simões e Márcio Sartório.

O festival tem o apoio da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Piracicaba, de alguns amigos empresários e estabelecimentos da cidade, que fazem parceria para a alimentação, acomodação e transporte dos músicos. Todavia, eu e minha esposa ainda somos os principais patrocinadores. Em 2017, vendi alguns instrumentos musicais de minha coleção e um amplificador para ajudar… O Sesc de Piracicaba, pela coordenadora Vanessa Piazza, também tornou-se parceiro essencial para o festival  e, em 2017, sediou parte do evento. A imprensa piracicabana, por seu turno, dá ampla cobertura aos eventos. O concerto no Engenho Central tem sido beneficente, com destinação da bilheteria ou alimentos arrecadados a entidades de caridade. Nas duas últimas edições, organizamos os concertos no palco externo, o que visivelmente contou com maior simpatia do público. O festival apenas acontece porque há uma união de esforços de várias pessoas, notadamente dos músicos brasileiros participantes, que se dedicam sobremaneira ao evento. São verdadeiros parceiros do festival. Gilberto de Syllos e Bina Coquet, por exemplo, acompanharam artistas estrangeiros em todas as edições e Mauro Albertt sempre colaborou com a programação.

Sobre a parte artística: como os participantes, nacionais e estrangeiros, são escolhidos  e convidados?

Fernando – Nestas cinco edições do festival procurei convidar artistas brasileiros com longa dedicação ao jazz cigano. Já passaram pelo festival os grupos Hot Jazz Club (Campinas), Jazz Cigano Quinteto (Curitiba), Seo Manouche (São Paulo), Hot Club do Brasil (São José dos Campos), Roda Romani Trio (Rio de Janeiro), Tigres Tristes (São Paulo), Hot Club de Piracicaba, Mauro Albertt Quarteto (Florianópolis), Epoti (São Paulo), e os músicos Bina Coquet, Felipe Coelho, Daniel Grajew, Marcelo Cigano, Thadeu Romano, Flavio Nunes, Eduardo Brasil, Otiniel Aleixo, Felipe Salvego, Vinicius Araújo, Benoit Decharneux, Israel Fogaça, Sandro Haick e Edu Gallian, dentre outros. Em relação a artistas estrangeiros, escolhi grandes violonistas em que me inspiro, como ocorreu com Richard Smith, Robin Nolan e Paul Mehling, e outros que conheci em festivais no exterior, e que passei a admirar como pessoas e músicos talentosos, como o grupo Tcha Badjo, a cantora Eva Scholten, a compositora e violonista Irene Ypenburg, e o violinista Rudy Bado. Mauro Albertt também ajudou nos contatos, dando sugestões, como os violinistas Jon Larsen, Dario Napoli e Walter Coronda.

Por que você resolveu se engajar artisticamente com o jazz cigano? Como você vê a evolução, em termos de ampliação do número de artistas e de público, do gênero, no Brasil?

Fernando – Quando meu amigo Cidão Lima me introduziu na música de Django, fiquei completamente envolvido e apaixonado pelo jazz manouche. Comecei a ler livros e artigos a respeito deste assunto, comprar discos e assistir shows e festivais no exterior. Ouço muito os CDs do Django e de vários artistas contemporâneos. Não tenho muito tempo para estudar o violão cigano de forma sistematizada, mas tenho me dedicado especialmente ao aprendizado da parte rítmica. O contato com Bina Coquet mudou completamente a minha forma de tocar violão e Robin Nolan me deu valiosos conselhos neste último ano. Simplesmente adoro fazer a “la pompe” para que violonistas virtuosos façam solos maravilhosos. É de fato impressionante como o jazz cigano evoluiu no Brasil nos últimos dez anos e conquistou o seu espaço. Os grupos e artistas solo se multiplicaram por todo o país, vários CDs foram produzidos (alguns até mesmo incluídos em selos internacionais, como o norueguês Hot Club Records, de Jon Larsen) e há programação permanente em bares e clubes de jazz, como em Curitiba, Florianópolis, São Paulo e Piracicaba. Nesta última edição, o Festival de Jazz Manouche de Piracicaba recebeu público de várias cidades brasileiras e fico muito feliz em saber que ele contribuiu para o desenvolvimento e consolidação desse gênero musical em nosso país. Tive conhecimento que o jornalista Henrique Inglês de Souza está escrevendo um livro sobre toda esta história, o que é fantástico.

Quais os planos para o  próximo festival?

Fernando – Concluímos este ciclo de cinco anos com o jazz cigano brasileiro definitivamente inserido no cenário mundial. Não sei se e quando teremos uma próxima edição. Por iniciativa do amigo colombiano Ludovic Dierks, começamos em 2017 uma integração entre os países da América Latina, Chile, Argentina, Colômbia, México e Peru, com participação recíproca em festivais. Gostaria de apoiar essa integração e tentar a aprovação de algum projeto cultural para viabilizar a vinda de artistas daqueles países, bem como de músicos tradicionais e emblemáticos do jazz manouche europeu, como os Rosenbergs. Para tanto, o festival necessita de maior estrutura e suporte financeiro. Há ainda a possibilidade de fazer o festival em 2018 ou 2019 somente no Sesc de Piracicaba. 

Redação

5 Comentários

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  1. Gostaria muito de parabenizar o Sr juiz que apesar de seu talento notória, me faz entender porque meu processo de pensão tem tão pouco valor, a falta de tempo, é muito importante está jornada, porém já se passaram 5 anos que espero providências em meu processo de pensão, agora entendo a demora, alimentação para crianças é menos importante que um talento, eu espero é tudo que estou fazendo a 5 anos uma determinação do Sr juiz ou pagamento da pensão de meus filhos ou a prisão

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